Há muito tempo o país dá sinais de que precisa melhorar o sistema de controle de transporte de produtos florestais. As maneiras de enganar a fiscalização e cometer crimes ambientais foram aprimoradas ao longo dos quase trinta anos de vigência das Autorizações para Transporte de Produtos Florestais (ATPFs) – anteriormente chamadas de guias florestais. Através das brechas desse sistema, que permitia clonagem, falsificação e calçamento do papel, a floresta foi saqueada numa escala difícil de mensurar. Quadrilhas proliferaram. Nesta quarta-feira, o Ibama e a Polícia Federal identificaram mais uma. E o Documento de Origem Florestal (DOF), sistema eletrônico elaborado com a missão de acabar com tanta criminalidade viabilizada pelas ATPFs, exaustivamente anunciado pelo governo desde o início de 2005, ainda continua na promessa. Desta vez, quem jurou colocá-lo em prática foi a própria ministra Marina Silva: dia 1º de setembro.
Foram dois anos para desenvolver, discutir e testar o DOF, mas pelo menos desde abril do ano passado o Ibama anunciava a extinção das ATPFs. Na primeira semana de agosto, a data foi adiada pela sétima vez. “Durante a reunião do Conama que aconteceu em Cuiabá, em setembro de 2005, Flavio Montiel [diretor de Proteção Ambiental do Ibama] afirmou com veemência que o DOF entraria em vigor em janeiro de 2006. Agora ele falou, com a mesma convicção, que o sistema vai começar a operar em setembro. Falta seriedade nesses anúncios”, opina Marcelo Marquesini, engenheiro florestal do Greenpeace.
Antônio Carlos Hummel, diretor de Florestas do Ibama, explica que os atrasos aconteceram em virtude das greves que o órgão enfrentou e porque o DOF foi amplamente debatido com representantes da sociedade civil que compõem um comitê criado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) pra avaliar e acompanhar sua elaboração. Só que Marquesini, que representa o Greenpeace nesse grupo, lembra que desde a criação do comitê, em abril deste ano, aconteceu apenas uma reunião – mesmo assim, em maio, durante a greve dos servidores do Ibama. “Houve participação, mas de forma inadequada”, diz.
Esses atrasos têm pelo menos duas conseqüências importantes. Aumentam a sobrevida das ATPFs, dando margem à continuidade dos crimes ambientais que são cometidos em função da fragilidade dos papéise, ainda, permite que cada estado tenha tempo para elaborar seu próprio sistema de controle do transporte florestal. Até agora, sete estados já desenvolveram seus próprios instrumentos.
Cada um com o seu
Se por um lado essa responsabilização descentralizada parece positiva, por outro pode representar fragmentação e dificultar ainda mais o controle florestal. O Pará, por exemplo, já anunciou que vai abrir um pregão para contratar uma empresa que adequará o Sisflora, de Mato Grosso, ao estado, para criar um sistema próprio. Segundo Marquesini, o governo de Rondônia também já manifestou interesse em não usar o DOF em razão de um mecanismo próprio, a ser implementado.
“O governo federal devia conduzir todo esse processo e identificar os problemas que, como esse, podem levar a uma maior fragilidade ao controle, em virtude da dificuldade de diálogo entre o mecanismo de cada estado”, diz o engenheiro florestal do Greenpeace. Ele informa ainda que apenas recentemente começaram as discussões sobre de que maneira estados compradores de madeira, como São Paulo, podem ter acesso ao sistema em vigor em Mato Grosso, para, quando em circulação em terras paulistas, fiscais possam verificar a veracidade dos documentos emitidos por lá.
Os idealizadores do DOF têm convicção de que a substituição das ATPFs por um mecanismo mais eficiente vai depender fundamentalmente da capacidade de integração dos diversos sistemas de controle florestal em vigor no país. Sem um sistema que consiga comunicar o DOF a esses outros programas, todas as vantagens de um controle eletrônico ágil, dinâmico, seguro não terão efeito prático. Segundo Hummel, o Ibama propôs ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) a elaboração, até outubro, de uma resolução que crie um portal integrador para as informações de transporte de produtos florestais. “Todos os sistemas vão ter que ser eletrônicos e obedecer a padrões mínimos”, informa. “Ou os estados passam a adotar o DOF, ou vão ter que desenvolver outro”.
Vai dar trabalho. Goiás, Paraíba, Ceará, Bahia, Paraná e Minas Gerais controlam o transporte de produtos florestais com sistemas não eletrônicos. A exceção fica por conta de Mato Grosso, que desenvolveu o Sisflora com uma plataforma de informações muito semelhante ao programa do Ibama. Pelo fato de ser tão parecido e o sistema já estar em operação desde o início do ano, servidores do órgão federal andaram pesquisando seu funcionamento e das respectivas guias florestais, também emitidas eletronicamente para o transporte. O objetivo era identificar falhas e evitar que elas se repitam na era DOF.
Se desta vez as promessas do governo federal se tornarem concretas em 1º de setembro, a mudança não será imediata. Sequer simples. A partir da publicação da Instrução Normativa que cria o DOF no Diário Oficial, o Ibama dará 30 dias para que todas as pessoas e empresas que trabalham com transporte e comercialização de madeira sejam cadastradas no novo sistema. Hummel acredita que a transição da ATPF para o DOF aconteça entre 60 e 90 dias, para que as autorizações em papel emitidas até o último dia de vigência tenham tempo de ser recolhidas. Durante esse período, vai distribuir um manual para os usuários e treinar os próprios servidores do instituto, a fim de que eles tenham condições de operar o sistema e orientar a população.
Funcionamento
De casa, da empresa ou de terminais de computadores que precisarão ser instalados em todas as unidades do Ibama, os interessados na comercialização dos produtos florestais poderão solicitar, preencher e emitir o documento pela internet. Hummel informou que o instituto já está providenciando a compra das novas máquinas, que vão operar como caixas eletrônicos. “Se o pequeno produtor não tiver acesso à internet, ele poderá preencher o DOF no Ibama, mas sem o contato com o servidor”, diz. Na opinião do chefe de fiscalização do Ibama de Mato Grosso, Leslie Tavares, essa é uma das principais vantagens do novo sistema. “Uma das fragilidades da ATPF era a interlocução entre comerciantes e Ibama, o que criava um ambiente propício a fraudes”, conta.
Uma vez cadastrada a empresa no sistema, e registradas todas as informações sobre o material que se pretende comercializar, o solicitante recebe automaticamente uma resposta do Ibama, autorizando ou não o transporte. Se permitido, a essência (tipo) da madeira e a volumetria (quantidade) serão descontadas do montante que a empresa declara ter, e, a partir desse momento, a empresa ganhará um prazo para transportar o produto até seu destino final – tudo devidamente informado no sistema. Serão no máximo 10 dias para o trânsito interestadual e cinco dias para deslocamentos dentro dos estados. Impresso, o recibo do DOF tem um código de barras, o qual os agentes de fiscalização do Ibama poderão consultar, em tempo real, se as informações declaradas coincidem com o que foi encontrado numa interceptação em estrada, por exemplo.
Para Amaro Fernandes, chefe da fiscalização do Ibama de Pernambuco, os trabalhos em campo serão muito mais eficientes porque, através de palm tops, notebooks ou mesmo telefone, será possível saber se o material transportado confere com o que foi autorizado pelo Ibama no DOF. Vai ser só entrar na internet e verificar dados como placa do caminhão, número de nota fiscal, origem, destino, volumetria e qualidade da madeira. “É como um sistema bancário, não está livre de fraudes. Enquanto os hackers não agirem, vai ser um sistema bem seguro”, opina um servidor do Ibama de Belém.
Primeiros testes
Com atraso, o Ibama realizou, no início de julho, os testes do DOF em Pernambuco e no Pará. Os estados foram escolhidos para representar as necessidades da região amazônica e da Caatinga, onde o fluxo de madeira é muito grande. “Funcionou muito bem”, considera Hummel. “Se deu certo no Pará, vai dar certo em qualquer outro lugar”, diz.
No Recife e em Belém uma equipe de Brasília proferiu palestras sobre o funcionamento teórico do sistema a servidores, empresas e funcionários do órgão estadual de meio ambiente. Depois, propôs simulações de transações eletrônicas de compra e venda de madeira através do DOF. A princípio, nos dois locais o mecanismo foi bastante elogiado, principalmente quando os servidores perceberam que a quantidade de papéis dentro do órgão vai diminuir sensivelmente.
Apesar da resposta positiva do público, ficou clara a necessidade de mais treinamento e aparelhamento das unidades do Ibama. O diretor de Florestas do instituto informou que dois milhões de reais já foram aprovados no orçamento do instituto deste ano e servirão para custear a compra dos equipamentos durante o período de três meses de transição da ATPF para o DOF.
Modernização da fiscalização
Além dos terminais de computador, notebooks e palm tops para os servidores que atuam na fiscalização, o Ibama quer instalar em todos os veículos o sistema “autotrack”, capaz de rastrear o veículo por satélite e, assim, controlar a frota. Fernandes, do Ibama de Pernambuco, explica que além de funcionar em qualquer lugar, o sistema oficializa e registra a comunicação entre as unidades do Ibama e os servidores em campo. Tudo por escrito.
Nessa onda de modernização, Brasília também finaliza os últimos estudos para a adoção do Sistema Integrado de Rastreamento da Produção de Madeira em Toras (Sirmat), ainda sem previsão de uso. Esse sistema já foi testado e aprovado, mas segundo Hummel, passa por uma discussão jurídica para que se estabeleça uma maneira correta par sua utilização. O sistema foi feito para rastrear toras por satélite, o que exigiria a instalação de uma espécie de chip nos caminhões que transportam madeira.
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