Muitos dos turistas que visitam a cidade de Bariloche, aos pés da Cordilheira dos Andes, na Argentina, nem imaginam que naquelas altas montanhas nevadas está um pedaço significativo da história da conservação da natureza na América Latina. Foi ali, em 1934, que surgiu o primeiro parque nacional do continente, o Nahuel Huapi, graças à doação de terras feitas pelo herói argentino, o ‘descobridor’ da Patagônia, Francisco Pascascio Moreno. Inspirado pelas áreas protegidas norte-americanas criadas na virada do século 20, como Yosemite e Yellowstone, o ‘Perito’ Moreno (como ficou conhecido) abriu mão de propriedades que havia ganhado do governo e defendeu que toda a região montanhosa deveria permanecer intocada.
Com seus 705 mil hectares protegidos, o Parque Nacional Nahuel Huapi se tornou um exemplo concreto de como a conservação pode trazer prosperidade econômica. Em torno dele, a vila de São Carlos de Bariloche cresceu graças aos visitantes interessados em esquiar e caminhar nas montanhas. Hoje, a cidade possui 100 mil habitantes que vivem unicamente dos empregos nas lojas, restaurantes, hotéis e empresas turísticas. Essa dependência dos atrativos naturais, aponta o superintendente de Áreas Protegidas da Argentina, Héctor Espina, está muito clara no dia-dia dos habitantes das cidades, o que os torna defensores natos da conservação.
Pode-se dizer, entretanto, que essa situação é uma raridade na América Latina. Desde que a Argentina protegeu o primeiro naco de terra, todos os países vizinhos seguiram o exemplo e destinaram porções significativas de seus territórios à conservação. Mas ao contrário do que ocorre em Nahuel Huapi, estas reservas não têm estrutura para receber visitantes, e o pior, não têm o reconhecimento dos habitantes locais, fato que coloca a natureza conservada em constante ameaça.
Nas últimas quatro décadas, a quantidade de áreas protegidas na América Latina multiplicou-se por dez. Principalmente na década recente, após a Conferência da Terra, ou Rio-92, as nações latino-americanas conseguiram ultrapassar os países desenvolvidos na extenção de ecossistemas protegidos. Desde 1996, a quantidade de parques e reservas passou de 160 milhões de hectares (ha) para 300,8 milhões ha, segundo dados do colombiano Carlos Castaño, ex-dirigente de áreas protegidas em seu país e coordenador de uma pesquisa sobre conservação na região. Isso significa que oficialmente cerca de 12% do território latino-americano está protegido. Diz-se ‘oficialmente’, pois na prática a quantia estrondosa de hectares não passa de uma ilusão. Segundo o levantamento de Castaño, nestas áreas existe 1 funcionário a cada 107 mil ha, contra uma média de 1 a cada 6 mil na Europa e na América do Norte.
O dilema de como tornar efetivas as imensas zonas conservadas nas nações da Ámerica do Sul e Ámerica Central dominou o debate no II Congresso Latino Americano de Parques Nacionais e Outras Áreas Protegidas, que ocorreu entre os dias 30 de setembro e 6 de outubro, exatamente na cidade de Bariloche, onde toda história começou. A ONG The Nature Conservancy (TNC) apresentou ali dados que pioraram ainda mais o quadro pintado pelo colombiano Carlos Castaño. Em pesquisa coordenada por Marlon Flores, a organização descobriu que as nações latino-americanas gastam menos de um dólar por hectare com suas áreas protegidas. O levantamento mostra que o cone-sul precisa de mais 323 milhões de dólares por ano para investir para evitar alguma perda de biodiversidade.
“Não podemos dizer que com esse dinheiro vamos consolidar os sistemas de áreas protegidas, mas é uma brecha mínima que deve ser preenchida para não perdermos diversidade nos ecossistemas”, argumentou Flores. O caso do Brasil é interessante, revela a TNC. Considera-se que em termos de criação de unidades de conservação, somos o país que se saiu melhor. Temos, afinal, 111 milhões ha de parques e reservas. Mas por isso mesmo é que aqui está faltando mais dinheiro. A ONG calculou que o governo brasileiro (incluindo as doações internacionais) gasta em áreas federais cerca de 100 milhões de dólares. No entanto, o ideal seria uma quantia três vezes maior que essa.
Turismo é solução?
Neste curta história das unidades de conservação na América Latina, a forma mais efetiva que se encontrou para colocar dinheiro nos parques e reservas até agora foi o turismo. A Argentina, por exemplo, recebeu só no primeiro semestre do ano três milhões de visitantes, sendo que 55% deles vieram para visitar os parques nacionais, divilgou a Secretaria de Turismo do governo federal argentino durante o congresso em Bariloche. O mesmo se passa na Costa Rica, onde metade dos dois bilhões de dólares deixados por turistas estrangeiros no país todos os anos ficam nas regiões de áreas protegidas.
O equadoriano José Galindo, da consultoria Mente Factura, conta que o turismo de natureza é um dos negócios mais promissores do momento. Enquanto o setor mundial de viagens cresce 6% ao ano, a modalidade de visita aos atrativos naturais tem um incremento de 15%. Na América Latina, segundo levantamento da consultoria, 23% dos turistas estrangeiros ingressam em áreas protegidas. Brasil e Argentina, diz ele, estão entre os primeiros destinos com 200 mil e 250 mil visitantes respectivamente aos nossos parques nacionais. “O problema é que tudo isso está muito concentrado em poucas atrações. No Brasil, temos Iguaçu e Tijuca, na Argentina, Nahuel Huapi”, pondera o consultor. Pelos seus cálculos, se bem estruturado, o turismo em unidades de conservação na América Latina poderá render divisas da ordem de nove bilhões de dólares/ano.
O único problema com uma aposta total no turismo é que nem todas as áreas protegidas foram feitas para serem visitadas e algumas sempre serão mais apelativas ao público do que outras. Na opinião da secretária de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, Maria Cecília de Brito, o Congresso Latino Americano de Parques Nacionais falhou em apresentar propostas concretas para a implementação das reservas criadas nos últimos dez anos. Para ela, faltou debate sobre como compensar utilização por recursos genéticos das florestas tropicais e propostas de como ter categorias de unidade de conservação que permitam a convivência com populações humanas. “A discussão é um pouco antiga ainda, com aquela visão do norte que temos que criar imensas áreas sem gente dentro. Mas se não tiver uma solução de como gerar renda para as pessoas que estão próximas as unidades de conservação, esquece, não vai dar certo”, analisou.
Não é só dinheiro
A saúde financeira das reservas não é a principal preocupação de Kenton Miller, figura histórica na conservação da natureza e que por muitos anos presidiu a Comissão Mundial de Áreas Protegidas (CMAP). Para ele, a questão central é a fragmentação dos ecossistemas que vem ocorrendo com a construção de dutos, estradas e linhas de transmissão dentro e nas proximidades das unidades de conservação. No longo prazo, isso teria impacto sobre a variabilidade genética e mesmo a sobrevivência de animais e plantas. “Um animal, se chega no limite da floresta com a estrada, olha para o outro lado mas não atravessa, fica confinado naquele pedaço”, ilustra Miller
Esse tipo de pressão sobre os parques e reservas colocam uma grande sombra sobre o compromisso que os países latino-americanos assumiram na Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica. Os governos se comprometaram até 2010 montar um sistema estruturado de áreas protegidas terrestres que ajudasse a diminuir “significativamente” a perda de biodiversidade. Miller pergunta se isso realmente vai ser possível. Pior é a situação das áreas protegidas marinhas, que deveriam estar bem implementadas até 2012. Entretanto, de todo as águas continentais latino-americanas, apenas 0,5% estão protegidas.
O presidente da Conservação Internacional, Russell Mittermeier, pontuou bem em sua apresentação em Bariloche que a América Latina é “um continente de superlativos”, que apesar de ocupar 15% do planeta, possui 50% de todos anfíbios, 41% de todas as aves, 33% das plantas e assim por diante. A ONG identificou 151 ecossistemas que na região são prioritários para conservar estas espécies únicas. Porém 55% destas áreas não estão protegidas e Mittermeier não vê outra saída senão continuar criando parques e reservas.
O passo principal para que a conservação se torne efetiva continua sendo o mesmo que há dez anos: convencer os governos e os políticos de que criar uma área protegida significa também promover desenvolvimento econômico. Marlon Flores, da TNC, diz que não é preciso inventar novos sistemas para financiar os parques nacionais. O essencial é fazer com que países latino-americanos façam reformas fiscais que reconheçam o real valor dos recursos naturais. “Sem valoração da natureza não vai ser possível”, diz Flores, já rebatendo os defensores de que não se deve ‘monetarizar’ a biodiversidade. A declaração do Congresso de Bariloche colocou entre suas metas “apoiar estudos de evaluação” das riquezas presentes nas áreas protegidas. É dentro dos parques e reservas, afinal, onde estão as melhores fontes de água doce ou os melhores estoques pesqueiros. Que a declaração de Bariloche não seja em vão.
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