Reportagens

Passagem conturbada

Revoltados com a fiscalização ambiental, empresários questionam regra que proíbe trânsito de barcos com equipamentos de pesca no entorno do Parque Nacional do Pantanal.

Andreia Fanzeres ·
31 de julho de 2007 · 17 anos atrás

Existem áreas no Pantanal onde é possível acreditar que as pressões e as ameaças à natureza ainda não chegaram. Navegar em um pequeno barco a motor na divisa de Mato Grosso com Mato Grosso do Sul, pelos rios Cuiabá e Paraguai, revela que no entorno de um mar de água doce há vida em profusão. A vegetação baixa e a alta concentração de nutrientes atrai grandes populações de aves aquáticas, jacarés, cobras, ariranhas, capivaras, macacos, antas e onças – para os que têm mais sorte de ver – ,além de tantos outros animais. Só que lá, a razão dos maiores conflitos envolvendo o meio ambiente só aparece quando é fisgado. Graças à pesca e à contestação de suas regras em áreas protegidas que empresários do setor declararam guerra contra a administração das unidades de conservação da região, sobretudo o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense.

Desde que o parque nacional foi criado, em 1981, há fiscalizações, antes esporádicas e ultimamente bem mais freqüentes, nos rios do Pantanal para coibir a presença indevida de barcos de pesca dentro ou no entorno da unidade de conservação. As determinações sobre como e onde é proibido pescar na planície inundável foram estabelecidas depois da publicação do plano de manejo do Parque Nacional do Pantanal, em 2004. De acordo com o chefe da unidade, o ictiólogo José Augusto Ferraz, à época houve discussão e os empresários de turismo de pesca de Corumbá (MS) receberam informações e folderes para distribuição aos visitantes com todas as explicações. Mas eles nunca aceitaram a imposição dessas regras.

Pela mesma portaria que estabeleceu o plano de manejo, ficou proibido o trânsito de embarcações pequenas com apetrechos de pesca dentro do parque, na zona de amortecimento e em áreas também consideradas restritas pelo plano. “Como temos pouco efetivo para fiscalização, criamos outras estratégias para proteger o parque, a partir da conscientização das pessoas de que ali não pode pescar”, diz Ferraz. Geralmente, dezenas desses barquinhos de alumínio motorizados são puxados por um barco hotel grande em passeios pelos rios do Pantanal. Quando decidem parar para pescar, soltam os barquinhos que transitam livremente por corixos e baías. Agora, para não infringirem a lei, ou esses barcos pequenos navegam sobre o teto dos grandes até as zonas permitidas, ou entregam ao comandante todos os equipamentos de pesca. Se passarem com redes, tarrafas, varas ou anzóis, a fiscalização interpreta a ação como ato tendente e, preventivamente, pode multar o barco.

“Hoje isso é tendência comprovada, nem é ato tendente”, opina Ferraz. Segundo ele, na maioria das vezes os barquinhos são flagrados já pescando, e ao perceberem a aproximação dos fiscais fogem, deixando os equipamentos para trás. “A área das ‘Três Bocas’, colada ao parque nacional, era conhecida como pronto-socorro, porque os barcos pequenos navegavam na frente para pescar lá e completar a cota de peixe que o turista pode levar”, relata o chefe da unidade de conservação.

Estopim

No início do ano a situação se agravou após a multa a um barco que pescava em área não permitida pelo plano de manejo, no entorno do parque. De acordo com o oceanógrafo Nuno Rodrigues, analista ambiental que trabalha na unidade, depois do episódio o Ibama aumentou a fiscalização. E numa operação com a Polícia Federal no mês de junho flagraram dois barcos-hotéis pescando com vários outros pequenos na baía Gaíva, que fica na zona de amortecimento do Parque Estadual do Guirá, em Mato Grosso.

No dia 5 de julho, revoltados, os empresários de turismo de pesca marcaram uma reunião em Corumbá, com a presença de representantes da Marinha e do Ministério Público. Rodrigues também foi e ouviu de Thomaz Lipparelli, ex-superintendente de pesca de Mato Grosso do Sul, e atual consultor da Associação Corumbaense de Empresas Regionais de Turismo (Acert), firmes críticas ao plano de manejo do parque nacional. “Simplesmente ignoraram a participação pública e colocaram como ações prioritárias o fim do turismo de pesca no rio Paraguai, o que tem gerado uma série de conflitos e ações judiciais. Quem sai perdendo é só a natureza”, diz.

Críticas à fiscalização

“Devido à sua calagem, algumas embarcações não conseguem passar pela zona de amortecimento para atingirem regiões à montante, onde tradicionalmente eles já pescavam e ainda hoje a prática é permitida. Por isso, precisam lançar os barcos menores na frente, e é aí que estão sendo notificados pela fiscalização”, explica Lipparelli. Segundo ele, algumas autuações foram feitas inclusive fora das áreas proibidas. “Os empresários estão desesperados porque não receberam informações sobre a localização das unidades de conservação e até os turistas estão sendo multados”.

De acordo com o consultor, cada visitante flagrado em trânsito tem recebido multa de cinco mil reais, até os contemplativos, sem equipamentos de pesca. E isso afasta não só o turista, como levam aos empresários, temerosos por novas multas, a não apoiar iniciativas de proteger mais áreas no Pantanal. “Outro dia a Embrapa apresentou um desenho de várias Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) a serem criadas entre Corumbá e o parque e os empresários não gostaram nada disso”, fala Lipparelli.

Parque e empresários sabem que o turismo pode ajudar a implementar as unidades de conservação. Lipparelli acha que a diversão na pesca hoje pode se transformar em interesse por conhecer o parque no futuro, por isso enxerga sérios danos à imagem da área com turistas levando multas que julga indevidas. Para Ferraz, chefe do parque, o turismo de baixo impacto é sim prioridade, e existem muitos planos para construção de centro de visitantes, trilhas suspensas e atracadouro de barcos na área do parque para quando ele for aberto à visitação. “Conseguimos incluir o Pantanal no programa de incentivo à visitação em parques nacionais, o que foi uma vitória. No entanto, as verbas ainda não saíram”, lamenta. Mas enquanto as pressões não forem resolvidas, investir nisso vai ter que ficar em segundo plano. “Eu sou um cara realista. E entendo agora que tenho que investir mais em fiscalização do que no turismo. Não queremos abrir por abrir. Não é interessante para as empresas nem para a conservação”, diz Ferraz.

Diálogo

“Creio que os empresários tenham entendido que a legislação deve ser cumprida e haverá diálogo através das reuniões do conselho consultivo do parque, que ainda está sendo formado”, diz Rodrigues, do Ibama. Mas Lipparelli não acredita que isso seja solução imediata. “Estão enrolando a formação desse conselho desde 2004 e as regras foram impostas. Desse jeito elas nunca serão cumpridas porque não tem a validação da sociedade”, reclama o representante da Acert.

No dia 22 de agosto haverá nova reunião em Corumbá para detalhar a participação dos empresários no conselho consultivo do parque nacional. Ferraz quer ver esse conselho sair do papel o quanto antes, mas lembra que constituí-lo não tem sido uma missão fácil. “O parque abrange Corumbá, Poconé e Cáceres (MT), é preciso tempo, boa vontade, recursos e respeito à legislação para que o nosso trabalho dê certo”, diz.

* Leia amanhã a reportagem Lenda Pantaneira, sobre os motivos que levam os pescadores a acreditar que há menos peixes no Pantanal e como isso tem pressionado as unidades de conservação.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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