Reportagens

Ilustre desconhecido

Rico e diverso, o Pampa gaúcho carece de proteção legal dentro de unidades de conservação. E de pesquisas que ajudem a definir limites e potencialidades de seus ecossistemas.

Sílvia Marcuzzo ·
16 de julho de 2007 · 17 anos atrás

O Pampa, privilégio apenas dos gaúchos, uruguaios e argentinos, tão divulgado pelos Centros de Tradição Gaúcha desse mundo afora, é um ilustre desconhecido quando o assunto é seu ambiente natural. Com 178.243 quilômetros quadrados, cobre mais da metade do Rio Grande do Sul e dispõe de uma biodiversidade impressionante: somente em sua porção brasileira ocorrem cerca de três mil espécies de plantas, sendo que só gramíneas são 450 espécies, mais 150 de leguminosas, 70 tipos de cactos, 385 de aves e 90 de mamíferos, conforme levantamentos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Também é no Pampa que fica a maior parte do aqüífero Guarani.

Recentemente, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) se deu conta da sua importância. Com base no Mapeamento da Vegetação Nativa do Bioma Pampa, a equipe de Marina Silva definiu que existem 105 áreas importantes para conservação dos Pampas. A pesquisa verificou remanescentes de 23,03% de campos, 5,38% de florestas e 12,91% de áreas de transição, num total de 73.649,746 quilômetros quadrados – o equivalente a 41,32% do seu território. Quase metade do bioma hoje foi transformado em áreas rurais antrópicas, como plantações e construções. Menos de 1% é ocupado por cidades. Ou seja, ainda há muito ambiente natural para se preservar no Pampa.

Primo pobre

Mas ele é o primo pobre em relação às áreas naturais protegidas no Brasil. É o que tem menor representatividade no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), com apenas 0,36% de seu território transformados em áreas de conservação. Existem somente o Parque Estadual do Espinilho e a Reserva Biológica de Ibirapuitã. Ambas com gado solto e um só funcionário, que fica na sede das unidades de conservação, localizadas nas cidades de Quaraí e Alegrete. Quase todos os ecossistemas estritamente pampianos não têm outro tipo de unidade de conservação, nem municipal ou estadual.

“O Pampa é visto como uma vegetação menos nobre porque apresenta campos naturais, áreas que sempre foram campo, com gramíneas e outras formas de vegetação não lenhosa. Se apenas protegermos as florestas, nunca entenderemos como é a ecologia das espécies de hábito campestre”, desabafa o professor do Laboratório de Geoprocessamento do Centro de Ecologia da UFRGS, Heinrich Hasenack, que foi responsável pelo mapeamento do pampa gaúcho. Esses dados serviram de base para a elaboração do Zoneamento Ambiental para Atividades de Silvicultura pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental, que está sendo contestado pelo governo do estado e pelas empresas Stora Enso, Votorantim Celulose e Papel e Aracruz Celulose, que pretendem fazer extensas plantações de eucalipto no bioma.

O coordenador do Núcleo Mata Atlântica e Pampa do Ministério do Meio Ambiente, Wigold Schäffer, disse que a partir desse levantamento e do zoneamento ecológico econômico do Rio Grande do Sul, o ministério pretende iniciar um processo de estudos para ampliar o número de unidades de conservação ma região no segundo semestre deste ano.

Tais estudos estão sendo feitos sem que sejam conhecidos os limites do Pampa. As referências que se têm fazem parte de uma versão preliminar do Mapa de Biomas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Shäffer informa que há diversas demandas para mudança do traçado. O Comitê Estadual da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica gaúcho reivindica que ambientes tidos como Pampa permaneçam no bioma Mata Atlântica. “Isso está sendo analisado pelo IBGE e Ministério”, diz o coordenador. “Não se sabe quais são os tipos de campo”, esclarece o geógrafo Heinrich Hasenack. Ele explica que há descrições com diferentes enfoques, mas nenhuma que conjugue as feições da vegetação, do relevo, do clima e da geomorfologia, entre outras características.

Areal

As paisagens naturais do Pampa são variadas, de serras a planícies, de morros rupestres a coxilhas. O bioma exibe um imenso patrimônio cultural associado à biodiversidade. Um dos ambientes mais interessantes são os areais. São dunas e manchas de areia espalhadas numa área de 5.270 hectares. Atingem dez municípios e invadem o Departamento de Artigas, no Uruguai. Esses ambientes foram erroneamente chamados de desertos, por muitos anos. Hoje podem até ser considerados um ecossistema pampeiro, pois há registros muito antigos da sua existência.

A professora Dirce Maria Suertegaray, do Departamento de Geografia da UFRGS conta que a arenização é um fenômeno natural, mas que foi agravado devido à ação do homem. Ela fez essa descoberta nos anos 80, durante o seu doutorado na USP. Dirce se surpreendeu ao encontrar documentos, de 1816, sobre distribuição de sesmarias na região, que fixam como limite de propriedade um tal Rincão do Areal, hoje distrito de Areal. “Fica claro que o fenômeno é conhecido desde o século 19, muito antes da mecanização da lavoura”, relata.

Biodiversidade rica e ignorada

No bioma, que chegou a ser classificado como um “vazio ecológico”, são encontrados mais de 50 plantas forrageiras nativas, entre gramíneas e leguminosas, altamente produtivas. O professor Paulo Brack, também da Botânica da UFRGS, diz que muitas forrageiras nativas do Rio Grande do Sul “são apreciadíssimas nos Estados Unidos, Nova Zelândia e África do Sul, mas aqui elas são quase ignoradas ou combatidas como mato”. Ele explica que essa concepção equivocada fez com que o Brasil importasse plantas forrageiras africanas. Essas espécies se tornaram altamente invasoras, além de serem pouco nutritivas para o gado, como no caso das braquiárias, o capim-colonião e o capim-gordura, que hoje trazem diversos prejuízos para a pecuária. Outro caso lembrado por Brack é a biopirataria de plantas ornamentais, como petúnias, verbenas, cactos, muitas endêmicas dos pampas, que são levadas há décadas, por países como Estados Unidos, Japão, Itália e Alemanha.

De acordo com José Otávio Neto Gonçalves, pesquisador da Embrapa Pecuária Sul, de Bagé, o estado gaúcho está entre as nove regiões do mundo que ainda possuem áreas de vegetação tipicamente campestre. Um levantamento feito pela Embrapa encontrou mais de 800 espécies de gramíneas e mais de 200 de leguminosas. Mas tudo isso é desperdiçado na medida em que se expande a fronteira agrícola, de silvicultura e pastagens. Segundo Valério Pillar, do Departamento de Ecologia da UFRGS, todo ano são perdidos 136 mil hectares de campos nativos por ano. Apesar disso, o governo estadual tem planos de aumentar de 2% a 5% a atividade da silvicultura na próxima década.

“Se em 366 anos de produção pecuária, o Pampa até hoje permanece, é sinal de que este tipo de exploração tem sustentabilidade ambiental”, argumenta Gonçalves, da Embrapa. O professor Carlos Nabinger, da Faculdade de Agronomia da UFRGS, garante que se for realizado o manejo adequado é possível triplicar o ganho de peso dos animais a custo praticamente zero e de forma ecologicamente correta. “A pastagem natural não cumpre um papel apenas produtivo de carne, leite e lã, ela é sim um recurso multifuncional: preserva a cultura, tem valor turístico e ambiental”, defende.

  • Sílvia Marcuzzo

    Jornalista, facilitadora de grupos, consultora em comunicação, editora e produtora de conteúdos de publicações impressas e digitais.

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