Reduzir a área de um parque integralmente protegido pode ser benéfico para o meio ambiente? Políticos, lideranças comunitárias e empresários de cidades litorâneas na região de Florianópolis juram que sim.
Eles criaram um movimento pela “recategorização” do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, o maior de Santa Catarina, e já têm em mãos um Projeto de Lei para colocar seu plano em prática.
Recategorização quer dizer, em bom português, a transformação de parte do Parque em Área de Proteção Ambiental (APA). Ou, para ser mais claro ainda, a transição de uma categoria onde a preservação ambiental é total para outra onde praticamente vale tudo. Pela proposta, o Parque da Serra do Tabuleiro perde mais 10% de sua área atual, passando de 90 mil hectares para exatos 78.853.
O movimento nasceu há cerca de um ano, dizendo ter “sinal verde” do governador Luiz Henrique da Silveira (PMDB), e desde então vem arrebanhando adeptos entre moradores e políticos dos municípios de Palhoça, Paulo Lopes, Garopaba e Florianópolis. O principal argumento é de que o estado não cumpriu seu papel desde que o Parque foi criado, em 1977. Ou seja, não indenizou quem morava na área e não soube cuidar de sua preservação, crescentemente ameaçada pela pressão imobiliária sobre o lindo cenário que une praias, florestas e montanhas. Com sua condição de vida aviltada pela total ausência do poder público, o que querem os moradores? Ganhar o direito àquelas propriedades, para juntos ordenar seu uso e proteção.
“São trinta anos de desinformação, falta de conduta dos órgãos gestores no cumprimento das obrigações básicas e mínimas de implementação de uma unidade de conservação”, alega Renato Sehn, dono de magnífica pousada na Ilha do Papagaio, por sinal um exemplo de conservação. “Somos totalmente contrários à especulação imobiliária que está acontecendo”, continua. Renato é o líder do movimento, e entusiasma-se com seu caráter “democrático”. “Pela primeira vez na história de Santa Catarina um movimento da sociedade civil se organiza contra o que o estado está fazendo nesta região. Nosso projeto quer manter essa maravilhosa área da Serra do Tabuleiro, que todo mundo defende”, diz.
Gente como gado
O problema é que essa proposta de “defesa” da região não é nada consensual. Pelo contrário. Desde março, o que se assiste na cena ambiental catarinense é uma pesada troca de acusações entre os defensores da recategorização, ambientalistas, Ministério Público e o governo do estado.
“Eles põem gente como gado dentro dos ônibus, dão lanche e lotam a Assembléia Legislativa, depois chamam de audiência pública para legitimar. Não houve sequer chance de algum ambientalista contestar a proposta”, diz Elizabeth Forneck Albrecht, da ong Gigante Espírito do Tabuleiro (GET), que na semana passada assinou, ao lado de outras 25 instituições ambientalistas, uma carta ao governador pedindo para que ele, antes de apreciar o Projeto de Lei, promova um amplo processo de consulta popular.
O projeto chegou às mãos de Luiz Henrique da Silveira no dia 6 de março. O texto não se limita a reduzir a área do Parque e criar em seu lugar a APA Costeira do Maciambu (clique para ler em PDF). Na verdade, ele também cria o Parque novamente. O que, para o promotor José Eduardo Cardoso, representa um risco ainda maior do que os 10% em questão. Isso porque o texto fala que o novo Parque deve ocupar somente áreas públicas. Como 88% das propriedades privadas da Serra do Tabuleiro ainda não foram desapropriadas, na prática o projeto de lei inviabiliza a preservação ambiental. “Pulveriza o restante do Parque todo”, diz Cardoso.
Desde 2001, ele chefia a primeira Promotoria temática na área ambiental do estado. Dedicada, exclusivamente, ao Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. E acha que foi justamente a atuação mais forte do Ministério Público na área que gerou a reação dos proprietários ilegais. “Até então, o poder público fingia que existia Parque e as pessoas fingiam que obedeciam regras”, resume. Com a abertura de centenas de ações civis públicas contra os invasores, casas lacradas e 23 demolições desde 2003, era de se esperar que a Promotoria passasse a despertar antipatia. Ainda mais porque o caso envolve gente endinheirada e poderosa. Como o ex-governador Casildo Maldaner, que chegou a construir, em seu terreno invadido dentro do Parque, tanques para a criação de peixes com financiamento público. Obviamente, sem licença ambiental. Agora responde a processo.
“A Fatma (fundação ambiental estadual) e o promotor estão estraçalhando a sociedade local”, desabafa Renato Sehn. Ele acusa os órgãos de forçarem moradores humildes do entorno do Parque a assinarem Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) para não terem suas casas demolidas. Diz que há “30 mil famílias” nessa situação. Depois, questionado sobre quantos moram dentro do Parque, reconhece que o número não passa de 3 mil pessoas.
Ambientalistas estranham que o abaixo-assinado a favor da redução do Parque tenha conseguido colher 8 mil assinaturas. Mais do que o dobro de quem está dentro da área protegida. “A maioria dos que assinaram mora fora do Parque. Essas pessoas estão sendo enganadas, porque a região onde moram é que vai virar APA, e assim elas terão mais restrições ambientais”, explica o promotor.
Renato Sehn defende seus métodos. “Vamos levar caminhões e caminhões de povo inconformado com a situação. É a pura democracia acontecendo. Por que os ambientalistas não enchem caminhões e caminhões? Contamos com o apoio de gente que mora em Porto Alegre, Curitiba ou Lages, e tem casa aqui. Por que não? Todos estão legítimos para falar de suas casas”, argumenta. Sobre seus próprios interesses no assunto, diz que está negociando um TAC com o Ministério Público. A pousada da Ilha do Papagaio foi construída na área do Parque em 1993, sem licença ambiental. Segundo José Eduardo Cardoso, não há muita alternativa: a situação só será regularizada se todas as construções da ilha voltarem ao estágio em que estavam antes da criação do Parque Estadual. Ou seja, o hotel terá que sair dali.
TAC tabelado
Não à toa, o empresário do turismo dedica-se de corpo e alma ao projeto. E a atacar a Fatma e o Ministério Público. Menciona em empréstimos totalizando 180 milhões de dólares junto ao banco alemão KFW e ao Banco Mundial, que a fundação estaria omitindo, sem prestar contas. “Onde foram parar os 180 milhões da Fatma?”, questiona Sehn.
O promotor José Eduardo Cardoso diz que o banco alemão de fato concede ao estado recursos do Projeto de Preservação da Mata Atlântica (PPMA), mas que eles somam cerca de 14 milhões de euros, e cada parcela é de 750 mil. Além disso, há mais 1,5 milhão de dólares dia Global Environmental Fund (GEF). “E corremos risco de perder grande parte desses valores se o Parque for recategorizado”, avisa Cardoso.
O deputado estadual Vânio dos Santos (PT), que preside um recém-criado Fórum Parlamentar para discutir a recategorização, fala de uma prática inusitada da Fatma e da Promotoria. “Eles fizeram uma tabela para cobrar TAC dos proprietários. É 10 reais por metro quadrado para casas de madeira, 15 reais para mistas e 20 reais para casas de alvenaria”.
Em se tratando da Fatma, dado o acúmulo de escândalos que a instituição protagonizou recentemente, o esquema assusta. Soa a arrecadação desenfreada e sem critério.
Mas José Eduardo Cardoso não apenas confirma a tabela como a justifica. Diz que os acordos só valem para fora do Parque, em áreas urbanizadas com dano ambiental irreversível. Como não havia condição de contratar especialistas para avaliar caso a caso, lançaram mão dessa “fórmula simplificada”, junto com a Prefeitura de Palhoça, há uns três ou quatro anos. Além do pagamento, exigem do proprietário o tratamento de esgoto, que não ocupe mais de 30% do lote com construções e que substitua espécies exóticas por nativas. “O intuito maior não é arrecadar valores”, explica. Reconhece que o dinheiro obtido é “muito”, mas informa que ele é destinado ao Fundo Municipal de Meio Ambiente de Palhoça. Quem quiser checar o uso da verba, portanto, deve procurar lá.
O que é altamente aconselhável, pois aquela prefeitura já deu mostras de não se preocupar muito com a preservação ambiental. Além de compor o movimento pela redução do Parque da Serra do Tabuleiro, recentemente tentou emplacar, em seus domínios, um Projeto de Lei que aumentava os gabaritos para construções na região litorânea. Acabou derrubado.
Projeto gaúcho
Foi aliás a prefeitura de Palhoça que, oficialmente, encomendou o estudo técnico que resultou no tal Projeto de Lei que “recria” o Parque. O know-how, eles foram buscar fora do estado, mais precisamente junto aos técnicos gaúchos que bolaram a transformação do Parque Estadual do Delta do Jacuí em APA, em 2004. Mudança feita por decreto que até hoje é contestado na Justiça.
Em Santa Catarina, tudo indica que o movimento de recategorização não deve chegar tão longe. O governador deixou a avaliação do projeto nas mãos da Fatma, que já tem posição fechada: “Somos contra. Não existe nenhum embasamento técnico nem jurídico na proposta. Nunca foi apresentado nenhum estudo que apontando que a área costeira do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro seja passível de se transformar em APA ou qualquer outra categoria que não seja de proteção integral”, disse a bióloga Ana Cimardi, diretora de Proteção dos Ecossistemas da fundação, na noite desta terça-feira.
Ela acabava de sair de uma reunião de mais de sete horas de duração na Assembléia Legislativa. Foi o primeiro encontro do Fórum Parlamentar Permanente criado na Casa para discutir a situação do Parque. Primeiro de uma série, ela diz, pois “a população está muito mal informada”.
A técnica da Fatma reconhece os erros históricos na gestão do Parque — “Por muito tempo o estado não cumpriu seu papel como deveria” — e classifica como legítimo o anseio das pessoas por resolver suas pendências ambientais. “Mas 99% delas estão fora do Parque”, ressalva Ana Cimardi, referindo-se à Área de Proteção Especial do entorno, cujas regras, definidas por lei estadual, a fundação estuda flexibilizar.
Se toda crise é uma oportunidade, a da Serra do Tabuleiro está sendo propícia para a revisão pública do papel de todos os atores responsável por preservar aquele precioso 1% de Santa Catarina, e suas florestas, dunas, pântanos, mangues, restingas e campos de altitude. Se a área do Parque for afinal mantida como está, o resto da polêmica é lucro.
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