Reportagens

Prestes a virar lei

Após 10 meses de negociação, 12 audiências públicas e 700 emendas, projeto que regula exploração de florestas públicas está na bica de passar pelo Congresso.

Andreia Fanzeres ·
14 de outubro de 2005 · 19 anos atrás

Os últimos acordos de gabinete estão fechados e parece que agora a coisa vai. Se nada mais acontecer à última hora, o que nunca pode ser descartado em se tratando de Congresso Nacional, o governo estima que no máximo até 21 de outubro o Senado vota, e aprova, o projeto de lei (PL) de Gestão de Florestas Públicas. Daí, basta a sanção do presidente Lula para virar lei e permitir que áreas de floresta pertencentes aos estados e à União sejam exploradas através de planos de manejo em regime de concessão.

Foram 10 meses de tramitação desde que o PL entrou na Câmara dos Deputados – tempo considerado rápido para os padrões brasileiros. Durante esse período, o projeto recebeu mais de 700 sugestões de emendas que lhe deram quatro versões e foi debatido durante seminários e 12 audiências públicas realizadas principalmente na região Norte. Com tanto blá-blá-blá, era de se imaginar que a essa altura qualquer polêmica em torno do PL já estivesse resolvida. Longe disso.

O Ministério do Meio Ambiente (MMA) argumenta que, pela primeira vez, o Brasil terá alguma regulamentação para o uso da floresta em terras públicas. Embora seu texto diga respeito as áreas de floresta de todo o país, foi com um olho na Amazônia que os técnicos do governo redigiram o projeto. Não é para menos. Lá, 75% do território é formado por terras públicas. Claro, nem toda essa extensão florestal se dispõe à exploração florestal e o governo diz que nesse caso específico, apenas 3% serão abertas a exploração preconizada pelo PL caso ele vingue no Congresso.

A ânsia do governo em vê-lo aprovado tem a ver com a crença de que o projeto pode dar instrumentos práticos para resolver uma das maiores dores de cabeça de quem explora de forma sustentável recursos da Amazônia. E nesse aspecto, há mais consenso do que polêmica. Ele permite o uso da floresta através de concessões desvinculando a posse da área à empresa vencedora da licitação. E criminaliza qualquer exploração em florestas públicas sem autorização prévia ou se o corte desrespeitar condições estabelecidas nos planos de manejo. Hoje, esse tipo punição só vale para unidades de conservação.

Esse foi um dos aspectos que pode ser considerado positivo em toda essa discussão. Ela serviu para dividir ao meio o antigo esquema que unia e grilagem de terras à exploração ilegal de madeira e à agropecuária na Amazônia. Quando o texto do PL tornou-se público, um pedaço dessa aliança se desfez. Os ruralistas ficaram contra. Os madeireiros, a favor. Mesmo os que não operam com planos de manejo florestal – caso de Sidney Rosa, madeireiro tradicional e ex-prefeito de Paragominas (PA). Ele se diz ansioso pela aprovação do projeto. “Que bom que não vamos mais investir na compra das terras. Além do mais, essa lei vai estabelecer um marco regulatório e permitir que trabalhemos com mais estabilidade.”

Justiniano Netto, diretor da Associação das Madeireiras Exportadoras do Pará (Aimex) concorda. “As empresas vão poder planejar suas atividades num horizonte mais amplo. O importante é ter o ciclo de corte garantido. Hoje somos surpreendidos por mudanças nas normas ambientais, políticas e fundiárias que não nos assegura a produção.” Segundo o texto do projeto, a vitória numa licitação por áreas de manejo florestal serea definida com base em três critérios. Dois, preço e baixo impacto ambiental, são objetivos. O terceiro, alcance sócio-econômico, nem tanto.

De acordo com o MMA, 13 milhões de hectares poderão ser concedidos durante a primeira década de vigência da lei. “Os dez primeiros anos serão como uma cláusula da barreira do projeto. Até lá ainda estaremos testando o sistema. Depois disso, o governo pode pensar em mudanças, se for preciso”, explica Tasso Azevedo, diretor de Florestas do MMA. Segundo ele, o projeto vai começar a ser implementado no entorno da BR-163 (Cuiabá-Santarém), sul do Acre, Amazonas e oeste de Rondônia, além de algumas áreas no Amapá e em Minas Gerais. Com isso, o governo espera criar 140 mil empregos diretos e ter uma receita anual de R$ 187 milhões, fora a arrecadação de impostos na cadeia de produção de R$ 1,9 bilhões.

O governo vai ainda preparar o Plano Anual de Outorga Florestal (PAOF) e submetê-lo à aprovação do Ibama para definir as áreas que poderão ser objeto de concessões (unidades de manejo), cada uma válida por no máximo 40 anos. Esse prazo – no início da tramitação do PL previsto para até 60 anos – ainda é um ponto polêmico do projeto. “Não temos todo esse tempo para ver o que vai acontecer com a floresta. Daqui a 40 anos pode não existir mais nada”, argumenta Jonas Corrêa, presidente da Associação dos Servidores do Ibama (Asibama).

Corrêa está convicto de que o projeto vai enfraquecer o Ibama, pois cria o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), uma nova autarquia ligada ao MMA responsável pela gestão das florestas e fiscalização do cumprimento dos contratos. Pela lógica do governo, a gestão do sistema de concessão deve ser feita por um órgão independente. “O Ibama faz licenciamento, não pode fazer os contratos”, diz Azevedo. Segundo avaliação do Greenpeace, o Ibama vai acabar tendo muito mais trabalho. “Ele vai ser responsável pelo monitoramento de todos os planos de manejo, o serviço vai triplicar”, prevê o engenheiro florestal da ong, Marcelo Marquesini.

Não adiantou o governo prometer repassar ao Ibama 30% do valor pago pelas empresas concessionárias ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF). O presidente da Asibama entende que o órgão vai receber uma porcentagem bem menor de recursos. “Esse percentual é sobre o que exceder do valor mínimo por licitação. Por exemplo, se o governo pedir hipoteticamente mil reais por uma área e a empresa oferecer R$1.100, os 30% incidirão apenas sobre os 100 reais. E não vai tudo para o Ibama, esse dinheiro será dividido. Na prática, sobrariam para nós 9% desses 30%, ou seja, muito pouco”.

A opção por conceder a exploração das florestas públicas a particulares é também um dos pontos mais polêmicos. Niro Higuchi, coordenador de pesquisa em silvicultura tropical do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), é radicalmente contra o projeto por causa disso. “Eu tenho certeza que as florestas continuarão públicas, só não sei se continuarão florestas”, diz. “Deveriam cumprir a lei. Desmatamento, grilagem de terras e extração ilegal de madeira são crimes. Não é preciso criar uma nova lei para combatê-los. Não temos tempo a perder.”

O pesquisador do Inpa é categórico ao afirmar que o Brasil vai cometer o mesmo erro de outros países tropicais que optaram pelas concessões, como Malásia, Indonésia e alguns países africanos. “Não há provas de que esse sistema tenha ajudado a controlar o desmatamento”, diz. Tasso Azevedo se defende. “Nós olhamos para outros países e tiramos o que eles apresentaram de melhor. O nosso projeto é o único no mundo que trata o uso comunitário da floresta explicitamente como prioritário, tanto que é uma das condicionantes para concessão. Também vamos passar parte dos recursos arrecadados para os municípios, de modo a se desenvolverem, além de revisarmos os preços dos produtos florestais a cada seis meses”.

Apesar de ter se posicionado a favor da aprovação do projeto, o Greenpeace ressalta um dado curioso. “O interessante é que através desse viés fundiário, o governo está tentando recuperar o que já é dele”, diz Marquesini. Aliás, falando em terra, o tamanho das áreas que poderão ser concedidas para manejo sustentável não foi definido no texto original do PL. Em recente reunião no MMA, o senador Mozarildo Cavalcanti sugeriu que fosse acrescentada no projeto, entre outros pontos, a determinação de que áreas acima de 2.500 hectares devam ser concedidas apenas depois de uma apreciação do Senado. Para o setor madeireiro, isso é inviável.

“Para uma pequena serraria fazer manejo, ela precisa, de no mínimo, 10 mil hectares para um ciclo de 30 anos. É assim que exploramos de forma sustentável a floresta. A cada ano trabalhamos numa região e a deixamos descansar para depois de 30 anos voltarmos lá e a floresta já ter se recomposto. Agora, imagina do que vai precisar uma grande empresa? Tudo vai ter que passar pelo Senado? Não vai andar”, diz Netto, da Aimex. Para evitar mais polêmica, que provavelmente adiaria mais uma vez a aprovação do projeto, senadores e governo fecharam acordo para colocar em pauta essa e outras propostas num outro projeto de lei.

Azevedo mesmo reconhece o ‘abacaxi’ que vai ter em mãos quando o projeto for sancionado. “Fazer a lei deu um trabalho do cão, mas é só 30% do nosso serviço. O lance é implementar”. E não dar mais um tiro no pé.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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