Reportagens

Alto-mar no microscópio

Cientistas iniciam seqüenciamento de DNA de golfinhos para comprovar uma nova espécie. O estudo inédito é obra do Gemars, ong criada há 15 anos por estudantes.

Cristina Ávila ·
13 de janeiro de 2006 · 19 anos atrás

Em 1991, um grupo de universitários gaúchos de Biologia decidiu criar uma ong para estudar animais marinhos. Quinze anos depois, o Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul (Gemars) reúne um dos maiores acervos do país sobre golfinhos e baleias, e acaba de dar um passo científico importante. Iniciou a identificação de espécies por meio do seqüenciamento de DNA. Até agora, isso era feito apenas pela análise das características físicas dos animais.

”Estamos estudando seqüências do DNA mitocondrial para confirmar a existência de uma nova espécie de golfinho no Atlântico”, afirma Larissa Rosa de Oliveira, bióloga do Gemars que trabalha no Laboratório Genômico e Molecular da PUC, em Porto Alegre. Através das informações da mitocôndria (um microorganismo das células), é possível rastrear a linhagem materna dos animais e com isso chegar à identificação de populações.

Os cientistas coletaram tecidos de “golfinhos-pintados-do-Atlântico”. Esses mamíferos vivem em águas oceânicas, a cerca de mil metros de profundidade, entre o Espírito Santo e o Rio Grande do Sul. Trata-se de um grupo isolado da espécie Stenella frontalis, encontrada do Hemisfério Norte até a Paraíba, na África e algumas ilhas oceânicas do Atlântico. Eles investigam a possibilidade de o isolamento ter provocado a evolução do grupo para uma nova espécie.

A hipótese partiu do trabalho do biólogo Ignacio Moreno, presidente da ong, que descobriu diferenças significativas no crânio e no número de dentes entre os golfinhos-pintados ao sul do país. A constatação começou com a identificação de peças do acervo do próprio Gemars. Em 15 anos de trabalho, a organização não-governamental conseguiu reunir 1.267 esqueletos inteiros ou cabeças de baleias, botos, golfinhos, lobos, leões marinhos e focas da costa gaúcha.

Para comprovar as diferenças morfológicas dos golfinhos-pintados, Ignacio mediu crânios de animais encontrados ao longo da costa e investigou dados em mais de 20 museus do Brasil, Argentina e Uruguai, além do Museu de História Natural de Nova Iorque e do Museu Nacional de História Natural de Washington.

As conclusões do biólogo, somadas aos resultados de pesquisas de outros cinco colegas sobre a distribuição dos Stenella no Atlântico, resultaram em um artigo publicado em setembro na revista científica Marine Ecology Progress Series. A novidade repercutiu e gerou um convênio entre o Gemars e pesquisadores da Universidade de San Diego, Califórnia. A parceria vai ampliar as investigações do laboratório da PUC. Os norte-americanos vão fazer comparações das seqüências do DNA dos golfinhos-pintados do Brasil com outros que vivem nos Estados Unidos, Caribe e Açores. As análises devem ajudar a descobrir se o isolamento dos animais gerou apenas mudanças morfológicas ou se as diferenças indicam realmente o surgimento de uma nova espécie no mar.

As seqüências do DNA dos golfinhos foram obtidas por meio de biópsias em amostras de pele. O tecido é retirado dos animais quando eles sobem à superfície para respirar. A coleta é feita com um dardo especial lançado por balestras, equipamento usado por desportistas de arco e flecha. “Conseguimos um financiamento da Petrobrás para a coleta de amostras e para análise de informações genéticas”, relata Ignacio. Os biólogos do Gemars têm à disposição embarcações oceânicas e as coletas são feitas na Bacia de Campos, no Rio.

”Se realmente estivermos diante de uma nova espécie, a conservação se tornará ainda mais importante, pois essa população será única no mundo”, explica Ignacio Moreno. Segundo ele, os golfinhos são freqüentemente mortos pela captura acidental por redes de pesca. Os animais ficam enredados embaixo d’água, não conseguem voltar à superfície e morrem afogados. A poluição costeira e do alto-mar também são ameaças.

Descobertas do Gemars

O Rio Grande do Sul tem a maior diversidade de cetáceos da costa brasileira. A variedade se deve ao encontro da corrente marinha denominada “Brasil” — de águas quentes vindas da altura da linha do Equador — com a corrente “Malvinas” — de águas frias vindas do sul do continente. Assim, de acordo com a estação do ano aparecem no mar do estado animais de diferentes regiões do Atlântico.

Por causa das extensas praias com poucos acidentes geográficos, os biólogos gaúchos têm facilidade em encontrar animais para pesquisa. O Gemars tem a segunda maior coleção osteológica de mamíferos marinhos do Brasil. O menor esqueleto é de um filhote de toninha de 90 centímetros. O maior, de uma baleia-de-Bryde, com 16 metros. A estrutura óssea completa da baleia foi recolhida para ser montada no Museu de Ciências e Tecnologia da PUC. A maior coleção desse tipo é do Laboratório de Mamíferos Marinhos da Universidade Federal de Rio Grande (Furg), no litoral sul do estado.

O primeiro trabalho sistemático sobre cetáceos no litoral norte do Rio Grande do Sul é do Gemars. “Quando começamos, em 91, não tínhamos nem professores especializados nesse assunto aqui em Porto Alegre”, lembra Ignacio, que aos 18 anos foi um dos fundadores da organização não-governamental. Nos últimos 15 anos, a ong acrescentou cinco espécies à lista da fauna marinha gaúcha: o golfinho de dentes rugosos (Steno bredanensis), o golfinho-pintado-do-Atlântico, o golfinho-de-Clymene (Stenella clymene), a baleia de bico de Arnoux (Berardius arnuxii), identificada há dois anos e antes disso só com um exemplar descrito em São Paulo, e o golfinho de Fraser (Lagenodelphis hosei), que nunca havia sido registrado no Brasil.

O Gemars tem como associados apenas seis biólogos, todos com doutorado ou mestrado, um voluntário para tarefas diversas e cinco estagiários. Entre eles, uma jovem seduzida pelp trabalho depois de fazer um curso de cinco dias sobre mamíferos marinhos. Os cursos são ministrados pelos biólogos como meio de arrecadar recursos para pesquisas. A organização é sustentada com pouco. Funciona na praia do Imbé, numa sala emprestada pelo Centro de Estudos Costeiros Limnológicos e Marinhos da UFRGS (Ceclimar), com quem tem convênio desde 1992.

Os biólogos não recebem nenhum dinheiro pelas pesquisas, apenas bolsas de mestrado e doutorado. Mas compensa. Larissa de Oliveira entrou na ong em 1994 e, por conta do prestígio da instituição, conseguiu fazer estágios em laboratórios de estudos genéticos no Peru e na Inglaterra. “O Gemars abre portas”, reconhece a pesquisadora.

* Cristina Ávila é jornalista freelancer em Porto Alegre.

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