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Assenta e corta

Greenpeace mostra que, com a benção do INCRA, assentamentos e madereiras se tornaram cúmplices no desmatamento. Para empresas, modelo garante viabilidade à reforma agrária.

Gustavo Faleiros ·
21 de agosto de 2007 · 17 anos atrás

As parcerias público privadas (PPPs) podem não ter saído do papel para financiar as obras de infra-estrutura como prometera o governo federal, mas no setor madeireiro elas estão funcionando de vento em popa. Em Santarém, Norte do Pará, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) oficializou a entrada de madeireiras em assentamentos. Em troca de toras, o órgão exige que as empresas investissem em construção de estradas e benfeitorias para os assentados sem qualquer preocupação com seu licenciamento ambiental.

O problema, aponta uma investigação do Greenpeace, é que o interesse madeireiro nas áreas novas de assentamento precedeu não apenas as contrapartidas dos madeireiros, como a chegada das famílias beneficiadas pela reforma agrária. Áreas da união que em 2006 foram transformadas em Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) já registram retirada de madeira nativa sem que os beneficiários tenham sequer sido transferidos para as terras. Para o Greenpeace, o problema vem de “uma combinação explosiva de fatores que podem impulsionar a retomada do ciclo de expansão do desmatamento da floresta amazônica”.

Tal “combinação explosiva” se deu com a criação a toque de caixa pelo INCRA de 97 assentamentos em Santarém no ano passado, muitos em áreas de floresta nativa. O relatório do Greenpeace, intitulado de “Assentamentos de papel, madeira de lei”, calculou que todos os assentamentos criados em 2006 não possuem licenciamento ambiental. Além disso, 60% não têm a planta do imóvel. Foram criados no grito, sem se saber a sua exata localização. E só 26% dessas áreas têm o laudo agronômico, que serve para comprovar a viabilidade de produção dos futuros assentados.

Foi nessas estranhas estatísticas que o Ministério Público Federal se escorou para entrar, no último 9 de agosto, com uma ação civil pública para cancelar os 97 assentamentos criados no município no ano passado. A processo ainda será julgado em primeira instância. Segundo um dos autores da ação, o promotor Felipe Braga, entre os novos lotes da reforma agrária existem áreas sobrepostas a unidades de conservação ou que ocupam remotas regiões de floresta primária. “Não existe viabilidade de ocupação humana nestes assentamentos. Além de beneficiarem o setor madereiro, os decretos servem para o próprio INCRA provar que está cumprindo suas metas”, dispara Braga.

Madeira sai antes do assentado chegar

O que surpreende na pressa em fazer os assentamentos é o fato de que muitos dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável na região de Santarém surgiram com laudos técnicos que recomendaram a aprovação de planos manejo para a extração madereira. É o caso do PDS Renascer, cujo laudo de apenas três páginas defende contratos com madeireiras da região. O próprio INCRA, em um documento interno reconhece que mesmo em assentamentos onde famílias ainda não foram assentadas, é possível observar a atuação de empresas madeireiras.

“Relatos dos técnicos da Superintendência dão conta que algumas associações foram constituídas sob os auspícios de madeireiras anteriormente mesmo ao processo de criação do PDS de forma a garantir à estas últimas uma a futura exploração dos recursos florestais”, diz o Plano de Ação da Superintendência de Santarém, elaborado pelo antigo coordenador do Departamento de Meio Ambiente do instituto, Marco Antônio Pavarino, em junho deste ano. Apesar de, pelo menos nesse ponto, o próprio Incra reconheccer que há irregularidade, isso não impede o órgão de impor seus planos com mão de ferro. E ai de quem se oponha a eles.

Francisco das Chagas, uma espécie de assentado dissidente que é contra a presença de madeireiras em áreas de reforma agrária já foi remanejado três vezes de lugar pelo órgão. Ivete Bastos, da direção do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Santarém e uma das mais ferrenhas críticas dessa política do Incra, hoje anda com escolta armada. O coordenador de áreas protegidas da Campanha de Proteção da Amazônia do Greenpeace, André Muggiati, explica que a influência das madereiras no futuro dos assentamentos que foram criados em Santarém é bem mais ampla do que se vê na superfície.

Segundo ele, mesmo sem planos de manejo aprovados, as associações já estão assinando contratos de fornecimento de madeira com as empresas. “Isso é o contrário do que se imagina para um Projeto de Desenvolvimento Sustentável, cria a dependência das comunidades com as madeireiras”, diz ele. O presidente do Sindicado das Madeireiras do Sudoeste do Pará (Simaspa), Luiz Carlos Tremonte, defende com ênfase a parceria das empresas com as associações de assentados. Segundo ele, as acusações do Greenpeace e do Ministério Público não podem ser dirigidas a todo setor madeireiro.

“Se estão tirando madeira sem plano de manejo, é coisa de ladrão de madeira, é crime, tem que botar na cadeia. O que não dá é para generalizar”, reclama. Nos assentamentos em que as parcerias foram firmadas, afirma Tremonte, os planos de manejo são conduzidos com transparência. Os melhores exemplos, relata, são encontrados nos projetos de assentamento Cupari, na cidade Aveiro, e Moju, na região de Santarém. Pode até ser. Mas a intensidade do transporte noturno de toras na região é um forte indício de que lá há muita gente com coisa a esconder.

Investigação em curso

De acordo com o Greenpeace, a Superintendência do Incra em Santarém apoia a parceria com empresas madeireiras. O Chefe da Superitendência, Pedro Aquino Santana, defendeu em reunião da Comissão de Gestão de Florestas Públicas, no último dia 9 de maio em Brasília, que “a parceria entre madeireiros e assentados oferecem uma oportunidade para que o Incra negocie benefícios para os assentamentos”. Na visão de Muggiati isso é um erro. “As obrigações de assentar e prover infra-estrutura são do Incra, conceder isso a empresas privadas interessadas em explorar os recursos naturais é crime”.

O presidente da Simaspa diz que quando o setor se dispõe a construir estradas, postos de saúdes e igrejas, ele apenas está atendendo ao pedido das famílias assentadas. “Esse é o nosso papel social”, garante. Já a direção geral do Incra e Ministério do Desenvolvimento Agrário, em Brasília, negam que estejam promovendo a entrada descontrolada de madeireiros nos assentamentos recém criados. Nesta segunda-feira os dirigentes estiveram reunidos o dia todo e não concederam entrevistas, mas divulgaram nota dizendo que “nos dois projetos de assentamento (Moju e Cupari) em que foi constituído acordo entre assentados e madeireiras para construção de infra-estrutura, existe um plano de manejo aprovado; e as madeireiras estão devidamente regularizadas.”

O Ministério Público Federal de Santarém já considera a possibilidade de mover outras ações públicas se suas investigações encontrarem provas de houve irregularidades e beneficiamentos das madereiras nos acordos com assentamentos ou na retirada de recursos florestais nos novos assentamentos. O Incra sustenta que os assentamentos não têm famílias assentadas porque estão à espera do licenciamento, “(…) iniciativa que demonstra seriedade ambiental do Incra”, diz a nota. Os desmatamentos, portanto, que ocorrem nos PDSs criados em 2006, é “ação de grileiro” e os crimes já foram denunciados ao Ibama.

Não custa lembrar que o próprio Incra indicou em um documento interno que estes tais grileiros foram capazes de constituir associações de assentados antes mesmo da criação dos PDSs. Resta saber, portanto, se num futuro não muito distante estas mesmas figuras não terão planos de manejos aprovados com a benção de quem hoje os chama de grileiros.

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

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