Reportagens

Não tem volta

Tailândia, pólo madeireiro no nordeste do Pará, é um dos municípios do estado onde a exploração desordenada colocou abaixo a floresta amazônica. E o governo parece não ver nada.

Aline Ribeiro ·
20 de setembro de 2006 · 18 anos atrás

Conforme se avança pela rodovia PA-150, que liga Belém ao interior do Pará, fica claro que por ali o desmazelo do homem com a natureza acabou com grande parte da floresta da região. Abocanhadas por grupos de grileiros, fazendeiros, madeireiros e sem-terra, as matas exuberantes foram aos poucos substituídas por capoeiras, pastos e terras devastadas. São raras as ilhas verdes de selva que restaram para contar história. Em determinado ponto da estrada, uma cidade com pouco mais de 51 mil habitantes chama atenção pelo uso desordenado e, muitas vezes, ilegal da madeira.

Pólo madeireiro antigo do nordeste do Pará, Tailândia é um dos muitos municípios amazônicos que convivem com a derrubada desordenada da mata. Até mesmo as cercas das casas, construídas sem nenhum espaço entre uma e outra tábua, indicam as dimensões do desperdício de floresta. O município consome, por ano, mais de 650 mil m³ de madeira, o equivalente a 162.500 árvores. Para obter essa quantidade de toras, é preciso acabar com uma floresta nativa do tamanho de um quarto da cidade de São Paulo. Pesquisa do Instituto do Homem e Meio Ambiente na Amazônia (Imazon) mostra que, em 2004, a renda bruta com a exploração da madeira no município ultrapassou 58,8 milhões de dólares. Neste mesmo ano, as cerca de 50 madeireiras existentes geraram quase 9 mil empregos – prova de que a economia regional depende do setor.

A exploração de madeira em Tailândia se intensificou por volta de 1986, quando a rodovia PA-150 foi asfaltada. A extração predatória, a ausência de planos de manejo e de autorizações de desmatamento reduziram drasticamente as matas da região. Cerca de 53% da madeira consumida no Brasil, diz Paulo Barreto, do Imazon, são provenientes da retirada ilegal. Principalmente por esse motivo, o que se vê hoje em Tailândia é uma curva descendente da produção madeireira, evidência de que a mata está chegando ao fim.

De acordo com um extenso trabalho do instituto, para cada árvore que chega a uma serraria no Pará, outras 27 são derrubadas inutilmente. Elas são retiradas para dar espaço a estradas de exploração e pátios de armazenamento. Muitas são abandonadas por estarem ocas. Entrelaçadas por galhos e cipós, as árvores menores caem junto com a que foi cortada para a venda. E nem tudo que sai da floresta é aproveitado. As serrarias da Amazônia desperdiçam, durante o processamento da madeira, um terço das toras recebidas.

Ineficaz

Mesmo que a exploração tenha diminuído em Tailândia – devido à escassez do recurso natural -, a quantidade de caminhões carregados de toras que cortam a PA-150 ainda é grande. À noite, o que mais se vê são veículos cujos eixos chegam a ficar inclinados, tamanho o peso da carga. Na véspera do feriado de 7 de setembro, quando a reportagem de O Eco tentou falar com os caminhoneiros, eles não estavam na região. “Ouvi dizer que o Ibama apareceu por aqui hoje. Sempre que a fiscalização chega, os caminhoneiros se entocam no meio do mato, até serem avisados de que já podem sair”, conta um morador da Vila dos Palmares (às margens da PA-150), que prefere não ter o nome divulgado.

Dito e feito. Naquele dia, segundo a superintendência do Ibama em Belém, um carro do órgão esteve em Tailândia para apreender um gavião real detido em cativeiro sem licença. “É assim mesmo. Quando chegamos lá, eles param. O problema é que temos de estar em todo lugar. Tem serviço que não acaba mais”, admite o engenheiro florestal do Ibama de Belém, Norberto Neves de Souza. “O trabalho aumenta principalmente na época de eleições, quando as invasões de terras são maiores. É que alguns políticos incentivam a entrada em áreas preservadas.”

Um dia depois da visita inesperada do Ibama à Tailândia, a movimentação dos madeireiros estava de vento em popa. Em pleno feriado, a reportagem contou 10 caminhões de madeira na rodovia num intervalo de 45 minutos. “É à noite e de madrugada que eles mais circulam. E, quando descobrem que o Ibama está por perto, os donos das serrarias avisam os caminhoneiros por celular. Eles se comunicam demais”, revela o mototaxista. “Alguns homens armados dão cobertura aos caminhoneiros.”

Os gargalos não se resumem ao sistema de fiscalização ineficaz. O ciclo de exploração madeireira gera outros problemas de difícil solução. “É bastante complicado dar conta de todas as etapas. O desmatamento ocorre fora do centro da cidade, num raio de até 200 km dentro da mata. Não temos instrumentos para inspecionar, o que nos limita a agir somente no final da cadeia, durante o transporte da carga”, diz o promotor de Justiça de Tailândia, Lauro Francisco da Silva Freitas Junior. As fraudes de autorizações para transporte de produto florestal (ATPFs, agora substituídas pelo Documento de Origem Florestal – DOF) representam 80% dos crimes ambientais registrados no Ministério Público de Tailândia.

Conivência às claras

Na entrada da cidade, agentes de uma base da Polícia Rodoviária Estadual parecem não enxergar a um palmo do nariz. Por diversas vezes, os caminhões carregados de madeira passam tranqüilamente pela rodovia e nada acontece. A apreensão das toras transportadas sem licença é de competência do Ibama, não da polícia rodoviária. Porém, cabe a esses últimos a interceptação dos veículos até que os representantes do órgão responsável cheguem ao local. Questionado sobre o por quê da conivência com a situação, o cabo Cadedra desabafa. “Isso é um problema muito sério no Pará. Chama-se política. Como somos de um órgão estadual, temos de obedecer a ordens. A madeira é a base da economia de Tailândia.”

E isso não é tudo. Muitos dos caminhões utilizados para transportar a madeira circulam irregulares. São os famosos “bufetes”, verdadeiras sucatas sem lanterna, velocímetro nem freios confiáveis. Alguns não têm nem cabine. Quando tem, elas são feitas de madeira (foto). Estima-se que existam hoje na região de Tailândia cerca de cem veículos do tipo, mas o número já foi maior. “Estamos fazendo um trabalho de conscientização para que as pessoas regularizem seus caminhões. Porém, não podemos tirar todos de circulação. Resolveríamos um problema, mas causaríamos outros. Muitas famílias sobrevivem disso por aqui”, explica o promotor de Justiça. Um acordo foi feito com os caminhoneiros, para que os “bufetes” circulem somente da mata até o início da rodovia. De lá, as toras têm de ser colocadas em outro veículo, que as levará até a cidade.

Os “bufeteiros”, na maioria das vezes, não têm nem habilitação para dirigir. “Já tivemos muitos acidentes com morte na PA-150 por causa dos ‘bufetes’”, conta o comandante da Polícia Rodoviária Estadual, major Antônio Cláudio Moraes Puty. Somente este ano foram três. Quando os policiais apreendem esses veículos, a dificuldade é a ausência de um local para levá-los. “Temos sério problema com o pátio de retenção, porque fica em Jacundá, a 250 km daqui.” O Ibama enfrenta o mesmo obstáculo. “Já colocamos os próprios infratores como fiel depositário, porque não temos onde colocar o material apreendido. É um contra-senso deixar o criminoso com a posse do objeto do crime”, diz Norberto Neves de Souza, engenheiro florestal do órgão.

Paliativos

De 2001 para cá, o Ibama lavrou 299 autos de infração referentes à flora – que vai desde desmatamento até o comércio de xaxim – em Tailândia. Parte dessas autuações foi feita em outubro do ano passado, durante a operação Ouro Verde, que teve como objetivo desmantelar quadrilhas ligadas ao comércio ilegal de carvão e de madeira na Amazônia.

Em um ano, segundo a Polícia Federal, foram comercializados cerca de 75 mil metros cúbicos de madeira só nos municípios paraenses de Tucuruí, Tailândia, Paragominas e Goianésia, onde uma quadrilha lucrou cerca de 65 milhões de reais. “Em Tailândia, 27 membros da organização criminosa foram detidos”, lembra o delegado da PF em Rondônia, Janderlyer Gomes de Lima, que de Belém coordenou a Ouro Verde. Entre os acusados, está o ex-prefeito da cidade, Francisco Alves de Vasconcelos, conhecido como Chico Baratão – que desde abril deste ano responde pelo crime em liberdade.

Medidas pontuais, diz Lima, não são suficientes para acabar com as irregularidades. “Cerca de 90% das madeireiras de Tailândia estão em nomes de laranjas. Se desmonta um esquema, mas sempre há outro armado.” Souza, do Ibama, tem uma sugestão para fechar o cerco à extração e comércio de madeira ilegais na região. “O que precisa é de uma força-tarefa para coibir permanentemente as ações.” Enquanto ela não chega, Tailândia faz sua parte para manter a reputação do estado do Pará, segundo maior responsável pelo desmatamento da Amazônia de acordo com o governo federal.

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