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Depois de 41 anos do Código Florestal, São Paulo ganha decreto para regulamentar reserva legal. Ambientalistas dizem que a medida vai ser exemplo para o país.

Aline Ribeiro ·
24 de junho de 2006 · 18 anos atrás

O governador de São Paulo, Cláudio Lembo (PFL), assinou no dia 17 de junho um decreto nº 50.889 que regulamenta a obrigatoriedade da reserva legal para as propriedades rurais do estado. Na prática, a resolução do executivo não traz muitas novidades. Apenas cria mecanismos e define critérios para que os donos de terras destinem 20% de suas áreas à manutenção da floresta nativa. A regra existe desde a criação do Código Florestal, em 1965, mas até hoje não é cumprida a contento. Mesmo com a legislação vigente há mais de 40 anos, a ausência de instrumentos para a aplicação – além da passividade dos sucessivos governos – permitiu a consolidação da agricultura em até 100% de algumas propriedades.

O decreto tem como objetivo dar aplicabilidade ao Código Florestal, alterado ao longo dos anos por outras leis e medidas provisórias. Ele traça alguns caminhos para que os produtores rurais recuperem as matas exauridas ao longo dos anos pela ocupação e uso das terras com a agropecuária. Os proprietários têm prazo de 30 anos para a recomposição das matas destruídas e a permissão de plantio de espécies exóticas em suas terras.

Segundo o decreto, o produtor rural deverá apresentar ao Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais (DEPRN) um projeto técnico com detalhes da recomposição ou regeneração da reserva legal a ser implementada. Elaborado por profissional habilitado, o relatório deverá conter a descrição da área que será averbada devidamente georreferenciada. As pequenas propriedades deverão contar com o apoio técnico do DEPRN para a elaboração dos estudos.

Na opinião de Marcelo Melo, diretor de Meio Ambiente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (Irib), o mecanismo de compensação da reserva legal está entre os mais importantes que o decreto regulamenta. Agora, o produtor rural que não dispõe de cobertura original em sua propriedade pode compensá-la em outra região, equivalente em extensão e relevância ecológica, na mesma microbacia hidrográfica.

Melo também destaca a criação do cadastro eletrônico de reservas legais, indispensável para verificar se a lei está sendo cumprida. “Ele é imprescindível para o controle e levantamento estatístico das reservas florestais no estado. Pelo decreto, o cadastro deve ser implantado preferencialmente por meio eletrônico, o que facilitará muito o fluxo de informações.” Atualmente, é bastante difícil mapear a porcentagem média de mata original nas reservas legais do estado todo.

O coordenador do Projeto Biota/Fapesp, Ricardo Rodrigues, informa que existe um levantamento parcial de áreas verdes em propriedades canavieiras de São Paulo. Finalizado recentemente, o estudo mapeia 700 mil hectares das regiões norte e noroeste do estado, o equivalente a pouco mais de 10% dos terrenos com plantações de cana-de-açúcar. “Constatamos cerca de 8% de áreas destinadas à reserva legal nessas propriedades. Isso significa que, nos terrenos avaliados, existe um déficit de aproximadamente 12% de mata”, diz ele, que também é professor do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq).

Em alguns pontos do estado, a situação é ainda mais crítica. De acordo com Marcelo Melo, do Irib, existem locais em que a porcentagem de reservas legais averbadas em cartórios não chega a 2%. Na região de Araçatuba, onde é registrador imobiliário, ele constatou que menos de 3% das propriedades rurais têm suas áreas registradas.

O procurador de Justiça Daniel Fink atesta que o decreto assinado pelo governador é constitucional, mas tem alguns pontos que precisam de análise mais cuidadosa. Um deles é o artigo 8º, que permite a isenção da obrigatoriedade da reserva legal por 30 anos para proprietários que comprarem terras dentro de uma área de preservação e as doarem para o estado. “O decreto não especifica quase nada, nem se o terreno tem de estar localizado na mesma microbacia do original.”

Divergência

A medida divide opiniões. De um lado, ambientalistas defendem a implementação da reserva legal como forma de preservar o que ainda resta da cobertura vegetal e da biodiversidade do estado. “Isso já deveria ter sido feito. O decreto é útil no sentido de reconhecer aquele sujeito que obedece a lei. É um resgate do compromisso com o meio ambiente”, diz Mário Mantovani, diretor da Fundação SOS Mata Atlântica. Questionado sobre a aplicabilidade da legislação, é incisivo. “Em São Paulo vai funcionar, porque é um estado onde existe controle. Temos 3 mil policiais ambientais para fiscalizar os proprietários. Agora que o estado fez a lição de casa, a importância disso será sinalizada para o resto do país.”

Antônio Luiz Lima de Queiroz, assessor técnico do DEPRN, defende que a manutenção da reserva legal é benéfica até mesmo para as plantações. “A monocultura é bastante propensa à proliferação de pragas. Quando existem áreas de mata próximas às plantações, naturalmente haverá predadores naturais para controlá-las.” Ele lembra ainda que as florestas exercem influência sobre microclimas locais e regime de chuvas. “Sem contar com a possibilidade de abatimento da área florestal no ITR (Imposto Territorial Rural), além da prioridade na obtenção de crédito rural.”

Não é esta a opinião dos produtores rurais. No setor agropecuário, o decreto já está causando certo reboliço. O principal argumento é a ausência de um estudo detalhado que explique como se chegou à necessidade de 20% de terras preservadas. “O decreto não tem fundamentação técnica e veio num momento de crise econômica. O estado de São Paulo, assim como o Brasil, depende da agricultura para se sustentar financeiramente”, argumenta Tiberio Guitton, assessor técnico para assuntos ambientais da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Para ele, o decreto está em desacordo com a realidade brasileira. “Estamos falando de um país que tem história baseada na alteração da cobertura florestal. Já fomos exportadores de pau-brasil, cana-de-açúcar, café”, reforça. A reserva legal não é exclusividade do estado. A lei determina um índice de área preservada para cada bioma (são 50% para o cerrado e 80% para a Amazônia).

Guitton diz acreditar que a política ideal para a preservação dos remanescentes de floresta baseia-se na criação de unidades de conservação e no incentivo financeiro aos donos de matas originais. “Conservar o meio ambiente não é algo que se faça gratuitamente. Os bairros aprazíveis para se morar, com mais áreas verde, têm o m² mais caro”, exemplifica.

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