Reportagens

Purgatório pantaneiro

Repórter de O Eco e dois pesquisadores penam uma noite sob chuva, vento e ataque implacável de mosquitos numa barranca do rio Paraguai, a caminho do Parque Nacional do Pantanal.

Manoel Francisco Brito ·
18 de outubro de 2006 · 18 anos atrás

“Aquilo é um paraíso. Mas para chegar lá, às vezes você tem que passar pelo purgatório”. Lá, no caso, é o Parque Nacional do Pantanal, um éden de 135 mil hectares no Mato Grosso, encostadinho na fronteira com o Mato Grosso do Sul, criado em 1981 para proteger a biodiversidade de fauna da região. E a autora da frase foi a bióloga Micheline Vergara, que desde julho, junto com o marido, o também biólogo e funcionário do Ibama Peter Crawshaw, faz um trabalho de levantamento sobre a situação das onças pintadas no local. Sua observação era baseada em experiência própria. E naquela manhã de 5 de outubro, quando nós três partimos por volta das 10 horas de Corumbá para uma viagem de oito horas pelo rio Paraguai até o Parque, numa voadeira apinhada de mantimentos e equipamentos, ela tinha um ar de premonição.

As páginas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) na internet diziam que em algum momento daquela quinta-feira, o Pantanal seria alvo de uma frente fria vinda do Sul para meteorologista nenhum botar defeito, com ventos fortes, chuvas torrenciais e queda brusca de temperatura. Resolvemos desafiar a natureza, apostando na capacidade do motor de popa de 25 cavalos nos fazer chegar ao destino antes da tempestade. Quase conseguimos. A mais ou menos uma hora do ponto final da viagem, pouco depois de começarmos a navegar ao longo da serra do Amolar, uma cadeia de montanhas que sobe de repente das planícies encharcadas da região, a nossa sorte virou. A tempestade nos alcançou (foto).

O céu ficou assustadoramente escuro e a ventania soprou, deixando revoltas as até então plácidas águas do Paraguai. A embarcação começou a jogar e Crawshaw, no timão, decidiu que seria arriscado demais prosseguir. Olhou para as barrancas e embicou no rumo de uma clareira na margem Oeste do rio. Batemos lá em segundos. Vergara pegou a corda e saltou. Suas pernas afundaram na lama até as canelas. Péssimo começo, pensei, tentando achar um ponto mais firme para pular do barco. Em vão. Meti o pé em terra e senti a lama fria entrando nas minhas botas e subindo pelas pernas. Foi o melhor momento de uma noite em que nosso grupo purgou durante eternas 13 horas sob chuva incessante e ataque de esquadrilhas de mosquitos (foto) antes de, finalmente, às 6 e 35 da manhã seguinte, adentrarmos o paraíso.

Caminho do céu

Nossa viagem começou com pelo menos uma hora de atraso em relação ao plano original. Mas ela transcorreu sem maiores sobressaltos por um cenário que de fato prometia. As nuvens da borrasca começavam a dar o ar de sua graça no horizonte ao Sul, mas tão logo começamos a nos afastar de Corumbá, o céu foi ficando cada vez mais azul. Estranhamente, o tráfego de barcos no rio Paraguai, que cresceu muito na última década, estava para lá de tranqüilo. Havia a ocasional voadeira com pescadores, cruzamos por algumas lanchas de passageiros, mas, milagre dos milagres, não topamos com nenhum dos longuíssimos comboios que carregam soja e minério e que se tornaram o terror de quem navega no rio. Sua paisagem, apesar da pressão humana, permanece razoavelmente preservada.

A mata nas margens permanece cerrada e nelas o que não falta é bicho. Há aves em profusão – biguás-tinga, maguaris e caracarás principalmente – e os jacarés voltaram a aparecer ao longo do rio (foto). “E ocasionalmente dá até para ver onças”, disse-me Crawshaw. Avistamos até dois colhereiros, com seu cor-de-rosa quase vermelho, que ultimamente andaram sumidos da região. Como nada é perfeito, esbarramos em sinais explícitos da maldade humana boiando, dois jacarés e uma sucuri abatidos a tiros (foto abaixo). Mas fora esses episódios, a viagem não podia estar sendo mais despreocupada e aprazível. Até às 16h45, quando um ventinho começou a soprar e as nuvens pareciam prestes a nos alcançar. Crawshaw parou em frente a uma habitação de ribeirinhos para se informar se dava para chegarmos ao parque antes da tempestade.

Duas mulheres lavavam roupas na beira do rio e a mais velha delas nos aconselhou a buscar abrigo. “Vocês não vão chegar hoje”, disse. “O rio, já, já, vai ficar muito encrespado”. Do outro lado da margem havia uma lancha atracada e eu achei que lá teríamos informação melhor. Afinal, seus tripulantes deveriam estar mais familiarizados com a navegação no rio do que aquelas mulheres. “Claro que dá para vocês chegarem”, respondeu um homem com uma barriga imensa que limpava peixes no barco. Decidimos ouví-lo e tocamos em frente. Passamos por Novos Dourados, uma sede de fazenda abandonada, e quando começamos a navegar com a serra do Amolar à Oeste, ficou claro que deveríamos ter escutado a lavadeira. O céu fechou de vez. Ouvimos trovões e vimos relâmpagos.

O vento ficou mais forte. A voadeira batia muito e decidimos embicar na clareira na margem Oeste do Paraguai que parecia oferecer melhor proteção. Vergara foi a primeira a saltar no lamaçal que separava o leito do rio de terra firme. Depois foi minha vez de meter o pé na lama. A chuva começou a cair pesado. Peguei uma capa dentro da mochila. Mas o aguaceiro era tanto que ela não fez qualquer efeito. Não demorou muito para todos nós estarmos encharcados. Vergara e eu começamos a descarregar o barco enquanto Crawshaw, da melhor maneira possível, tentava estender uma lona entre as árvores para nos abrigarmos. Alguns bugios que estavam nos galhos pareceram se incomodar com nossa súbita chegada e foram embora.

A hora dos mosquitos

Diante das circunstâncias, nosso abrigo não ficou lá essas coisas. Começamos a transportar nossa tralha para debaixo da lona. Girei uma mochila sobre as costas tão rápido que acabei perdendo o equilíbrio e rolei ribanceira abaixo. Além de molhado, agora estava todo enlameado. Fui me juntar ao grupo sob a lona, tirei uma toalha da mochila, sequei meu torso e coloquei outra camisa. A chuva, empurrada pelo vento, nos atingia mesmo sob o abrigo. Vergara, equilibrada na rede, preparou uma refeição ligeira, pão meio molhado com presunto e queijo idem. Quando terminamos de comer, ela olhou o relógio. Eram 17h45.

“Meu Deus, é a hora dos mosquitos”. Seu tom de voz era de desespero e logo entendi porquê. Eles chegaram 5 minutos depois, aos milhares, e começaram a picar sem piedade. O ataque durou a noite e a madrugada inteiras. Durante as primeiras duas, três horas, o repelente ofereceu algum alívio. Mas depois, os insetos se acostumaram ao seu gosto, o que nos obrigou a enrolar toalhas e lençóis, todos úmidos, nas partes expostas do corpo para tentar nos proteger. O drama é que isso apenas aumentava o frio do grupo. Crawshaw estendeu uma rede molhada onde se sentou. Vergara sentou-se em cima de um saco plástico no chão. Mas ele escorregava na lama e ela pegou o facão do marido e tentou cavar um assento na terra.

Melhorou, mas não resolveu. Vira-e-mexe, ela tinha que consertar sua posição. Eu fiquei em pé, apoiado contra o galho de uma árvore, tentando descobrir qual a melhor maneira de passar a noite. Liguei a lanterna para ver as horas. Tive que espanar os insetos da frente do facho de luz para enxergar. Eram só 19h30. Decidi que não olharia mais para o relógio até sairmos dali. Não queria ficar olhando o tempo passar. A temperatura caiu e comecei a tiritar de frio. Primeiro baixinho. Mas depois de forma incontrolável. Crawshaw se preocupou. “Você está entrando em hipotermia”, disse. Vergara esfregou minhas costas e meu deu outro lençol para me aquecer. Mas ele logo ficou molhado e a situação piorou. Tentei trocar as meias. Bastou tirar uma delas para descobrir que era uma péssima idéia.

Meu pé ficou preto de mosquitos. Passei a mão para tirá-los de lá e meio resignado, tornei a vestir a meia molhada. Enfiei o pé na bota encharcada e tentei imaginar como melhorar a situação. As opções não eram muito boas. Para ninguém do grupo. Estávamos molhados e praticamente tudo na nossa tralha também. Enfiei a mão na sacola onde estava meu saco de dormir. Por dentro, ainda estava seco. Fiquei tentado a entrar dentro dele. Mas teria que me deitar no chão enlameado e me enfiar no saco com minhas calças molhadas, o que provavelmente pioraria a situação. Não sei por que, resolvi fazer uma inversão. Vesti o saco pela cabeça, como um capuz gigante. Deu mais certo do que eu imaginava. Além de me esquentar, o capuz improvisado serviu para manter a mosquitada à distância.

Visão do paraíso

Sentei-me sobre o isopor onde estavam alguns dos mantimentos. Crawshaw jogou seu corpo sobre os salva-vidas. Vergara ocupou a rede. Ela perguntou se eu estava bem. “Estou de saco cheio”, respondi de mau humor. Meus dois companheiros de infortúnio riram baixinho. Eu não dormi. Vergara também jura que não e conta que de madrugada, quando estava deitada no chão, sofreu ataque de formigas. Crawshaw diz que nós dois chegamos a roncar. Digamos que todos estávamos em estado de completo torpor. Fui retirado do meu no meio da madrugada por Crawshaw, sugerindo que eu fosse para a rede (foto). Estava com a metade inferior do corpo sobre o isopor e a superior jogada sobre as nossas mochilas, me equilibrando nessa posição Deus sabe lá como. Troquei de lugar e voltei novamente ao torpor.

Saí dele abruptamente lá pelas 5 da manhã com Vergara aos berros: “Cadê o repelente, cadê o repelente”? Botei a cabeça para fora do saco de dormir na direção do rio, de onde vinham os gritos. Ela estava em cima da voadeira, semi–afundada pela água acumulada da chuva, com uma panela na mão, que usava para esvaziar o barco. A chuva tinha se reduzido a uma garoa e o vento tinha parado. A temperatura devia estar em torno de 16, 17 graus. Jogamos nossa tralha na voadeira e deixamos a barranca. Uma hora depois, avistamos a sede do Parque Nacional do Pantanal. Estávamos prestes a entrar no paraíso.

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