A carne de macaco geralmente não é listada como uma iguaria apreciada nas mesas brasileiras. Mas ela pode ser bem mais popular do que se pensa. Um relatório divulgado na última segunda-feira por duas Ongs européias – a inglesa Care for the Wild e a alemã Pro Wildlife – diz que cerca de 5,4 milhões de primatas vão parar nas panelas da população rural da Amazônia brasileira todos os anos. E outros tantos viram animais de estimação, colares ou produto de feira-livre. Segundo o estudo, macacos-pregos podem ser apreciados em restaurantes de Manaus, Porto Velho e Rio Branco. A intenção dos ambientalistas com o estudo é mostrar que a caça e o comércio de primatas na parte tropical das Américas é tão grave quanto na África.
Segundo o relatório, oito milhões de sul-americanos comem carne de macaco regularmente, especialmente na região amazônica, como fonte de proteína. Essa demanda se tornou a principal ameaça à sobrevivência das espécies do continente nos próximos 20 anos – mais do que a perda de habitats. Onde a caça está presente, estima-se que haja uma diminuição de 93,5% na biomassa dos grandes primatas em comparação com áreas onde não existe a prática. A ausência dos bichos nessas áreas se reflete também na flora local, já que os macacos são importantes dispersores de sementes. O impacto de sua retirada, portanto, é ainda maior para a biodiversidade.
O relatório usa 200 pesquisas anteriores para montar o quadro da caça de primatas em toda a América Latina e examina a situação em 22 países. Em 16 deles, a caça é considerada séria ameaça às populações de primatas. Em outros cinco (Argentina, Belize, El Salvador, Nicarágua e Uruguai) não havia dados suficientes, mas acredita-se que o problema exista. O Chile, talvez única exceção, não tem uma espécie sequer de macaco em seu território.
Tradição corrompida
O aumento no número de estradas e de novos povoamentos têm levado a caça a uma área cada vez maior da Amazônia, principalmente a partir da década de 1960 – marcada por incentivos para ocupação da floresta. Hoje, cerca de ¾ da Amazônia podem ser alcançados a pé. Há um cálculo que até trilhas abertas por pesquisadores aumentaram em 62% o acesso do homem aos primatas.
Além disso, espingardas, lanternas, baterias e caminhões têm aumentado a eficiência dos caçadores. Principalmente no que diz respeito aos povos indígenas, que antes usavam métodos bem menos predatórioss, como arco e flecha, e hoje usam até tratores para avançar dentro da mata. E as armas de fogo lhe permitem matar praticamente qualquer animal em qualquer lugar. Antes não era tão fácil matar um macaco no alto de uma árvore, lembra o relatório.
Outra importante mudança de comportamento é que a atividade que nasceu como uma caça de subsistência virou um comércio dentro e fora das aldeias. O que até então era uma atividade exercida com o intuito de matar espécies específicas para consumo próprio ou para usar como moeda de troca na comunidade, se tornou uma caça não seletiva- incentivada principalmente por madeireiros. Com isso, os primatas de grande porte se tornaram raros em praticamente toda a bacia Amazônica e os de médio porte estão sofrendo o mesmo destino.
Macaca à brasileira
Segundo o relatório, os macacos maiores são os mais populares do cardápio primata. É o caso do macaco-barrigudo (Lagothrix spp.), do macaco aranha (Ateles spp.) e do prego (Alouatta sp.). As fêmeas são em geral as preferidas – têm mais gordura e a carne é considerada mais saborosa. Quando as espécies mais encorpadas começam a escassear, passa-se a caçar também bichos menores. O macaco-barrigudo é apontado como o mais vulnerável – é um dos mais presentes na América tropical e também um dos primatas mais visados em diversos países do continente, pelo tamanho.
No Brasil, lembra o texto, o muriqui (Brachyteles arachnoides), o maior primata das Américas, sofreu com a caça ao ponto de estar hoje restrito a poucas áreas remanescentes de Mata Atlântica. O país é um dos mais importantes para a conservação, já que tem pelo menos 109 espécies diferentes de primatas. Segundo as Ongs, os estados onde a ameaça é pior são Acre, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Maranhão, Rondônia, Tocantins, Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais.
Para o primatologista Cláudio Pádua, o número de 5,4 milhões de macacos indo para a panela anualmente está dentro da realidade. “Ele provavelmente foi um pouco estrapolado, o que é normal nesses casos. Mas é perfeitamente possível”, diz. Segundo Pádua, a pesquisa que gerou a cifra é de um cientista sério, Carlos Peres, que vem há anos fazendo cálculos do tipo. No entanto, o biólogo deixa a entender que o relatório das Ongs pode ser um tantinho alarmista. Ele explica que é possível caçar na Amazônia, desde que seja respeitado o limite do que a natureza pode oferecer.
Além de alertar para a necessidade de medidas mais efetivas de prevenção à caça nos países – incluindo formas de substituir essa fonte de proteína por outras menos agressivas à natureza –, o relatório pede que a questão seja levada à Convenção de Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (CITES). Um grupo de trabalho da convenção já discute a questão na África e traça planos de combate ao problema. Para os ambientalistas, é preciso adotar a mesma postura para salvar os primatas da América.
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