Na madrugada de segunda-feira, 29 de outubro, o engenheiro agrônomo Marcos Mariani, presidente da organização não-governamental Preserve Amazônia, pegou um vôo de São Paulo e desembarcou na calorenta Manaus. Ele fora para participar de um debate um tanto inusitado mas que parece estar ganhando corpo: organizações não-governamentais, o governo estadual e cientistas discutiam a possibilidade de se construir uma ferrovia entre a capital amazonense e Porto Velho, em Rondônia.
Mariani lidera, com um fervor notável, um movimento em prol da construção de estradas de ferro no lugar de rodovias na Amazônia. A campanha “Vá de Trem, preserva a Amazônia”, propôs inicialmente trocar o asfalto da BR-163, entre Cuiabá e Santarém, pelos trilhos. Criada em março do ano passado, a ONG já conseguiu sensibilizar políticos em Brasília, além de procuradores da República, e abriu espaço na pauta de uma reunião do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), para discutir o assunto. Agora, a luta de Mariani é impedir o asfaltamento da BR-319, marcado para ser iniciado em 2008, e botar vagões para ligar as capitas amazônicas.
O convite para a viagem a Manaus surgiu depois que o presidente da Preserve Amazônia conheceu o secretário estadual de Meio Ambiente do Amazonas, Virgílio Viana. O secretário está à frente de uma discussão iniciada pelo governador Eduardo Braga, que há cinco meses anunciou a intenção de apresentar ao governo federal uma proposta para a construção da ferrovia.
O debate no auditório do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) era para ser uma reunião fechada, mas a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS) resolveu abrir as portas do encontro, em busca de apoio na comunidade acadêmica para a proposta. O resultado mais concreto do encontro foi um prazo, até dezembro, para que sejam apresentados estudos de viabilidade da estrada de ferro, para serem levados ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que poderia financiar a obra.
O principal argumento em favor da ferrovia é a redução do impacto ambiental. Esta vantagem ambiental foi retratada na comparação entre dois cenários apresentada por Viana durante o debate. Enquanto a rodovia deve incrementar o desmatamento ao longo do trajeto em 34% num prazo de 50 anos, a ferrovia induziria um crescimento moderado, 7%, segundo os cálculos do secretário. Viana vislumbra a idéia de aproveitar créditos de carbono obtidos com a redução do desmatamento para atrair investimentos para a obra.
Exemplo de Carajás
O ecólogo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Philip Fearnside vê a possibilidade da construção da ferrovia com menos entusiasmo. Ele é um crítico da reconstrução da BR-319, mas defende a construção de um novo porto em Manaus. “Não há dúvida de que a ferrovia vai causar menos impactos na floresta do que a rodovia, mas o transporte por navios, com a construção de um novo porto, continua sendo a alternativa mais viável economicamente e para o meio ambiente”, analisa o ecólogo.
De acordo com ele, a pavimentação da BR-319 vai trazer duas conseqüências nefastas, o desmatamento ao longo da estrada e explosão da migração para Manaus, aumentando os problemas sociais existentes na cidade e a pressão sobre o meio ambiente nas áreas próximas a capital amazonense.
Fearnside citou o exemplo da Ferrovia Carajás, da Companhia Vale do Rio Doce, que causou forte migração do Maranhão para o centro do Pará. “Eu tive a oportunidade de sobrevoar durante duas horas a região, e não sobrou quase nada da floresta”. Ele teme que este mesmo processo venha a ocorrer no Amazonas. “O Produto Interno Bruto no Amazonas, graças à capital, é duas vezes maior do que o do Pará, duas vezes o de Rondônia e quase quatro vezes maior do que o do Maranhão, e isto é um fator de atração de migrantes”.
Ele lembra ainda das obras das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau em Rondônia, que devem empregar mais de 20 mil pessoas. “Quando as obras acabarem, eles vão buscar emprego em outro lugar e Manaus pode sofrer com esta migração”, afirma.
As considerações de Fearnside não desanimaram os partidários da ferrovia. “Concordo que é importante ter um modal hidroviário, mas o secretário Virgílio Viana me convenceu da importância estratégica de um modal terrestre”, afirma Mariani. “É um grande risco depender do hidroviário na Amazônia, devido aos períodos de estiagem ou secas”, completa.
Mas o governo do Amazonas e aliados têm pouco tempo para emplacar a proposta. Apesar da falta de licenciamento ambiental em um grande trecho da estrada e a interrupção dos trabalhos por denúncias de irregularidades com uma das construtoras que tocavam a obra, a Gautama, em outra parte da rodovia a recuperação continua. Em Porto Velho, a pavimentação é feita pelo Exército. “Temos até o próximo período de chuvas, antes que as obras comecem no trecho final que está suspenso pela falta de licenciamento”, afirmou o secretário Viana.
Para ele, a maior batalha é política. A pavimentação da 319 foi desenterrada pelo ministro dos Transportes Alfredo Nascimento, e foi uma das bandeiras dele na eleição vitoriosa para o Senado. Existem diversos segmentos favoráveis à obra, que vão de populações do interior a empresários do campo e da cidade. “É preciso despolitizar o debate e envolver o ministro”, defende o secretário de Meio Ambiente.
O primeiro passo é buscar mais argumentos favoráveis à ferrovia. Viana pediu empenho de pesquisadores para que até dezembro sejam apresentados dados para comparar vantagens e desvantagens entre os trilhos e a rodovia. Representantes da organização não-governamental Conservação Estratégica, com sede em Minas Gerais e que tem experiência em estudos de viabilidade de obras de grande impacto, participaram do debate. A ONG realiza um estudo sobre a BR-319 e deve incluir a ferrovia na análise.
Não vai ser um debate simples, a estrada de ferro Manaus-Porto Velho deve custar caro. Com base em um estudo feito para a ferrovia Transnordestina, Mariani diz que o quilômetro de trilhos deve custar cerca de US$ 1,5 milhão. Fazendo as contas para os cerca 858 quilômetros entre as capitais, daria mais de R$ 2 bilhões de reais. É muito dinheiro. Mas, é a mesma quantia que o governo do estado pretende gastar para sediar jogos da Copa de 2014 em Manaus.
*Vandré Fonseca é jornalista em Manaus.
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