Reportagens

Olha o passarinho

Observar aves não é o tranqüilo passatempo que parece. Em uma expedição com biólogos à Serra da Canastra, sete dias ensinam muito sobre a aventura de pesquisar.

Aline Ribeiro ·
17 de março de 2006 · 18 anos atrás

“Escuta. Será que é o Culicivora caudacuta?”, pergunta o ornitólogo Luís Fábio Silveira (foto), da Universidade de São Paulo (USP), ao ouvir um canto logo à frente. Mais alguns segundos de observação e já surge outra hipótese. “Claro que não, este lugar é bom para Coryphaspiza melanotis”, sugere o fotógrafo de natureza e biólogo Robson Silva e Silva.

Parece conversa de cientista maluco, mas esse tipo de diálogo é comum em viagens cujo principal objetivo é procurar e identificar aves. Reconhecer os bichos, definitivamente, não é tarefa para principiantes. É preciso ter bom ouvido, visão aprimorada, além de excelente memória e muito conhecimento. Para quem tem prática de campo, um som ao longe é mais que suficiente para arriscar – e, na maioria das vezes, acertar – o nome científico do animal. Os iniciantes conseguem, no máximo, enxergar um vulto passando adiante. “Nossa! Como eles sabem qual é a espécie olhando de tão longe?”, espanta-se o hoteleiro Bruno Barcelos, que acompanha a expedição com a mesma atenção de um aluno dedicado.

A cena aconteceu no início de março, num dos locais imprescindíveis na lista de roteiros para a prática de birdwatching (observação de aves) no Brasil: o Parque Nacional da Serra da Canastra. Durante sete dias de idas e vindas à unidade de conservação no sudoeste de Minas Gerais, acompanhei os biólogos Silveira e Silva na coleta de informações e imagens para o livro que estão preparando sobre o local. Percorremos quase mil quilômetros dentro e ao redor do parque, em busca dos animais que freqüentam a região e compõem as paisagens procuradas por milhares de turistas de todo o mundo. A visitação cresce a cada ano. Em 2000, quase 20 mil pessoas passaram por ali. No ano passado, o número subiu para cerca de 27 mil.

Localizada num cenário fascinante de cerrado, a Serra da Canastra é um dos poucos lugares onde pode ser avistado o pato-mergulhão – uma das dez espécies aquáticas mais ameaçadas de extinção do planeta. E a vedete da Canastra não é só o pato. O lobo-guará, o tamanduá-bandeira, os tucanos de bico verde-e-amarelo e inúmeras outras espécies típicas do cerrado vira e mexe dão o ar de sua graça na região.

Sorte grande

Vida de biólogo não é fácil. O sucesso de uma missão depende de uma série de fatores que normalmente não estão sob controle do pesquisador. Por isso, é bom começar a contar com a sorte. Você pode andar horas e horas debaixo do sol escaldante e não encontrar um passarinho sequer. Por outro lado, é absolutamente possível contornar a primeira curva do roteiro e dar de cara com uma espécie rara ou até mesmo desconhecida da ciência. Paciência e bom humor são indispensáveis.

No primeiro dia da expedição, pode-se dizer que ganhamos na loteria. Nas águas transparentes do rio São Francisco, um casal de patos-mergulhões nadava tranqüilamente com seus três filhotes. Pareciam nem se importar com a presença de turistas ali do lado.

Ficamos razoavelmente próximos dos bichos. Começou então a corrida contra o tempo para preparar os equipamentos e fotografá-los. Em minutos eles poderiam voar e levar a chance que tínhamos de registrar o momento. Enquanto Silva tirava do automóvel as lentes de mais de 8 mil dólares que aproximariam os patos, corri em direção ao rio para observá-los melhor. Ansiosa para entender cada detalhe que conhecia somente pelos livros, acabei esquecendo de tirar fotos. Isso mesmo. Quando me dei conta, os mergulhões já tinham saído da água e alçado vôo – como se estivessem vindo na direção do meu binóculo. A imagem ficou só na memória.

De plumagem escura e pés vermelhos, o pato-mergulhão tem diversas características curiosas. Uma delas é que, depois da reprodução, torna-se possível distinguir o macho da fêmea pela presença ou ausência de uma espécie de penacho. Quando copulam, o macho “agarra” a fêmea pelo topete e, com o bico afiado, acaba por cortá-lo. A vocalização do bicho é outra marca interessante. Ao invés do tradicional quá-quá emitido pela maioria de seus parentes, o mergulhão costuma se comunicar com uma espécie de latido, bem parecido com cachorro mesmo. Habitam apenas águas límpidas e correntes, nas quais conseguem enxergar os peixes que vão lhe servir de alimento. Quase extintas, são figurinhas difíceis da fauna brasileira. Muitos pesquisadores nunca conseguiram botar os olhos em um. Também não é raro birdwatchers procurarem a Canastra exclusivamente para ver o pato e saírem de lá frustrados.

Outros encontros

As surpresas do primeiro dia não ficaram restritas aos mergulhões. Retornávamos já sem muitas pretensões de encontrar outros bichos — afinal, já tínhamos ganho o dia com o pato — quando encontramos um casal de veados-campeiros pastando bem perto do automóvel. Com o veículo já desligado, o biólogo Luís Fábio Silveira apenas soltou o freio-de-mão para que nos aproximássemos um pouco mais. Ainda dentro da caminhonete, o fotógrafo Robson Silva e Silva disparou a máquina para garantir uma grande quantidade de imagens. Depois disso, arriscou descer do carro e caminhar em direção aos mamíferos. “Fica contra o vento”, propõe Silveira ao fotógrafo. A artimanha é utilizada nestas situações para que o bicho não sinta o cheiro da pessoa e fuja em disparada.

No outro dia, o fator sorte não ajudou. A chuva durante a noite atrapalhou bastante a ida até o parque. A alguns lugares só se consegue chegar com veículos off-road. Mesmo assim nos arriscamos, porém sem sucesso. A água abundante espanta um pouco os bichos. À medida que nos aproximávamos do rio São Francisco, já era possível ver que sua cor não estava propícia para o pato-mergulhão. Ele realmente não estava lá. Aliás, não conseguimos mais encontrá-lo até o final da viagem.

Terceiro dia de expedição. Estávamos a alguns quilômetros de uma das porteiras do parque, quando os biólogos avistaram uma ave grande pousada a uns 800 metros do carro. Permanecia parado em cima de uma das muitas torres de transmissão de Furnas e Cemig que cortam a Serra da Canastra. De longe, não era possível identificar o bicho. Mas nada que o binóculo de mais de mil dólares não resolvesse. Alguns minutos de tensão e veio a certeza. Era mesmo a águia cinzenta. Extremamente difícil de ser vista (estima-se que nos 71.525 hectares de parque existam apenas três casais), ela sobrevoa veredas e matas ciliares, constrói o ninho com galhos secos e chega a ter dois metros de envergadura. “Esse bicho é lascado de ver. Por isso é muito difícil trabalhar com ele”, conta Silveira.

Enquanto os pesquisadores embrenharam-se na mata em busca dos melhores ângulos, o animal permaneceu na torre. Foi quando percebemos que eram duas as águias cinzentas. O casal costuma “andar” junto. Assustados, piavam incessantemente, para a agonia dos biólogos. Agonia por estarem sem o aparelho necessário para gravar a vocalização do bicho. “Poxa, estou sem meu microfone”, lamentou Silva, lembrando que o equipamento estava no conserto. E o pior é que o microfone de Silveira também se encontrava quebrado. Nenhum ornitólogo brasileiro tem o canto dessa ave. No dia seguinte, nos deparamos de novo com os bichos, que, mais uma vez, não paravam de cantar – como se zombassem da situação dos pesquisadores.

Chamando os bichos

Até onde consegui computar, em sete dias de expedição vimos mais de 25 das 354 espécies de aves que o Ibama estima haver na Serra da Canastra. Algumas são tão comuns por lá que poucos lhes dão atenção, como acontece com o carcará (foto). Outras são um pouco mais difíceis. Para chamar sua atenção, os observadores de pássaros, guias turísticos e biólogos usam a seguinte técnica: ligam um aparelho sonoro – antigamente usavam gravadores, hoje preferem o MP3 – em que a voz do animal está gravada e o atraem com esse canto. “Alguns ficam muito bravos. Já aconteceu de um passarinho bicar o gravador sem parar. Eles acham que é um amigo que está em apuros”, supõe Silva. 

Entre uma e outra ave que cruza a frente do automóvel com velocidade, encontramos o tamanduá-bandeira. Razoavelmente comum na Canastra, o bicho normalmente fica por perto dos grandes cupinzeiros, também abundantes na região.

Uma das noites da viagem foi reservada para a busca de animais noturnos. Sapos, pererecas, lagartos ou qualquer outro bicho que se interessasse em ser flagrado pelas lentes de Silva. Quase duas horas rodando, muitos borrachudos pelo caminho e… apenas uma perereca nos deu a honra de ser vista. Depois de capturá-la, os biólogos procuraram um local ideal para fazer a foto. Para que ficasse bem quietinha, mais um truque: molharam-na com água ligeiramente gelada. Como é um anfíbio, a temperatura de seu corpo varia de acordo com o ambiente – o que faz com que fique estática por algum tempo.

Ócios do ofício

Saber lidar com imprevistos também faz parte da aventura de procurar bichos. Como havia chovido muito nos dias anteriores, as estradas do Parque Nacional não estavam boas. O destino naquele dia era uma cachoeira (foto ao lado) distante e de difícil acesso. Já sabíamos, porém, que a vista do local compensaria os desafios. Seguimos em frente. A caminhonete, uma D20 emprestada pela USP, não conseguiu concluir o percurso. Encalhamos num local bastante distante. Uma hora de tentativas não foi suficiente para desatolar o veículo. A portaria do parque mais próxima estava a mais de 40 km dali. Depois de muito sol na cabeça numa caminhada de 7,5 km, conseguimos enxergar a casa ao longe e um carro – que supostamente nos levaria de volta ao nosso veículo.

“Vocês querem a má notícia, a ruim ou a péssima?”, disse o hoteleiro Bruno Barcelos, que nos acompanhava naquele dia, sem perder o bom humor. “A dona da fazenda não está. Eles não têm trator. E aquele Corcel não funciona”, anunciou.

Resultado: comemos algumas lascas de queijo para enganar o estômago, percorremos os 7,5 km nos revezando nos dois únicos cavalos que poderiam nos levar de volta, e contamos com a ajuda de dois moradores da região para desatolar o veículo. Empurra aqui, ergue dali. A brincadeira durou cerca de cinco horas. Assim que conseguiram desencalhar a caminhonete — o que rendeu grande comemoração, proporcional ao tamanho da nossa fome e cansaço — o carro caiu em outro buraco. “Vixi. Agora engastaiou de vez”, disse João da Silva, que ajudava a tirar o automóvel da lama. Mesmo com a previsão pessimista, desta vez o resgate demorou menos.

No retorno, a recompensa. Quando nem pensávamos mais em olhar ao redor à procura de algum animal, um lobo-guará (foto abaixo) passou para o outro lado da estrada. Estava em busca de algo para comer. “Acompanhar bicho é assim mesmo. Cinco horas de tédio e 40 segundos de adrenalina”, comemora o ornitólogo Luís Fábio Silveira. O fotógrafo Robson Silva e Silva que o diga. Em outra ocasião, chegou a ficar mais de oito horas esperando um papa-mosca-do-campo voltar para o ninho. “O bicho precisava se acostumar com a minha presença para dar comida aos filhotes”. Em outra situação, fez rapel de 70 metros só para ver de perto um urubu-rei.

Não importa se profissionais ou amadores, os observadores de pássaros têm grande paixão pelos bichos. Luiz Fábio Silveira, quando tinha 8 anos, preferiu ganhar de Natal o livro “Aves do Brasil” a ter sua primeira bicicleta. Até hoje não se dá muito bem com velocípede de duas rodas. Em contrapartida, é referência no meio acadêmico quando o assunto é ave. Pelo que parece, essa paixão está se tornando cada vez mais comum por aqui. O número de birdwatchers está crescendo e as agências e pousadas estão mais preparadas para receber os clientes. “Em junho, teremos o primeiro evento voltado exclusivamente para observação amadora de pássaros. Já temos os congressos de ornitologia, mas não são focados no turismo”, informa o tesoureiro da Sociedade Brasileira de Ornitologia (SBO), Iuri de Almeida Accordi.

Hoje, cerca de 500 pessoas são associadas à SBO, nem todos profissionais. “Temos os que observam pássaros porque gostam e os que trabalham com isso”, comenta Accordi. Ele explica que a ornitologia não é uma ciência restrita à biologia. “Temos engenheiros civis que se especializaram na área e hoje ganham dinheiro prestando consultorias e fazendo pesquisa sobre aves”. Ou seja, metendo o pé na lama.

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