A pouco mais de 100 quilômetros da capital federal — sede de vários órgãos públicos responsáveis por não deixar problemas como esse acontecer — cresce a ocupação irregular do entorno do lago da usina hidrelétrica de Corumbá IV, com sede em Luziânia (GO).
De acordo com relatos de fazendeiros da região, da noite para o dia surgem casas em lotes entre 150 e 800 metros quadrados, próximos ao reservatório. Alguns em futuros condomínios fechados. Pela lei, lotes rurais têm que ter no mínimo 20 mil metros quadrados (2 hectares). Nessas áreas, consideradas de preservação permanente por margearem o lago, tratores rasgam a terra e colocam abaixo porções de mata para fazer avançar os loteamentos.
Como uma batata quente, as denúncias passam de mão em mão entre as autoridades. Procurado pela reportagem de O Eco, o Ibama informou que “por enquanto não tem nada a dizer”, mas recomendou que o fato fosse notificado ao Ministério Público “o quanto antes”. Quem bate no Ministério Público Federal em Brasília ouve que as irregularidades devem ser encaminhadas à Procuradoria da República em Goiás. Esta última não recebeu qualquer reclamação até o momento.
Contratos inválidos
A situação acontece em um momento de indefinição quanto à situação fundiária do entorno do lago artificial. Durante a construção da barragem e enchimento do lago, iniciado em 2002, o consórcio Corumbá Concessões firmou contratos com pelo menos 34 fazendeiros e chacareiros para que pudessem usar uma faixa desapropriada de cem metros nas margens do reservatório, desde que se comprometessem a proteger a vegetação.
Mas esses acordos foram considerados irregulares. A suspensão dos contratos era uma das condições necessárias para o início do funcionamento da usina, conforme Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado entre a Corumbá Concessões, Ministério Público Federal e Ibama. Com isso, a empresa cancelou os acordos pela via judicial. A gritaria dos fazendeiros começou nos últimos dias, quando foram informados sobre a mudança nas regras do jogo.
A decisão se baseou no Código Florestal, que protege integralmente Áreas de Preservação Permanente (APPs) como entorno de nascentes, córregos, rios e reservatórios naturais ou artificiais. Desta forma, seria ilegal ceder APPs desapropriadas com o compromisso de que fossem preservadas pelos antigos donos “por 35 anos”, como previam os contratos, uma vez que as áreas já são protegidas por lei.
Os acordos serviram inicialmente como “agente facilitador” das desapropriações. Agora que foram derrubados, a Corumbá Concessões deverá abrir novamente o bolso e engrossar o valor das indenizações.
APPs liberadas
As regras de uso do “litoral” ao longo do reservatório também devem ser atingidas pela polêmica resolução aprovada pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), liberando várias formas de utilização das APPs. Quando for publicada no Diário Oficial da União, nos próximos 30 dias, a resolução permitirá a abertura de acessos e trilhas e a construção de pequenos ancoradouros e rampas para barcos em APPs, atividades consideradas de baixo impacto.
A brecha pode significar a salvação da lavoura para empresários que desejam investir em turismo às margens do lago. Já para os fazendeiros, significa mais dor de cabeça. Desde o enchimento do lago, Ricardo Almeida já trocou quatro vezes o cadeado e a corrente do portão da sua Fazenda São Judas Tadeu, em Alexânia, insistentemente cortados por invasores. Para ele, o fim do contrato firmado com a Corumbá Concessões é uma ameaça à região. “Pelo contrato, eu ajudaria a preservar essa área. Agora não tenho mais responsabilidade”, diz o advogado. A fazenda tem sete quilômetros de margem à beira do reservatório.
O aposentado Antônio Carlos Pinheiro é outro que se diz prejudicado. Ele mora há 20 anos em Alexânia e, com o enchimento do lago, sua casa ficou a meros 20 metros da água. Foi um dos que assinaram aquele contrato com a Corumbá Concessões. Agora, com o fim dos acordos, ele vai ter que sair de lá ou mudar a casa para fora da faixa dos 100 metros. “Pelo acordo não poderiamos construir nada na APP, e eu cumpri isso. Não estou agredindo o ambiente”, diz.
A Corumbá Concessões, responsável pela usina e pela faixa do entorno do lago, afirma não ter conhecimento das ocupações irregulares. Por meio de sua assessoria de imprensa, garante que toda a margem do reservatório será reflorestada com espécies nativas e “doada” ao Ibama. A empresa também informou que foi elaborado um Plano de Ocupação do Solo para o entorno do lago. A proposta está sendo analisada pelo Ibama.
Valorização
O cancelamento dos contratos não é suficiente para o Ministério Público Federal. No dia 14 de fevereiro, a Procuradoria Regional da República da 1ª Região entrou com recurso pedindo a suspensão das operações da usina. Alega que o Ibama concedeu licença de operação à hidrelétrica sem que uma série de requisitos ambientais fosse atendida.
A polêmica usina foi inaugurada, com toda a pompa, no dia 4 de fevereiro. A cerimônia reuniu os governadores Joaquim Roriz, do Distrito Federal, e Marconi Perillo, de Goiás, além do ministro das Minas e Energia, Silas Rondeau. Capaz de gerar 127 megawatts, calcula-se que poderá suprir com energia uma cidade de 250 mil habitantes.
A corrida desordenada à região se deve à valorização da terra e à aposta na formação de um pólo turístico a partir do uso do reservatório, o que foi estimulado pelos governos do Distrito Federal, sócio no empreendimento de R$ 600 milhões, e de Goiás. “Esse lago é cinco vezes maior do que o Lago Paranoá, portanto terá condições de trazer um grande desenvolvimento do turismo para a região. Aqui, nós teremos resorts e complexos turísticos”, declarou o governador Marconi Perillo ao jornal Tribuna do Brasil.
Em Abadiânia, o prefeito Itamar Vieira Gomes (PTB) acredita em um salto turístico já em 2006. Um empreendimento com cerca de 700 residências, marinas e até um aeroporto está previsto para ser construído às margens do lago.
Corumbá IV levou asfalto e estimulou a compra e venda de terras na região. Nos classificados de jornais goianos e na estrada de acesso à usina, em Luziânia, anúncios oferecem chácaras, sítios e fazendas que tiveram seu valor multiplicado em muitas vezes com o empreendimento. Algumas terras saltaram de R$ 6 mil a R$ 8 mil o alqueire (5,8 hectares) para até R$ 150 mil.
O crescimento do turismo e da pesca sem controle já deixa suas marcas: latas de cerveja, garrafas, absorventes femininos, fraldas e toda sorte de lixo se acumulam em alguns pontos às margens do lago. Os donos do Hotel Fazenda Raizama, a 14 quilômetros do centro de Alexânia, chegaram a bloquear a estrada em frente à sua propriedade para evitar o acesso de turistas ao lago.
Ocupação semelhante ocorreu às margens do Lago Paranoá, em Brasília. O problema até hoje não foi resolvido, e mansões de luxo se espalham ao longo da APP. Mas como Área de Preservação Permanente agora é algo muito relativo, pode ser que em Corumbá IV se repitam livremente os mesmos erros cometidos na capital federal.
* Aldem Bourscheit é jornalista em Brasília.
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