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Deputado cria dois projetos de lei idênticos para desfazer áreas de preservação ambiental em São Paulo. A bola da vez é o Parque Estadual de Jacupiranga.

Lorenzo Aldé ·
21 de outubro de 2005 · 20 anos atrás

O que têm em comum a Estação Ecológica Juréia-Itatins e o Parque Estadual de Jacupiranga? São duas unidades de conservação integral ao sul de São Paulo, que formam um importante corredor ecológico de Mata Atlântica entre a Serra do Mar e o litoral, entre o Paraná e o Rio de Janeiro. São também duas áreas ameaçadas pela crescente ocupação irregular, que gera graves conflitos fundiários.

Tais semelhanças devem ter sido o suficiente para convencer o deputado estadual Hamilton Pereira, do PT, de que dois projetos de lei idênticos poderiam solucionar os problemas da pressão humana naquelas reservas ambientais. E, entre a Mata Atlântica e eleitores em potencial, adivinhe quem o deputado escolheu?

Os projetos de lei número 984/2003 e 613/2004 são um primor de simplismo. Em sua justificativa, Hamilton Pereira defende que “as regras de proteção à natureza não têm como fim a própria natureza, mas os seres humanos” e que as comunidades “têm direito hereditário a seu espaço vital”. E já que o poder público “jamais conseguirá removê-las sem a ocorrência de acirramento de conflitos”, eis a solução: liberar as áreas ocupadas e permitir que os moradores hoje irregulares explorem os recursos naturais como acharem melhor – desde que “de forma sustentável”.

Quanto à composição ambiental das áreas e à importância de sua preservação, só um parágrafo genérico sobre o Vale da Ribeira, que o próprio autor reconhece ser “estratégico” para a proteção da Mata Atlântica. Mais do que isso, obrigaria o deputado a entrar em detalhes sobre as diferenças da Juréia e Jacupiranga. Muito trabalho para quem quer resolver o destino de comunidades e ecossistemas distintos na base do texto copiado.

No momento, quem corre mais risco é o Parque Estadual de Jacupiranga. O projeto, que propõe amputar do parque nada menos do que 38 bairros e vilas, foi aprovado em agosto pela Assembléia Legislativa de São Paulo. Só não se consumou porque o governador Geraldo Alckmin vetou integralmente o texto no dia 19 de setembro, alegando que a proposta pode gerar “graves prejuízos ao erário estadual e à biodi­versidade, de forma irreversível no mais das vezes”. Tem mais: segundo o governo a lei é inconstitucional, porque foi feita sem estudos técnicos e nem sequer explicita o tamanho da área afetada.

Mas isso não enterra as pretensões dos deputados. Mais do que depressa, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembléia emitiu, no último dia 20, parecer recomendando a derrubada do veto. O relator afirma que “estudos técnicos e consultas públicas foram feitos à exaustão, por um período de quase trinta anos”. Mas aparentemente o alegado calhamaço de décadas de estudos não foi suficiente para obter informações sobre os limites das áreas a serem excluídas do Parque de Jacupiranga, que “evidentemente só poderão ser obtidos por meio de levantamento técnico a ser elaborado pelo órgão de Terras do Estado, em conjunto com o órgão ambiental”. E assim os nobres parlamentares paulistas trazem de volta à ordem do dia a facada no Parque Estadual que mal conhecem.

A BR-116

Para clarear o assunto, pode ser útil trazer à tona informações que o projeto de lei omite. O Parque Estadual de Jacupiranga é patrimônio natural brasileiro e da Humanidade, declarado pela UNESCO como núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica em 1991 e Sítio do Patrimônio Natural da Humanidade em 2000. Tem cerca de 150 mil hectares e abriga considerável diversidade de ecossistemas, pois suas altitudes vão dos 10 metros, próximo ao mar, às florestas montanas e alto montanas de até 1.310 metros. Liga blocos florestais entre São Paulo e Paraná (veja mapa em .pdf), e sua fauna é riquíssima, com várias espécies em extinção — como a harpia, a onça pintada, a onça parda, o macaco muriqui e o uiraçu-falso (Morphus guianensis). Tem também papagaios da cara-roxa e do peito-roxo, mico-leão caiçara, macuco, gaviões das espécies pega-macaco, cabeça-cinza, pomba-grande e pomba-pequeno, araponga, pavó, jacu-guaçu, jacutinga e sabiá-cica.

Os dados acima estão descritos no estudo “A ocupação humana irregular na faixa de influência da Rodovia Régis Bittencourt (BR-116) e a degradação das florestas na porção central do Parque Estadual de Jacupiranga”, dos pesquisadores Glaucia Cortez Ramos de Paula, Frederico Alexandre Roccia dal Pozzo Arzolla e Francisco Eduardo Silva Pinto Vilela, todos do Instituto Florestal de São Paulo.

Basta ler o título para perceber outro “detalhe” ausente do projeto de lei que quer desfazer a Juréia-Itatins, digo, o Parque de Jacupiranga. Ele é cortado pela super-movimentada rodovia Régis Bittencourt, que liga São Paulo a Curitiba. Construída entre 1957 e 1961, a estrada foi um chamariz para a ocupação desordenada e irregular, que nunca parou de crescer.

Hoje, o município de Barra do Turvo, um dos atingidos pelo projeto em votação, tem 34,8% de sua população constituída por migrantes, e está 80% dentro do Parque. O que coloca em xeque a tese de “direito hereditário” à terra. “Essas aglomerações humanas no interior do Parque Estadual de Jacupiranga, em sua maioria, não apresentam vínculo histórico-cultural com a região”, afirma do estudo do Instituto Florestal. Variadas atividades ilegais acontecem ali, com destaque para a agropecuária, a extração de palmito, o desmatamento, a caça e até o tráfico de animais silvestres. Nada muito sustentável, como se vê. O estudo também detecta o crescimento da especulação imobiliária, que não pode ser definida como uma atividade “de subsistência”.

“Decretar a unidade Parque Estadual e depois transformá-la em Unidade de Uso Sustentável é o mesmo que voltar atrás e afirmar a menos valia da biodiversidade local, não faz sentido”, comenta Luciana Ricci Salomoni, estagiária de Direito da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação (Rede Pró-UC), que denunciou a espantosa semelhança dos dois projetos de lei, e a precariedade de ambos.

“Hoje em dia, os órgãos ambientais de concepção mais moderna não preservam o meio ambiente com a total exclusão da atividade humana”, rebate Wladimir Belisário Júnior, chefe de gabinete e assessor jurídico do deputado Hamilton Pereira. Ele diz que os argumentos dos críticos são “furados” e bate na tecla de que “já foram produzidos, durante mais de 30 anos, mais de 30 quilos de documentos sobre a biodiversidade e as características sociais da área”. Mas não explica por que esse saber acumulado não entrou nos projetos de lei. “Não foram as pessoas que invadiram as unidades de conservação, as unidades de conservação é que invadiram o local em que sempre moraram”, opina. Wladimir se diz convicto de que a redução de Jacupiranga e da Juréia-Itatins (em fase de tramitação na Assembléia) será benéfica ao meio ambiente. “Vai regredir a população, pois não pode entrar mais gente. Com o tempo não haverá mais ninguém lá”.

Como é que os conservacionistas não pensaram nisso antes?


* Colaborou para esta reportagem João Teixeira da Costa.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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