É fácil enterrar como insensato o ambientalista Francisco Ancelmo de Barros, que no sábado pôs fogo no corpo, depois de mais um protesto em Campo Grande contra as usinas de álcool que o governo de Mato Grosso do Sul quer plantar no Pantanal. Foi isso, pelo menos, que os jornais fizeram, com antes tinham feito com a greve de fome do bispo Luiz Cappio contra a transposição do Rio São Francisco.
Os radicais são, por definição, insensatos. Difícil é definir a sensatez, quando ela incorpora o anarcodesenvolvimentismo da era Lula, cujos problemas ambientais sempre se resolvem a toques de eufemismo. No caso do São Francisco, trocando “transposição” por “integração” ou “revitalização”, que vêm a dar no mesmo, mas soam muito melhor nas entrevistas. No das usinas, alegando que se trata de um projeto para o “Alto Paraguai”. Foi o que disseram os telejornais no fim de semana, noticiando o protesto do ambientalista.
“Alto Paraguai”, que a maioria dos brasileiros mal sabe onde fica, tem a vantagem de jogar o debate para cima. Lá onde quase ninguém o enxerga. Mas se trata, na prática, das cabeceiras do rio Paraguai, de onde vem a água que forma o Pantanal. Isso, segundo o governador Zeca do PT, não é a mesma coisa que o Pantanal. “Está havendo confusão”, disse ele, depois da morte de Francisco Ancelmo na Santa Casa de Campo Grande, com 100% do corpo queimado. Pelos dogmas da sensatez vigente em Mato Grosso do Sul, há oito anos sob administração petista, as destilarias de álcool, usinas de açúcar e canaviais – proibidas de funcionar no estado por uma lei de 1982 que agora um projeto do governo na Assembléia Legislativa promete derrubar – serão instaladas num lugar chamado “Peripantanal”.
Ou seja, no Planalto. Portanto, à montante do maior mostruário de vida selvagem do continente americano e “na única região da América do Sul que pode competir com as savanas da África oriental e meridional em termo de concentração de grandes pássaros, mamíferos e répteis visíveis”, como diz o biólogo Russell Mittermeier, da Conservation Internacional, num livro recém-lançado. Essa “jóia dos pântanos” depende da água que vem de fora nas estações de cheia. As chuvas locais não bastam para mantê-lo.
Claro que, ao governador, esse detalhe não preocupa. Embora os canaviais tenham uma ficha multissecular de serviços prestados à degradação da natureza brasileira, mudando para pior a paisagem nativa desde que se instalaram no Nordeste do século XVI até à erradicação final da mata atlântica em Alagoas, quando o Proálcool chegou no estado nos anos 80, para Zeca do PT o Pantanal não corre perigo, graças aos novos “recursos tecnológicos que reduzem os riscos de poluição”.
Em dialeto ptês, quis dizer que agora o país está nas mãos de gente séria. Mas Francisco Ancelmo, talvez por ser insensato, não acreditou no governador. Ele foi um dos pioneiros do movimento ambiental em Mato Grosso do Sul. Começou a briga que encheu de passeatas as ruas de Campo Grande para arrancar da Assembléia a tal lei de 1982, banindo do estado as usinas. Era um de seus padrinhos. E desde 2003 estava de novo em campanha para salvá-la do assédio político.
Calmo e conciliador
Nunca levou a sério a conversa de que as destilarias do Pantanal seriam limpas. “Nenhum técnico, nem empresa, nem o governo pode garantir que não haverá um desastre ambiental”, ele declarou em março, quando o assunto recrudesceu na imprensa local. Porque “o Pantanal é uma planície, com ciclo natural de cheia e seca”. Qualquer coisa que afeta esse regime de águas pode mudá-lo para sempre.
E ele está cada vez mais ameaçado pelos projetos mirabolantes, como as hidrovias do Paraguai, os pólos de mineração e, como não poderia deixar de ser, a soja, que é a última aposta pesada do Brasil no velho modelo da monocultura insustentável. Só na região de Bonito, o Ministério Público flagrou 60 carvoarias clandestinas, tirando da mata nativa a energia que abastece as siderúrgicas e mineradoras. Contra elas, a resposta da administração pública foi um projeto de lei que, até dezembro, promete regularizá-las.
Francisco Ancelmo presidia a Fundação para a Conservação da Natureza de Mato Grosso do Sul. Era uma ONG pequena, a primeira do estado, que concentrava seus esforços no front político. Quem lida com meio ambiente em Mato Grosso do Sul costumava encontrá-lo em debates. Era tido como moderado. “Calmo e conciliador”, segundo Márcia Brambilla, superintendente da Fundação Neotrópica.
No sábado de manhã ele participou de um protesto no calçadão da rua Barão do Rio Branco, no centro de Campo Grande. Ao meio-dia, afastou-se do grupo, enrolou-se num cobertor embebido em gasolina, deitou-se num colchão igualmente empapado e se suicidou em silêncio. Deixou mulher, um filho de 12 anos, uma pequena empresa, que publicava a revista “Executivo Plus”, e 17 cartas explicando o suicídio.
Morreu domingo. “Ele queria morrer mesmo, dar a vida pelo que lutou a vida inteira”, disse no dia seguinte a viúva Iracema Sampaio. A prova, para ela, é que “quando os amigos e companheiros” tiraram do fogo seu corpo não chegaram a reconhecê-lo. Na imprensa local, saíram notas condenando “o fogo fátuo”. Mas o presidente da Assembléia, deputado Ary Rigo, falando à TV Morena depois do enterro, achou “claro que isso vai influir na decisão” da casa sobre o projeto de lei. Se influir, pode ser o sinal de que no Brasil os sensatos às vezes mudam de idéia e os insensatos têm pelo menos o direito a vitórias póstumas.
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