A Bunge, uma das maiores processadoras de soja do Brasil e do mundo, deseja ser vista como um exemplo corporativo. A tarefa não é trivial. Como gigante do agronegócio, ela tem visto sua marca frequentemente associada – aqui e em outros lugares – à expansão da fronteira agrícola, leia-se soja, sobre a floresta amazônica e o cerrado.
Para mudar esta imagem, a Bunge decidiu encarar a realidade e expandir um programa para enquadrar seus fornecedores de grãos na legislação ambiental e trabalhista. A empresa começou a implantar esse conjunto de iniciativas quatro anos atrás, em consórcio com as Ongs Conservação Internacional e Oréades. Se der certo, o agronegócio brasileiro estará vendo o fim de um dos seus piores lados e hoje em dia até bastante conhecido, onde ele se mistura com invasões de terra, desmatamentos ilegais e trabalho escravo.
Esse último problema a Bunge já resolveu. No início de maio, tornou-se a segunda grande esmagadora de soja que opera no Brasil – o primeiro foi o grupo Maggi – a assinar o termo chancelado pelo Instituto Ethos comprometendo-se a excluir qualquer um de seus 60 mil fornecedores que tiver nome no cadastro do Ministério do Trabalho que lista empresas e indivíduos com processos abertos pelo uso de mão-de-obra escrava. No caso dos desmatamentos ilegais, a empresa dá ênfase a incentivos para cumprir a legislação ambiental. Mas o começo do processo é a educação, tarefa que cabe às duas Ongs envolvidas com o projeto, que começou a ser implantado em região próxima ao Parque Nacional das Emas, em Goiás.
Segundo Adalgiso Telles, diretor de comunicação e marketing institucional da Bunge, nas fronteiras do plantio da soja, quem acha que tem problema raramente vai aos órgãos ambientais para tentar se regularizar. Quem sabe que tem não vai de jeito nenhum. Ele diz que boa parte desta atitude é alimentada por desinformação. Os agricultores desconhecem as alternativas que existem à vida na clandestinidade. O programa primeiro informa sobre as opções e, se o agricultor desejar, intermedeia seu contato com as autoridades. Isso feito, técnicos das empresas e das Ongs vão avaliar o estado da propriedade e ajudam a formular um plano de recuperação da sua reserva legal, cuja cota na Amazônia é de 80%.
Parte do trabalho envolve o georeferenciamento com o auxílio de um GPS, que marca as coordenadas do terreno fazendo triangulação com satélites. Essa é a especialidade da Oréades, Ong criada por gente da região de Mineiros, próximo ao Parque Nacional das Emas, e serve para informar com precisão milimétrica a um proprietário em situação irregular qual é o tamanho do seu problema. Para as duas Ongs, a presença da Bunge no projeto vai além de assinar os cheques que financiam o trabalho. Ela lhe empresta acesso e credibilidade. Sem a participação do pessoal de campo da empresa não haveria como chegar aos agricultores. Muito menos deixar entendido que quem não se regularizar, acabará desligado da lista de fornecedores da empresa. “O programa depende muito da presença da Bunge na ponta”, diz Mario Barbosa, da CI.
A primeira aplicação prática do sistema em região de cerrado, com áreas planas já em grande parte tomadas pela soja e pelo milho determinou um plano de ação corretivo. Trata-se de recuperar o que foi arrasado, usando mudas de viveiros especialmente criados para produzir espécies nativas. A reconstituição de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e de reservas legais segue alguns critérios de planejamento. Procura-se criar o máximo de áreas contíguas para a recuperação da vegetação e há planos para ligá-las através de corredores de biodiversidade.
Propriedades monitoradas
O projeto foi, óbvio, recebido com desconfiança, mas a Bunge quebrou o gelo com uma conversa capaz de sensibilizar o bolso dos produtores. Telles diz que ela se baseia no argumento do mercado. Avisa que seus grandes clientes, em particular na Europa, não estão dispostos a continuar comprando grãos plantados ao arrepio da lei e da regulamentação. Para bom entendedor, essa conversa basta. Não é à toa que o programa da Bunge para enquadrar seus fornecedores está se provando popular onde começou a ser implantado.
A demanda ultrapassou a capacidade instalada de atendimento das Ongs. Até janeiro de 2006 o consórcio atendeu 63 propriedades no corredor Emas-Taquari, em Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, num total de 142 mil hectares. A CI diz que o trabalho já foi completado em 25 delas, cobrindo 93,5 mil hectares. De acordo com os cálculos da Ong, a legislação determina que essas fazendas deveriam ter 22,3 mil hectares de áreas protegidas, incluindo reserva legal e APPs. A área existente, no entanto, é de 12,3 mil hectares. Os 10 mil restantes estão em fase de recuperação.
No ano passado, ele foi ampliado para o sul do Piauí, o Maranhão e o Tocantins, no corredor Uruçuí-Mirador. Aqui a colonização é mais recente e há mais o que preservar. É região que já se encontra nas bordas da Amazônia. A ênfase, portanto, é a prevenção para evitar que áreas que deveriam permanecer intocadas não sejam perturbadas. O grande desafio da Bunge é como levar esse projeto para todos os seus fornecedores do Brasil. A CI, sua parceira da iniciativa no Cerrado, acha que resultados do programa até agora são positivos, mas ainda limitados. Diz que a ampliação do seu alcance depende muito de se achar Ongs com presença local, como a Oréades. É difícil, mas não impossível.
Mais complicado é uma conversa que Barbosa quer “engatar” com a Bunge insistindo que a empresa encaminhe seus outros passivos ambientais – como o uso de lenha de florestas nativas, por exemplo – antes de aumentar a visibilidade da iniciativa. Essa precaução é em parte resposta às críticas feitas ao projeto. “A CI é tecnicamente capaz, mas não tem visão de conjunto”, diz Maurício Galinkin, da Fundação CEBRAC. “A Bunge atua de maneira puramente comercial, compra lenha de desmatamento, e incentiva o plantio indiscriminado de soja, sem preocupação com condições sociais ou com a legislação. Quando eles conseguirem ampliar a aplicação do projeto, o cerrado já terá acabado”.
Para a Bunge, é uma corrida contra o tempo. Sabe que seu mercado nos países do 1º Mundo já deu sinais de que começará a exigir selo de correção ambiental para a soja que consome. Não quer perdê-lo para a concorrência. Mas a Bunge precisa fazer um pouco mais do que limpar a sua barra. Os europeus não estão só irritados com ela. Estão irritados com o Brasil. Se a produção nacional de grãos não se enquadrar à nova demanda, é possível que mesmo as esmagadoras que colocaram seus fornecedores nos trilhos acabem prejudicadas. Todas, na verdade, estão sob pressão nos seus maiores mercados. Um sinal claro disso é que o assunto virou tema freqüente de discussão na Abiove, a associação de classe dos esmagadores de soja.
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