Carlos Medeiros tem CPF, carteira de identidade, endereço fixo, profissão e muita terra no Pará. São 12 milhões de hectares, boa parte deles em área onde ainda há floresta. Medeiros é também um velho conhecido do Judiciário no estado, onde possui uma ficha criminal em que se sobressaem suas constantes trocas de endereços e o incessante registro oficial de propriedade de imóveis rurais. A Justiça sabe que ele virou latifundiário grilando terras públicas. Mas tem certeza que jamais conseguirá pegá-lo, por esse ou qualquer outro crime, porque existe no seu perfil um pequeno e importantíssimo detalhe: Medeiros não existe. É um fantasma que há três décadas vem sendo usado pela indústria da grilagem paraense para legalizar a posse de terras públicas.
Apesar de não ter carne e nem osso, Medeiros já inscreveu seu nome nos anais da história da recente onda de devastação na Amazônia. Ele é o personagem principal do que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), formada em 2001 para investigar grileiros na Amazônia, chamou de o maior caso de grilagem já visto no país. Seu nome apareceu pela primeira vez num documento oficial em 1975. O papelório, entretanto, remontava a 1800. Tratava-se de uma carta de adjudicação retirada dos autos dos inventários de dois portugueses que deixava as terras dos dois para ninguém menos que Carlos Medeiros. No mesmo ano, um juiz deu sentença favorável ao fantasma, ordenando que ele se apropriasse das terras deixadas por Manoel Fernandes de Souza e Manoel Joaquim Pereira.
As suspeitas que a documentação apresentada pelos advogados que agiam em nome de Medeiros era forjada sempre foram grandes. Afinal, os dois deixaram para ele cerca de 10% do Pará, uma extensão de terra que talvez só viesse a cair legalmente em mãos privadas nos tempos das Capitanias Hereditárias. Não havia mais município no Pará onde não houvesse pelo menos um naco de terra sob o nome de Medeiros. Com a posse reconhecida e sempre sem dar as caras, funcionando através de seus procurados, Medeiros começou a vender suas terras a madeireiros e pecuaristas. Mas as suspeitas em torno de sua atividade cresceram e provavelmente para embaralhar o caso, as pessoas que se protegiam atrás de Medeiros resolveram dar um sumiço no inventário. Em 1981, os autos se extraviaram quando estavam sob a guarda do cartório Rui Barata, onde haviam sido arquivados.
Três anos depois, Medeiros reapareceu requerendo, através de seus advogados, a restauração dos autos do inventário. Para tanto, mostraram uma cópia do processo original e tiveram o reforço de Marinho Gomes de Figueiredo, sujeito que já havia comprado grande porção das do fantasma. A petição foi julgada procedente em 1993 pela Juíza de Direito Rosa Maria Celso Portugal Gueiros, que não consultou o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), a União Federal ou o Ministério Público para embasar sua decisão. O governo estadual recorreu pedindo a anulação da decisão. Ganhou, mas era tarde demais. Todos os cartórios do estado já tinham feito os registros legais dos limites em nome de Carlos Medeiros.
A descoberta da fraude
A descoberta sobre o esquema de grilagem começou aos poucos e meio por acaso. Felício Pontes Jr. e seus colegas no Ministério Público Federal do Pará se depararam com a aprovação de um plano de manejo florestal em uma terra da União, na região de Santarém. Resolveram investigar dando um pulo até o local. Ele estava habitado por uma comunidade ribeirinha e completamente desmatado. A floresta tinha sido derrubada por uma madeireira. O MPF resolveu cruzar dados e descobriu que no Nordeste e região central do estado a mesma situação se repetia: um sujeito se apresentava como proprietário de terras que pelo menos em teoria pertenciam à União. Exame mais detido das propriedades sob suspeita revelou que em suas cadeias dominiais (uma espécie de DNA de um imóvel que mostra todos os donos que ele já teve) aparecia sempre, por força de decisão judicial, o nome de Carlos Medeiros.
Pontes pediu ao Ibama para enviar ao MPF todos os planos de manejo aprovados que tivessem na cadeia dominial o nome do fantasma. Com essa informação, os procuradores processaram todos os que se diziam donos das terras compradas de Medeiros por crime ambiental, retiraram os títulos de propriedade e paralisaram os planos de manejo. A quantidade de casos, no entanto, se mostrou infinita e para fugir do pesadelo burocrático, o MPF buscou outra solução. “Mostramos a fraude nos títulos a Corregedoria do Tribunal de Justiça do estado e pedimos que ela baixasse um provimento genérico para todos os cartórios bloquearem as terras da quadrilha”, conta Pontes. Hoje, ele acredita que não há mais terras da União nas mãos de parceiros do fantasma.
Para Flávio Mansos, diretor do Instituto de Terras do Pará, não é possível ter certeza se os cartórios cumpriram a determinação. Alguns indícios vão justamente na direção contrária. Na última semana, a Justiça Federal no Pará determinou que o plano de manejo da fazenda Novo Horizonte, em Paragominas, fosse suspenso. O nome de Medeiros apareceu entre os proprietários do terreno. Pontes acha que esta é uma das últimas propriedades de Medeiros que virarão objeto de pendenga judicial. Mansos não tem tanta certeza. Ele acha que se passarem um pente fino em cartórios paraenses ainda vão encontrar muita terra sob a tutela do fantasma. “O Tribunal de Justiça não tem vontade de julgar o caso porque existem indícios da participação de membros do magistrado”, diz.
Carlos Medeiros, é claro, nunca foi visto. Jamais apareceu num cartório nem foi a uma sessão de julgamento que pudesse lhe interessar. Mas seus procuradores são manjados das autoridades. Entre os mais conhecidos estão Flavio Augusto Titan Viegas e Flávio Antônio Ferreira Viegas. Apesar disso, nunca se chegou exatamente a quem estava por detrás do fantasma. “Ele é um exemplo clássico de grilagens de terras na Amazônia e o mais descarado de todos. Foi a partir dele que a grilagem começou a ser um mercado”, afirma Mansos. Como todo fantasma que se preze, Carlos Medeiros, como se vê, virou uma lenda na Amazônia.
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