Reportagens

Na pele do bandido

A apreensão em Belém de 103 animais mortos sob responsabilidade de um pesquisador evidenciou como é fácil confundir cientista com traficante no Brasil.

Vandré Fonseca ·
13 de abril de 2006 · 18 anos atrás

Na manhã do dia 10 de abril, o primatólogo André Ravetta, bolsista da Conservação Internacional, desembarcou no Aeroporto Internacional de Belém com duas caixas de isopor de 240 litros. Nelas, carregava peles de 103 animais, principalmente macacos, abatidos durante uma expedição à Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) de Cujubim, interior do Amazonas.

Ele tinha autorização para abater os animais, dada pela gerência regional do Ibama de Manaus. Tinha também a licença para transporte das peles. Mas André Ravetta cometeu um erro, que acabou custando R$ 51,5 mil em multas por infração à Lei de Crimes Ambientais e o vexame de ver o próprio nome em manchetes de jornais associado a biopirataria e trafico de animais.

Os animais deveriam ter ficado em Manaus, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), fiel depositário dos espécimes abatidos conforme a licença dada pelo Ibama. Mas o pesquisador pretendia examinar o material coletado em campo no Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém.

Ravetta virou notícia porque a apreensão foi divulgada pela assessoria de imprensa do Ibama, em Belém, como um caso suspeito de tráfico de animais e biopirataria. Acusação da qual o pesquisador se defende. “Eu cometi um erro, mas não sou biopirata, não sou traficante”, afirma Ravetta, que integra a organização não-governamental Sapopema. “Eu não cheguei a ser preso, como foi divulgado. Meu medo é perder a primariedade e não poder mais fazer concurso público”, afirmou.

Aos olhos do técnico do Ibama e do fiscal da Receita Federal que fizeram a apreensão, o abate dos animais foi uma carnificina sem sentido. Opinião que deixou Ravetta espantado. “Eles não têm o conhecimento necessário para fazer uma avaliação deste tipo. Como eles podem saber quantos animais são necessários para descrever uma espécie?”, questiona. O primatólogo afirma que era contra o abate dos animais até perceber sua importância para a ciência.

O chefe do Núcleo da Fauna Silvestre do Ibama no Amazonas, João Alfredo da Mota, afirmou no dia seguinte que a configuração do crime só pode ser feita após a investigação da Polícia Federal. “Para o Ibama, é um caso de infração à Lei Ambiental. Cabe ao Ibama abrir o processo administrativo”, afirmou Mota, ao esclarecer que o pesquisador não escapou da multa.

Defesa

As declarações do pesquisador foram reforçadas por notas divulgadas pelo Museu Paranaense Emílio Goeldi , pela Secretaria Estadual e Meio Ambiente e Desenvolvimento Social do Amazonas (SDS) e pela Conservação Internacional-Brasil (CI). Segundo a nota do museu, o pesquisador pecou por falta de experiência nos procedimentos do Ibama. Ele deveria pedir licença ao instituto para transportar os animais até Belém, uma falha, que segundo a nota, “colocou em risco o recebimento, a guarda, a catalogação e o estudo do material coletado”.

Entre os animais, está uma espécie de macaco com apenas três registros no Brasil. No final, o texto traz uma declaração da diretora do museu, Ima Vieira, sobre a importância científica da coleta feita por Ravetta. É a primeira coleção de animais de uma região ainda pouco conhecida da Amazônia.

A Conservação Internacional confirmou que os “espécimes apreendidos representam um subsídio fundamental para a realização de pesquisas científicas sérias sobre a diversidade biológica da Amazônia”. E que se trata de um patrimônio da ciência brasileira. “Alguns dos registros feitos na expedição representam ampliação significativa da distribuição geográfica de espécies amazônicas, que anteriormente eram conhecidas apenas de outras regiões”, diz o comunicado. Existe também a possibilidade de se identificar uma ou mais espécies nova de roedores graças à coleta. Quanto ao número de animais mortos encontrados com Ravetta, a CI argumenta que representam menos do que o número de mamíferos mortos quando se desmata um quilômetro quadrado de floresta.

De acordo com o Ibama, a licença não permitia o abate de tantos animais. Segundo João Alfredo da Mota, foi autorizada a coleta de dez animais por grupo, ou seja, dez mamíferos, dez anfíbios, dez répteis e dez aves, conforme teria sido colocado no pedido de autorização. O pesquisador entende de outra maneira. “Para mim, dez por grupo significa dez por espécie. Para a ciência, apenas dez mamíferos não teriam significado nenhum”, diz. Esta também é a leitura da CI: “A licença permite coletar até 10 indivíduos de cada espécie por localidade. A apreensão deve-se a uma avaliação errônea, que desconsidera a dimensão da RDS do Cujubim (área equivalente à do estado de Sergipe) e parte do pressuposto de que os animais coletados são originários de uma única localidade”.


Segundo a Ong, os animais foram coletados em quatro áreas distintas, separadas por mais de 40 quilômetros. Porém, tanto a CI quanto a SDS concordam que o material deveria ter passado pelo Inpa antes de sair do Amazonas.

Na relação de animais apreendidos com o pesquisador, havia guaribas (02), quatis(02), quatipurus (11), juparas (02), gatiaras (01), porco espinho (01), marsupiais (12), macacos zog zog (09), macacos prego (06), macacos parauacu (03), macaco cairara (05), macaco saguis da boca branca (09), sagüis da boca preta (05), macaco de cheiro (12); macaco barrigudo(01), cutias (02); veado mateiro (01); roedores (17) e tatu (01).

O pesquisador retornava de uma expedição inédita. Era a primeira vez que cientistas iam à Reserva de Cajubim conhecer a biodiversidade da área. Ravetta era o responsável pelo inventário dos mamíferos da região. O estudo dele vai servir de base para um plano de manejo da área. “É preciso fazer o estudo para saber, por exemplo, quantos porcos selvagens podem ser abatidos, quantos queixadas podem ser mortos”, afirma o cientista.

Limites

A polêmica reabre a discussões sobre a importância da pesquisa científica e os limites que os pesquisadores devem respeitar. No caso de Ravetta, ele reconheceu o erro nos procedimentos, mas a quantidade de animais mortos que carregava sensibiliza quem não faz parte do ambiente científico.

Em nome da ciência, nas duas apreensões, foram encontrados mais de duzentos animais abatidos. A prática é defendida pelos pesquisadores, que justificam as mortes com argumentos sobre a importância do conhecimento científico para proteger o próprio Meio Ambiente. A morte de alguns serviria para salvar a vida de muitos outros.

O paleontólogo Peter Mann de Toledo, ex-diretor do Museu Emílio Goeldi e membro da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), afirma que os cientistas não são inimigos da proteção do meio ambiente, mas aliados.

“O movimento a favor da criação de áreas de preservação surgiu entre a comunidade científica”, afirma Toledo. “Quem define quais animais estão em extinção não são os órgãos de fiscalização, são os cientistas”, completa.

Para ele, é preciso acabar com o clima de suspeita colocado sobre os cientistas, que vêm sendo considerados criminosos antes mesmo de terem o direito de se explicarem. “Está havendo uma inversão, as pessoas são inocentes até que se prove o contrário, mas não é isto o que está acontecendo”, afirma.

O membro da diretoria da SBPC destaca o papel dos cientistas nas discussões sobre a preservação do meio ambiente. De acordo com ele, não se pode classificar casos como o de Ravetta como tráfico antes de uma investigação. “Mas é claro que existem situações em que fica evidente a má intenção dos cientistas, como a apreensão recente de escorpiões”, considera.

No início de abril, o Ibama apreendeu em São Paulo 50 filhotes de escorpião, que seriam enviados à Suíça como “lembranças do Brasil”. A apreensão foi feita em uma agência dos Correios, onde, alguns dias antes, foi descoberto um carregamento de 200 aranhas destinado a Alemanha. Os dois casos foram considerados biopirataria pelo Ibama.

Hoje, segundo o chefe do Núcleo de Fauna do Ibama em Manaus, o instituto tem 60 dias a partir do pedido do pesquisador para dar autorização para a coleta e transporte. É preciso apresentar diversos documentos, entre eles o projeto de pesquisa, que deve listar os animais a serem coletados e os locais de coleta. Dentro deste prazo, o Ibama pode pedir mais esclarecimentos, antes de permitir ou não a pesquisa.

Falta consenso

No caso dos animais abatidos em Cujubim, não foram os procedimentos do Ibama que prejudicaram a pesquisa, mas o erro dos próprios pesquisadores. Para Toledo, casos como este vão continuar a ocorrer enquanto o Ministério do Meio Ambiente e a sociedade científica não chegarem a um acordo sobre as normas de coleta científica em laboratórios naturais. De acordo com ele, existe um grupo formado por representantes da comunidade científica e do Ministério para discutir o assunto.

O cientista deixa claro não ser um especialista, por isto não pode comentar em particular o caso dos animais de Cujubim. Mas ele destaca a necessidade de pesquisas científicas na Amazônia até para saber como preservar e o que preservar na região. Toledo lembra que durante a COP 8, realizada em Curitiba durante o mês de março, a SBPC realizou um evento paralelo para discutir o acesso de cientistas aos laboratórios naturais. “Nós estamos agindo em duas frentes, a primeira é esta que aconteceu na COP 8 e a outra em busca de entendimento com o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente”, afirma Toledo.

Para Toledo, o Ibama tem demonstrado interesse em resolver o problema. Não custa nada lembrar que o próprio presidente do Instituto conhece os dois lados desta disputa. Marcus Barros, antes de ser chamado pela ministra Marina Silva para assumir o Ibama, foi diretor do Inpa em Manaus.

* Vandré Fonseca é jornalista formado em São Paulo, há oito anos vivendo na Amazônia. Após sete anos em Roraima, trabalhando para a TV Roraima e jornais de movimentos populares, mudou-se para Manaus. Atualmente, é repórter da TV Amazonas

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