Mesmo com o linguajar mais conservador possível – como tem sido o tom de pareceres políticos sobre aquecimento global – o segundo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) diz, com todas as letras, que o fenômeno provocado pelo homem já exerce grandes impactos sobre o mundo natural. O documento, considerado o “coração” dos estudos sobre clima por destacar como as alterações na atmosfera vão afetar o meio ambiente e as populações, foi publicado nesta sexta-feira após uma semana de lentos acordos entre os cientistas que laboravam o texto final para divulgação.
Por causa do furor mundial provocado pelo primeiro relatório, lançado em fevereiro, as delegações da Arábia Saudita, Estados Unidos, China e Índia pressionaram desta vez por um tom bem mais ameno. E conseguiram. De acordo com reportagem da Associated Press, pelo menos três dos cientistas presentes à maratona de reuniões ficaram insatisfeitos com o texto final, principalmente em relação ao grau de confiabilidade em algumas informações científicas: 80%, em vez de 90% como queriam pesquisadores que assinam o documento original.
Apesar disso, os cientistas transmitiram recados muito claros. Por exemplo: se os termômetros subirem entre 1,5 a 2,5 graus Celsius, cerca de 20 a 30% das espécies do mundo estarão sob risco de extinção. E uma parcela muito mais expressiva dos seres vivos será extinta caso a temperatura suba 5º C. A essa temperatura, 30% de todas as áreas inundáveis próximas à costa também estarão liquidadas. Com apenas um grau acima da média, haverá um incremento na quantidade de corais mortos nos oceanos e poderá se considerar a mortandade generalizada desses seres marinhos com a elevação de mais 3,5ºC. A partir dessa temperatura, esperam-se ainda grandes perdas na produção de cereais em latitudes baixas e, desde já, deve aumentar a quantidade de óbitos humanos causados por ondas de calor, desnutrição, doenças cardio-respiratórias e infecciosas.
Só que tudo isso não está num futuro distante. Há hoje evidências muito fortes de que os impactos aos habitantes do planeta já são sentidos. As prematuras quedas de folhas, migração de aves e cardumes nos rios, além da deposição de ovos fora de época deram aos pesquisadores 90% de certeza de que o aquecimento global tem antecipado a primavera e modificado os hábitos de uma enorme gama de espécies. Os cientistas afirmam que é possível ter um alto grau de certeza de que o número e tamanho de lagos formados pelo derretimento de glaciares aumentaram. Comunidades construídas próximas a esses lagos podem sofrer com enchentes repentinas. Os ecossistemas do Ártico e da Antártica também estão sendo afetados pela mudança de temperatura. Os predadores do topo da cadeia alimentar são as maiores vítimas.
Áreas críticas
De acordo com o relatório, milhões de pessoas que vivem nas cercanias dos nos mega-deltas da Ásia e África devem sofrer com alagamentos anuais por volta de 2080. São áreas baixas, mas densamente povoadas, que já se encontram em risco devido a tempestades tropicais e não têm muitos recursos para investir em medidas de adaptação. Ilhas pequenas também são especialmente vulneráveis, dizem os cientistas.
As áreas costeiras são as que mais sofrerão conseqüências negativas em termos de indústria e sociedade. Esses efeitos, no entanto, variam enormemente ao redor do mundo. Como tem sido amplamente divulgado há algum tempo, as comunidades mais pobres serão as maiores prejudicadas. O aumento de freqüência e intensidade de eventos meteorológicos extremos – como tempestades, furacões e nevascas- demandará mais dinheiro e investimentos. Não à toa, a África é vista como um dos continentes mais vulneráveis às mudanças. Por volta de 2020, entre 75 e 250 milhões de africanos devem enfrentar falta d’água por causa do aquecimento. Além disso, a produção agrícola deve ficar seriamente comprometida. O relatório diz que alguns países devem ter suas área de plantio irrigada pela chuva diminuída em 50% por volta de 2020.
As projeções do relatório para a América Latina em 2050 também não são animadoras. O aumento da temperatura e a presença de menos água no solo devem de fato transformar parte da Amazônia em savanas e áreas reconhecidas hoje como semi-áridos sofrerão processo de desertificação – fenômeno também previsto para áreas agricultáveis. A expectativa é que as produções de grãos e carne recuem e que o acesso mais restrito à água afete não só a agricultura, mas as populações humanas e a geração de energia. O aumento da temperatura e do nível dos mares deve provocar enchentes nas regiões mais baixas da América do Sul e modificação nos estoques pesqueiros do sudeste do Pacífico. Os corais do Caribe estão em risco.
Difícil remediar
Apesar das notícias do aquecimento em geral terem um tom de tragédia anunciada, alguns (há que se reconhecer, poucos) pontos do relatório são de conseqüências positivas das mudanças no clima. Estudos em áreas de clima temperado revelam que haverá menos mortes por exposição ao frio, por exemplo. Antes que o leitor esboce um sorriso, no entanto, o texto crava o punhal: esse dado, diz o relatório, deve ser ofuscado pelo efeito negativo do aumento das temperaturas ao redor do globo, com ondas de calor, especialmente nos países em desenvolvimento. Da mesma forma, as mudanças devem ser positivas, a princípio, no Norte da Europa, com efeitos mistos, como demanda reduzida por aquecimento e aumento dos campos de cultivo. No decorrer das mudanças, no entanto, os efeitos negativos (como inundações no inverno e instabilidade no solo) também devem acabar com a felicidade climática dos europeus.
Os pesquisadores reconhecem que ainda é difícil mensurar o que exatamente poderá ser evitado com adaptações de infra-estrutura para as populações, tampouco podem estimar quanto tudo isso vai custar à economia. Mas não têm dúvidas de que providências nesse setor precisam ser tomadas o quanto antes no campo tecnológico, comportamental, gerencial e de políticas públicas. E lembram que não vai adiantar elaborar medidas para mitigar o problema do aquecimento global se não existirem esforços para tornarem alguns ambientes menos vulneráveis a poluição, ao desmatamento, exploração predatória e a outras ameaças.
A partir da próxima semana, o IPCC vai publicar relatórios regionais sobre os impactos das mudanças climáticas. Um deles abrange especificamente o Brasil, e será divulgado no dia 10 de abril em São Paulo. No dia 4 de maio sai o último relatório do IPCC em 2007, em Bangkok, quando poderão ser conhecidos os esforços internacionais e as tecnologias disponíveis para evitar o agravamento das mudanças climáticas e para mitigar as ações já em curso.
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