Reportagens

Carteirada na fronteira

Juiz exibe autoridade desmedida contra equipe do Ibama em Novo Progresso (PA) e prende fiscal por desobediência e desacato. Situação está melhor, diz atual coordenador.

Eric Macedo ·
10 de novembro de 2006 · 18 anos atrás

O 21 de agosto começou como outro dia qualquer na base operativa que combate o desmatamento na região de Novo Progresso, Sudoeste do Pará. Como de costume, os funcionários do Ibama, soldados do exército e policiais militares acordaram por volta das seis horas da manhã. Café tomado, às sete e meia os motores dos carros já estavam roncando para levar todo o grupo na direção das áreas onde o monitoramento por satélite detectara floresta amazônica desmatada. Todo não. Para trás, na base, ficariam o servidor do Ibama José Vantuil da Silva e alguns militares. Depois que a turma partiu, Silva acomodou-se numa das cadeiras da sala em que são autuados os infratores.

Os fiscais do Ibama, em geral, notificam os suspeitos no campo e, no dia seguinte, aguardam que eles apareçam na base para prestar esclarecimentos e, se for o caso, serem autuados. Mas naquela manhã, quem entrou primeiro na sala foi um senhor que não se encaixava bem no visual de um desmatador. Usava um par de óculos, terno e gravata. Chegou acompanhado por dois oficiais da polícia militar paraense. O capixaba Vantuil, há menos de um mês em Novo Progresso, não tinha idéia de quem se tratava. Só imaginou que fosse alguém importante. Logo, saberia com quem estava falando.

Era o juiz da comarca local, César Lins Dias, que de cara deixou claro que, na sua visão, quem manda em Novo Progresso é ele. Ordenou que o coordenador da base, José Iran de Almeida, se apresentasse imediatamente. Mas ele estava em Guarantã do Norte, no Mato Grosso. Azar de Silva que, solitário, foi forçado a arcar com a ira do juiz. Dele, ouviu primeiro uma peroração: o Ibama estava atropelando sua autoridade, fazendo apreensões de material sem que elas passassem pelo seu crivo. Ato contínuo, o meritíssimo mandou que Silva desse a ele a custódia de armas e motosseras que tinham sido apreendidas em áreas desmatadas.

Sem querer confrontar o doutor Dias, o funcionário do Ibama disse-lhe a verdade. Não tinha a chave da imensa caixa onde o material era trancafiado. A resposta não agradou. Silva foi imediatamente acusado por desobediência e desacato e arrastado para a delegacia, de onde saiu seis horas depois contemplado com a possibilidade de abertura de processo. “Foi terrível para mim. Fiquei deprimido”, lembra o fiscal, hoje no Espírito Santo, onde atua na Reserva Biológica de Sooretama. O sofrimento não foi só pela visita à delegacia. O servidor conta que, quando soube seu estado de origem, o juiz ficou ainda mais enfurecido.

Prazer da autoridade

Ouviu que no Espírito Santo só tem ladrão e que lá é o lugar que tem mais bandidos no Brasil. Silva diz que ficou emocionalmente abalado, sem condições de trabalhar. Saiu de Novo Progresso cerca de uma semana depois do episódio, rumo a Castelo dos Sonhos, município próximo. Um mês depois, compareceu a uma audiência marcada por Dias, acompanhado de um procurador do Ibama. O juiz arquivou o processo. Poucos dias depois, ele partia para sua terra natal.

Vantuil considera gratificante servir como fiscal em outros estados. Principalmente na Amazônia, onde há, indiscutivelmente, muito trabalho a ser feito. Mas agora está com medo de voltar, se sente ameaçado. Não é um sentimento incomum entre a turma que combate o desmatamento na região de Novo Progresso, uma das zonas de fronteira mais violentas da Amazônia. Há grande rotatividade nas equipes da base no município. Normalmente, são apenas 30 dias de trabalho, devido à pressão sofrida durante o serviço. A novidade, neste caso, é que ela veio de direção inesperada – um representante do poder judiciário – e não dos desmatadores.

Pelo que conta Almeida, que chefiava a base na época em que o doutor Dias apareceu por lá para dar sua carteirada, a atitude nada recomendável de sua excelência não se deu por ele ser a favor do desmatamento. Tem mais a ver com sua notória preferência por exorbitar sua autoridade. “O juiz aperta todo mundo. Um filho de madeireiro, por exemplo, foi pego andando de moto sem capacete. Ele deu dura no rapaz, com o pai junto. Tiveram, como pena alternativa, que pagar quatro mil blocos [tijolos] para construção de um prédio da polícia”, conta. A fama do meritíssimo inclui o hábito de atribuir penas alternativas para qualquer tipo de crime e coordenar pessoalmente operações policiais, inclusive noturnas.

Pode ser que o juiz de fato, como diz Almeida, não proteja os desmatadores. Mas suas demonstrações de autoritarismo explícito contra o Ibama atrapalham muito as ações contra o desmatamento em Novo Progresso. Dois dias depois da primeira visita à base, o doutor Dias retornou. Almeida estava presente e foi sua vez de ouvir que o Ibama não tem autoridade para apreender material encontrado nas áreas de desmatamento, uma interpretação para lá de duvidosa da legislação em vigor. Segundo seu relato, escutou também que o Ibama só faz burrada na Amazônia e que ele, Dias, era independente e não acataria ordens de ninguém.

Gabou-se que a telefônica não instalava linhas na base por determinação dele e saiu de lá deixando uma ordem – para que as armas dentro da caixa trancada fossem imediatamente entregues a sua custódia – e uma ameaça: se alguém de Brasília ou Santarém fizesse pressão contra ele, a operação do Ibama em Novo Progresso estaria perdida. Almeida tratou de cumprir primeiro a ordem enviando o material apreendido, inexplicavelmente devolvido alguns dias depois, e combinou com seus comandados uma maneira de se protegerem da ameaça de sua excelência. Fizeram um relatório sobre o ocorrido que foi fartamente distribuído pelos escritórios do Ibama pelo país.

Tudo azul

Se o juiz continuou a mexer seus pauzinhos contra o Ibama, não se sabe. Mas os carros do órgão passaram a ser parados frequentemente pela PM, em busca de falhas com sua documentação. Apesar de tudo isso, o comando do Ibama em Brasília não moveu uma palha para salvaguardar seus funcionários em Novo Progresso de eventuais arroubos autoritários do juiz. Segundo o diretor de Proteção Ambiental do instituto, Flávio Montiel, não houve necessidade de entrar com ações judiciais contra Dias. “Haveria, se ele tivesse impedido que a atividade acontecesse. Mas não foi esse o caso”, diz. O Ibama argumenta que a competência do seu trabalho é federal – não pode, portanto, sofrer interferência de um juiz estadual.

A posição do órgão era de que só se alguma ação judicial fosse arquitetada pelo juiz, a procuradoria do Ibama se encarregaria de entrar com uma defesa. O juiz César Lins Dias não foi encontrado pela reportagem de O Eco para comentar o caso. Na Comarca de Novo Progresso a informação era de que ele estava em Belém para resolver problemas pessoais e talvez voltasse na terceira semana de novembro. Mas não há certeza da data. Toda a equipe do Ibama que estava em agosto na Base Operativa já saiu de lá. Euller Paiva, que atualmente responde pela coordenação dos trabalhos no município, diz que a situação agora é outra.

Os servidores que estão lá hoje foram chamados várias vezes para conversar com o juiz, e segundo Paiva fizeram o meritíssimo entender que o Ibama atua dentro da legalidade. “Conseguimos trazê-lo para o nosso lado”, diz ele, que passou a ser o único funcionário permanente na base. “Ele exagerou nos poderes que o competem, mas entendo a situação ao olhar o clima de ilegalidade que existe na região”. É uma visão. Paiva deu essa entrevista pelo Skype. A base operativa de Novo Progresso continua sem telefone.

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