Reportagens

Floresta de impunidade

Sistema de monitoramento do Imazon para Mato Grosso detecta 88% de desmatamentos ilegais em setembro e mostra que as bacias hidrográficas do estado estão sob severa pressão.

Manoel Francisco Brito ·
9 de novembro de 2006 · 18 anos atrás

O terceiro boletim sobre a situação da floresta em Mato Grosso produzido pelo Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), projeto tocado pelo Instituto do Meio Ambiente e do Homem (Imazon) em parceria com o Instituto Centro de Vida (ICV), aponta que a extensão da supressão de vegetação nativa no estado em setembro chegou a 1 mil 120 quilômetros quadrados. Comparado ao que aconteceu no mesmo mes do ano passado, houve uma queda de 42% no desmatamento. Mas nem por isso o número registrado é menos chocante (veja o mapa ao lado). Ele foi dez vezes maior do que o registrado em agosto e o cruzamento das imagens de satélite utilizadas no estudo com os dados da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) mostra que 88% do corte de ávores foi ilegal – prova que os desmatadores no estado, semelhante ao que acontece no resto da Amazônia, continuam agindo como se tivessem a certeza de que jamais serão punidos. Em larga medida, eles têm toda a razão.

“A melhora na capacidade de coletar informações sobre o que está acontecendo ainda não foi acompanhada de uma melhoria na capacidade de represão”, diz Laurent Micol, do ICV. “O que os dados demonstram é que os órgãos de controle sobre o desmatamento ainda têm dificuldade, seja por falta de investimento ou de decisão, em se antecipar aos infratores”, afirma Marcelo Vacchiano, promotor do Ministério Público Estadual em Alta Floresta, Norte do estado. Micol lembra que o índice de ilegalidade na derrubada de árvores em setembro pode muito bem ser de 100%. “O número que nós encontramos refere-se apenas aos desmatamentos que nós temos certeza de terem sido feitos à margem da lei. De maneira nenhuma isso significa que os 12% restantes tenham sido legais”, diz. A margem de incerteza se deve ao fato que os bancos de dados da Sema ainda não foram inteiramente consolidados.

A fiscalização falha, no entanto, não é a única explicação para a sensação geral de impunidade. Ela é reforçada pela certeza que mesmo que o desmatamento tenha sido flagrado, o culpado dificilmente sofrerá algum tipo de sanção legal. “O processo de responsabilização ainda é muito ineficiente”, lembra o advogado Teodoro Irigaray, que dirige um projeto piloto com alunos da Federal de Mato Grosso, em Cuiabá, para agilizar os processos abertos contra os 60 maiores desmatamentos já registrados no estado. Os autos de infração nem sempre se traduzem em multas e seu trâmite judicial permite ao infrator uma série de ações para postergar uma decisão definitiva. Além da ineficiência inerente à Justiça brasileira, processos contra desmatadores enfrentam também uma deficiência de formação dos juízes.

Choque cultural

“Mesmo em situações em que as instâncias administrativas realizam um bom trabalho, aplicando os autos de infração corretamente e fornecendo laudos detalhados para embasar uma ação nos tribunais, é difícil conseguir de um juiz uma decisão mais célere sobre o processo”, diz Vacchiano. “Nossos juízes têm uma formação sólida para tratar de conflitos individuais, como por exemplo, na ação de cobrança de um credor contra um devedor. Mas têm dificuldades em lidar com causas de conflitos coletivos, em que os interêsses são mais difusos”. Irigaray lembra também que o direito brasileiro tem uma sólida tradição privatista, que atrapalha muito o andameento de causas ambientais.

“Muitos juízes acham absurdas quaisquer limitações aos direitos de propriedade. Já têm imensa dificuldade em entender sua função social, quanto mais sua função ambiental”, diz. Ele aponta ainda que em comarcas agrícolas como as que dominam o Norte do estado, a complexidade de questões ambientais choca-se com o excesso de demandas que um juiz recebe. “Nesses lugares, eles são juiz de família, de infância, criminal ou eleitoral. A questão ambiental é apenas mais uma sobre a qual eles precisam se debruçar e ela está longe de ser simples”, afirma. Micol, do ICV, concorda que há limites imensos para melhorar a repressão e a responsabilização dos desmatadores. Mas lembra que o Estado, de um modo geral, apesar de diagnosticar o problema com razoável precisão, não parece se esforçar muito para mudar a situação.

Segundo ele, algumas medidas simples, como separar o problema em blocos para atacá-los um por um, poderia melhorar muito essa situação. Por exemplo, o boletim do SAD para setembro identificou que 18% dos desmatamentos, ou exatos 202 quilômetros quadrados, aconteceram em assentamentos do Incra. “Para resolver o problema, basta o órgão começar a fazer o licenciamento ambiental dessas áreas, para definir o que se pode ou não se pode fazer nelas. Sem isso, fica impossível o contrôle”. Um outro bloco diz respeito aos desmatamentos detectados em áreas de reserva legal – que no mês passado somaram 253 quilômetros quadrados – de propriedades que estão no Sistema de Licenciamento de Proriedades Rurais (SLAPR) do estado, um cadastro montado com base em imagens de satélite em que os limites da fazenda são georeferenciados com o auxílio de GPS.

Nesses casos, a detecção do corte irregular, bem como a emissão de multas, são automáticas, baseadas na comparação de imagens de satélite. Não há necessidade de se ter gente em campo para fazer fiscalização. “O que se precisa é ter certeza que as multas serão cobradas e que os processos para a reconstituição da vegetação suprimida serão enviados à Justiça”, diz Micol. Mas na maioria das vezes, essas coisas andam muito lentamente pela burocracia da Sema. “Processos, normalmente, demoram meses nas mesas da sua área jurídica”, conta. Se essas medidas forem tomadas, é possível fazer um melhor planejamento das eventuais ações de repressão contra a turma que desmata em propriedades que estão fora do SLAPR – que estão espalhadas por cerca de 75% da extensão territorial do estado.

Saúde dos rios

Além de detectar o grau de ilegalidade que cerca os desmatamentos em Mato Grosso, o SAD de setembro também traz uma avaliação das três grandes bacias hidrográficas que cobrem o Mato Grosso. Elas não vão nada bem e a capacidade de seus rios de manterem suas funções e serviços ambientais começa a ficar seriamente ameaçada. A bacia do Paraguai, que está concentrada no Sul, se espalha por 19% dos 904 mil quilômetros quadrados de área do estado e é dominada pelo Pantanal e vegetação de cerrado, tinha, até 2005, contabilizado 43% de perda de sua cobertura vegetal original. A do Araguaia, localizada no Sudeste e ocupando 15% do território estadual, perdeu 42% do seu cerrado. Na do Amazonas, foram-se 32% de florestas. Pelos números, ela parece estar em melhor situação. No entanto, é nela que se localiza a bacia em situação mais crítica, a do Teles Pires (veja o mapa ao lado), rio que corta o Norte do Mato Grosso, em região sob a influência da BR-163.

Sua bacia, espalhada por cerca de 109 mil quilômetros quadrados, registra uma média de desmatamento anual alta, cerca de 2, 2%, e até 2005 tinha perdido 46% de sua cobertura original. O estado da mata nas área onde se localizam suas cabeceiras, nas sub-bacias dos rios Verde e Paranatinga, é de longe a mais sombria. Lá, o desmatamento deu cabo de mais da metade das florestas que cobriam a região. “O que mais assusta é que apenas 9% de toda a área da bacia do Teles Pires é protegida por Unidades de Conservação ou Terras Indígenas”, diz Micol. Com a BR-163 incentivando o desmatamento à sua volta, é provável que no futuro, o mato que um dia fez parte da paisagem da região, só resista dentro delas.

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