Reportagens

Muita certeza, pouco controle

Proibição da pesca profissional no Pantanal é defendida por governos estaduais e atacada pela Embrapa. Mas ninguém sabe ao certo a situação dos peixes na região.

Andreia Fanzeres ·
4 de novembro de 2005 · 19 anos atrás

Quem depende dos peixes do Pantanal para garantir seu ganha-pão vai ter que encostar por um bom tempo os equipamentos de pesca. Vigora desde a última quinta-feira, 3 de novembro, a piracema — período em que a captura de peixes é proibida porque coincide com a época de reprodução dos cardumes. A suspensão vai até o dia 28 de fevereiro de 2006. Mas, acabado esse prazo, as coisas não voltarão ao normal. No dia 1° de março começa uma experiência inédita na região: a moratória da pesca profissional no Pantanal por quatro anos.

A medida, obviamente, está cercada de polêmica. Os governos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul se dizem convictos de que a medida é necessária, apesar de impopular. E atribuem a motivações políticas a ferrenha oposição da Embrapa Pantanal à idéia de moratória. O órgão federal, por sua vez, usa o mesmo argumento para interpretar a posição dos governos. O que os dois lados têm em comum é a incerteza sobre o que realmente existe ou deixou de existir nos rios do Pantanal.

A Embrapa questiona as bases científicas para os governos estaduais tomarem uma decisão dessas, uma vez que suas pesquisas não apontam diminuição dos estoques pesqueiros, com exceção do pacu. “Constatamos a sobrepesca em 1998 e propusemos que o tamanho mínimo de captura dessa espécie fosse aumentado de 40cm para 45cm, mas parece que o problema ainda não foi resolvido”, conta o biólogo Agostinho Catella, especialista em pesca em águas interiores. Segundo ele, os estudos da Embrapa relacionaram o número de pescadores no Pantanal e a duração de suas atividades com os volumes capturados. Quando os resultados saíram, nenhuma surpresa. “As pesquisas não acusaram redução nos estoques de pesca no Pantanal”.

Com uma metodologia diferente, a bióloga Lucia Mateus, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) chegou às mesmas conclusões em sua tese de doutorado, defendida em 2003. A pesquisa estimou os parâmetros de crescimento de algumas populações de peixes e avaliou o quanto as mortes por pesca representam na taxa total de mortalidade. A isso, Lucia chamou de taxa de exploração dos estoques. Em sua análise, com exceção da espécie conhecida como barbado, todo resto estava normal. “Todos esses dados não indicam uma situação que mereça radicalização. Não para todas as espécies”, afirma.

Controle falho

Nenhum desses estudos foi levado em consideração pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Sema), especialmente os da Embrapa, que monitorava o volume dos recursos pesqueiros a partir do extinto Sistema de Controle de Pesca (SCPesca), que funcionou de 1994 a 2004. Com informações da fiscalização ambiental, os pesquisadores avaliavam os estoques usando 31 critérios. “Fizemos uma das maiores séries contínuas sobre pesca em águas interiores do Brasil”, orgulha-se Catella. Mas, de uma hora para outra, a Sema, que administrava o sistema, anunciou o fim do SCPesca. “Foi uma surpresa. Ficamos a ver navios”, reclama o biólogo.

Segundo Thomaz Lipparelli, superintendente de Pesca da Sema, o sistema caiu por diversas questões. Uma delas, metodológica. “Havia um problema estatístico. A captura ilegal de peixes não era contabilizada”. E, de acordo com Lipparelli, os volumes da pesca fora-da-lei não são desprezíveis. “Sabemos que 350 toneladas de peixes saem do Pantanal pelas mãos do pescador profissional, enquanto de 3 mil a 3,5 mil toneladas são clandestinas”. Ele explica que a fiscalização dos peixes tem sido feita mais nas estradas do que na beira dos rios, o que faz o controle ser recorrentemente burlado. “O peixe já sai beneficiado, na forma de filé. Quer dizer, não dá para saber exatamente que tipo de peixe está sendo transportado nem a quantidade capturada no rio”, diz Lipparelli. Além de se basearem nos dados vulneráveis da fiscalização ambiental, o superintendente reclama da defasagem dos relatórios do SCPesca, que levam em média quatro anos para serem consolidados.

Lipparelli, que é conselheiro da Sociedade Brasileira de Ictiologia, acha que a pesca ilegal vem provocando uma redução drástica dos peixes, inclusive com o desaparecimento de algumas espécies. “Temos equipes de monitoramento que verificam mensalmente os estoques nos rios. Na semana passada, por exemplo, nenhum pacu foi encontrado no rio Miranda”, diz. O governo põe a culpa os pescadores ilegais, mas promete não deixar o segmento formal desamparado. “Além de pagar seguro desemprego e um salário mínimo por mês, vamos aproveitar esse período de piracema para começar um programa de recapacitação profissional com os pescadores e discutir a moratória com a sociedade civil”.

Mesmo sem os pescadores profissionais para manter as peixarias fartas, o superintendente de pesca garante que não haverá desabastecimento durante a moratória. Segundo ele, o mercado vai ser suprido pelas 6 mil toneladas produzidas anualmente pela piscicultura no estado, das quais 20% destinam-se ao consumo interno e 80% vão para outros estados e exportação. “Os piscicultores são, inclusive, parceiros do governo nessa decisão”, diz Lipparelli. E eles não são os únicos beneficiados.

Bom para os amadores

Reunidos em outubro no XIV Congresso Brasileiro de Engenharia de Pesca, em Fortaleza (CE), cientistas da área lançaram um manifesto em que classificam a medida como discriminatória, equivocada e arbitrária. Além disso, segundo eles trata-se de um desrespeito à cultura dos pescadores profissionais, “impondo a extinção de sua profissão e modo de vida em benefício de outros setores da sociedade”.

Os tais outros setores da sociedade são os pescadores amadores, maiores responsáveis pelo turismo no Pantanal. Mato Grosso do Sul considera vantajosa a suspensão da pesca para os 1.284 profissionais registrados no estado, em benefício dos 60 mil empregos gerados diretamente pelo turismo de pesca. “Estamos preocupados porque os turistas não estão mais vindo para cá. E uma pesquisa de opinião realizada em São Paulo, 93% dos entrevistados disseram que não pescam mais no Pantanal porque não há peixes”, reclama Lipparelli. A própria Embrapa reconhece que o número de pescadores esportivos começou a cair sensivelmente a partir do ano 2000, à medida que eram reduzidas as cotas de captura por pescador. “Até 1999, cada pessoa podia levar 25 quilos mais um exemplar. Agora, ela só pode pescar 10 quilos”, diz Catella. Para ele, essa quantidade é conservadora demais e, uma vez que suas pesquisas continuam indicando situação de normalidade em relação a diversas espécies de peixes pantaneiros, o pesquisador não sabe explicar o porquê de tantas restrições.

O que a Embrapa chama de conservadorismo, o superintendente de pesca de Mato Grosso do Sul chama de conservacionismo. “Para pensar no peixe tem pouca gente”, diz Lipparelli. “Fizemos dois cursos de capacitação com a polícia ambiental para que atue no rio com o peixe vivo, não o morto já nas estradas”. Ele informa que depois da moratória o governo pretende fazer o zoneamento para a pesca e uma análise da capacidade de pesca dos rios do Pantanal, coisa que até hoje não existe. O superintendente tem certeza de que está fazendo o possível para os estoques se recuperarem. Mas a pesquisadora da UFMT lembra que a manutenção dos recursos pesqueiros não depende só de quem tira o peixe do rio. “Há problemas mais sérios que afetam de maneira mais contundente os peixes do Pantanal, como o desmatamento, contaminação das águas por agrotóxicos, despejo de esgoto nos rios e outros impactos ambientais que provocam perda de habitat”, diz Lucia.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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