Depois do Monte Roraima e do Araguaia, mais um Parque Nacional brasileiro deverá enfrentar a ingrata tarefa de conciliar conservação de natureza com tribos indígenas. Trata-se do Parque Nacional do Monte Pascoal, criado para proteger a primeira visão que os tripulantes da frota de Pedro Alvares Cabral tiveram da Mata Atlântica que cobria boa parte do território brasileiro. Ele foi demarcado em 1961 com 21 mil e 500 hectares. Mas perdeu 8 mil hectares no início dos anos 90. Eles foram entregues a índios pataxós que viviam no seu entorno em áreas que ao longo de décadas foram sendo desmatadas e se degradaram pela conversão da terra para uso agrícola e para a pecuária. Imaginava-se que os índios, com a experiência de como era ruim viver em terra devastada, cuidariam melhor do novo naco de mata que estavam recebendo. Não foi o que aconteceu.
Em poucos anos, os 8 mil hectares foram pelados e os pataxós, novamente auto-condenados a viverem na pobreza, começaram a se interessar pelo resto da área do Parque. Para a dupla afetação sair será preciso homologar a terra indígena Pataxó. “Isso pode demorar anos, considerando o nosso histórico de homologações de terras indígenas”, explica Milene Maia, chefe do Parque. Este não é o único obstáculo para sapecar o novo regime na Unidade de Conservação. A lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) não prevê uma categoria que concilie áreas de proteção com reserva indígena.
Mas isso não chega a ser uma barreira instransponível, diz Maia, de olho na experiência do Araguaia. Basta vontade política dos dois órgãos federais envolvidos no assunto, a Funai pelos índios e o Ibama pela natureza, para dar ao Executivo conforto na hora de assinar um decreto para colocar a área sobre o regime de dupla afetação. A chefe do Parque, apesar de reconhecer que o assunto é polêmico, não vê, por experiência própria, nenhuma outra maneira de solucionar o conflito entre índios e floresta que graça há anos na região. Maia lida com os pataxós desde 1997, quando serviu na Reserva da Jaqueira, em Porto Seguro. “Não adianta colocar 500 policiais aqui dentro e cercar. O problema não será resolvido”, diz.
O caminho até a dupla afetação, além de ser marcado por conflitos, tem sido longo e difícil. Ele começou a ser aberto em 2002, com a assinatura de um acordo de cooperação técnica entre Ibama, Funai, Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Justiça e as próprias lideranças indígenas. “O acordo foi consolidado, de fato, em 2004. É um processo complicado por causa da dificuldade da relação entre Ibama e Funai”, conta Maia. “Ibama e Funai têm que se entender. Afinal, temos os mesmos interesses. É preciso que o Ibama traga mais pessoas com o perfil para atuar aqui, estabelecer instrumentos de gestão financeira mais ágil, priorizar investimentos não só para a unidade mas para as comunidades, as quais têm, de fato, vontade e compromisso em proteger o parque”. Mas na prática, a história da relação recente entre pataxós e floresta não tem sido muito alvissareira para as árvores.
DNA do problema
O acordo prevê a implementação de programas de segurança alimentar, que, segundo o Ibama, já beneficiou mais de 80% das aldeias e cerca de 600 famílias com o resgate do plantio de mandioca, que estava totalmente extinto. Para reduzir a ameaça do fogo, empregado pelos índios e também por não-índios da região para limpar o terreno para o plantio, contratou-se temporariamente pataxós para preencher cargos nas brigadas anti-incêndio. E alcançou-se a queima controlada em 90% das aldeias. Os índios também se beneficiam da visitação ao Monte Pascoal. Os que servem de guias para os visitantes recebem integralmente os 5 reais que são cobrados para entrar no Parque.
“Estamos construindo um planejamento com estruturação de trilha, levantamento de atrativos, organização comunitária, planejamento de roteiros participativos interligando estas aldeias com outras unidades de conservação”, diz Hélio Castro Lima, responsável pelo planejamento ecoturístico do Parque e que também atua na Reserva Extrativista de Corumbau, no litoral baiano. Maia, a chefe do Parque, diz que coisas assim, além do aumento do orçamento destinado ao Monte Pascoal para 100 mil reais, lhe enchem de esperança em relação a possibilidade de conciliar floresta em pé com os mais de 5 mil pataxós que vivem na região.
“O Ibama começou a ver a questão indígena de um jeito diferente. No início foi muito difícil porque existe um preconceito enorme com relação à sobreposição de populações indígenas às alas radicais que existem. Hoje já existe um outro entendimento”, garante. “Se a gente não tomar conta hoje, nós, índios junto com eles (Ibama, Funai e MMA), vai chegar aquele ‘dos olho grande’ e acabar com tudo”, diz o cacique Araçari Pataxó, guia de visitantes no Parque. O drama é que nesse olho grande de que fala o cacique, há também o DNA da sua tribo.
Uma das principais fontes de sustento das tribos locais é o artesanato indígena. Com a expansão do turismo na região a partir da década de 80, esse tipo de atividade ficou insustentável. Atravessadores do Brasil inteiro passaram a comprar as “gamelas”, peças de madeira ainda cruas, sem o acabamento final, para serem revendidas nas grandes cidades brasileiras. A principal preocupação, é que esta madeira era cortada de dentro do próprio parque. A coisa assumiu tamanha proporção que acabou conhecida como “industrianato”.
Apelo à consciência
Jean-François Timmers , da Associação Flora Brasil, fez um relatório técnico da atividade e explica que pela escala que ela assumiu, é difícil combatê-la. “Os atravessadores são fortes e aos índios falta a consciência que essa atividade saiu de seu controle e nunca gerou uma renda decente para eles”, diz Timmers. A Flora Brasil e o Instituto Bioatlântica – IBIO estão fazendo um trabalho de substituição do artesanato em madeira pelo artesanato baseado em sementes. Mas não é fácil conseguir adesões. “A venda da gamela tem um retorno mais imediato, o que dificulta a ida de uma boa parte deles para agricultura ou para o artesanato de semente”, continua ele.
Por isso, um dos compromissos firmado pelo acordo de cooperação técnica FUNAI-Ibama é a busca de alternativas para um artesanato sustentável, considerado por Timmers um grande desafio diante da grave situação socioeconômica das aldeias no entorno do parque. Segundo a chefe do parque, 30 árvores tombam em média por semana pelas mãos dos índios para abastecer o industrianato. Incluindo os cortes feitos por gente que não pertence às tribos, a conta anual chega à 1, 3 mil metros cúbicos de madeira retirada ilegalmente. A situação é tão crítica, conta Maia, que até as lideranças indígenas pedem ao Ibama para coibir a atividade.
Mas diante da inoperância federal e da volúpia com que índios e não índios continuam se entregando à atividade de cortar madeira para fazer objetos, só resta mesmo acreditar que um dia a consciência coletiva pode mudar. Pelo que fala o cacique Araçari, a dele já mudou. “Se não parar com o artesanato quem vai sofrer somos nós, nossos filhos, nossos netos. Nós temos que partir pra outra maneira de trabalho pra poder preservar essa floresta. Hoje acabou tudo. Eu fazia o artesanato. Não faço mais. Já tem 7 anos”, diz.
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