Reportagens

Separação de bens

Dona de uma das mais belas vistas do Rio, trilha da Catacumba sofre com a falta de manutenção depois do fim da bem sucedida parceria entre prefeitura e uma universidade.

Felipe Lobo ·
12 de dezembro de 2007 · 17 anos atrás

O cidadão atento que passa um pouco antes da curva do Calombo, na Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro, logo repara em uma grade que separa a rua movimentada de carros e um morro recheado de vegetação. Mas não são muitos os que resolvem entrar portão adentro. Aqueles que optam por conhecer o pedaço de Mata Atlântica localizado na área mais nobre da cidade costumam ter uma grata surpresa: lá funcionam o Parque Carlos Lacerca e a trilha da Catacumba, que leva o visitante até o pico do Sacopã, 134 metros acima do nível do mar. Implantado em 1999 a partir de uma parceria entre a prefeitura do Rio, a Fundação Parques e Jardins e a UniverCidade, o caminho não recebe mais o apoio dos estudantes há dois anos, desde que o município decidiu não renovar o contrato com a instituição de ensino.

A idéia começou no final da década de 90, quando a Secretaria Municipal de Meio Ambiente do Rio de janeiro convidou o núcleo de desenho industrial da UniverCidade, coordenado pelo professor João Lutz, para desenvolver um projeto que serviria de modelo ao manejo das outras trilhas. Pedro da Cunha e Menezes, colunista de O Eco e chefe do Parque Nacional da Tijuca na época, explica os motivos da seleção da picada no Parque Natural da Catacumba (como também é conhecido). “Foi escolhida por ser de difícil manejo, ter grande potencial de visitação e por aliar atrativos turísticos, ambientais e históricos”, diz.

O acordo entre os parceiros era simples: os alunos da disciplina de ecodesign da faculdade carioca, junto com os professores Simone Figueiredo e Lutz, deveriam desenhar e implantar a trilha, desenvolver placas de sinalização em todo o percurso, degraus nos locais com maior potencial de erosão e mirantes seguros para os visitantes. Fizeram mais. Com ajuda da prefeitura tiveram acesso a pesquisas de diferentes autores sobre a história da região, as características de sua fauna e flora e estudaram a capacidade de carga potencialmente suportada pelas subidas e descidas íngremes.

Durante os quase seis anos em que a parceria se manteve ativa, os estudantes se revezavam nos finais de semana e feriados em duas tendas construídas por eles próprios: uma na entrada e outra na saída da trilha. Lá, eles contavam para os visitantes um pouco do trabalho que era ali exercido e pediam atenção redobrada com a natureza. Além disso, o grupo participou de alguns replantios de espécies nativas, como o cedro e o palmiteiro, junto com biólogos e especialistas enviados pela prefeitura, que também doou cerca de 500 mudas para o projeto. Constantemente, dois guardas municipais faziam a vigia de todo o percurso.

“Tínhamos também um trabalho chamado ‘Projeto-Escola’. Íamos aos colégios, os alunos desenvolviam produtos ecológicos, como alguns jogos, e depois fazíamos a trilha juntos. Levamos cerca de dez mil crianças até o fim de 2005”, conta Figueiredo. É justamente por todo esse sucesso que Lutz não entende porque a gestora do parque, Dalva Mendes, não quis renovar a parceria. “Desenvolvemos um projeto pioneiro no Rio de Janeiro”, explica. “Nunca recebemos um comunicado oficial encerrando a parceria. Após muita insistência consegui, por telefone, a informação da senhora Dalva de que ela decidira não mais trabalhar conosco. Além disso, falou que a gerência da trilha, que afirma ser capaz de fazer sozinha, seria tema de sua dissertação”, conclui.

A versão da prefeitura

Não é isso o que informa Dalva Mendes. Segundo ela, a parceria foi encerrada juridicamente em fevereiro de 2006, depois da renovação automática do acordo no ano anterior. Nesta época, afirma, quem assumiu a coordenação do projeto pela UniverCidade foi um ex-aluno. “Ele deixou a desejar por não honrar rigorosamente as planilhas de trabalhos. Com isso, os alunos envolvidos no projeto ficaram desmotivados e a presença deles começou a ficar desordenada”, garante. De acordo com Lutz, a pessoa a quem a gestora se refere é Fernando Mendes, professor e supervisor de todos os laboratórios da faculdade. “E ele apenas ajudava, a coordenação nunca deixou de ser minha”, informa.

Dalva afirma que o trabalho da UniverCidade foi muito bem realizado nos primeiros anos, mas que perdeu a força com o tempo. Segundo ela, agora a prefeitura começa a unir forças com outras instituições para continuar a manutenção da trilha. Um exemplo desses esforços, conta, são o levantamento e a identificação da flora, que estão sendo desenvolvidos em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Jardim Botânico do Rio. Este último, aliás, também auxilia no plantio de espécies nativas ao longo do morro.

Outros projetos já concluídos mereceram destaque pela gestora. Entre eles estão a reintrodução de preguiças, em parceria com a Universidade Estácio de Sá, e a formação de um banco de sementes de capim limão, junto a UFRJ. Mas a sinalização e gestão da trilha, que recebe cerca de 1200 visitantes por mês no período fora das férias escolares, é feita somente pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente desde o fim do convênio com a UniverCidade. Para isso, conta com um investimento anual de 150 mil reais injetados pela prefeitura para a preservação das áreas verdes e de uso público do parque. “São realizadas atividades de limpeza e manutenção dos equipamentos”, afirma Dalva.

A trilha

Para ver a situação de perto, a reportagem de O Eco subiu a trilha da Catacumba no final de novembro. Ao que parece, o investimento da prefeitura está curto para a manutenção do trabalho realizado pela faculdade carioca. As tendas que, durante o convênio, sempre recebiam alunos ou pessoas instruídas para falar sobre o processo de reflorestamento e a importância da preservação do local para a cidade, estavam vazias. Durante a subida, não eram poucos os degraus de plástico (conseguidos com o pai de um dos alunos integrantes do projeto) completamente assoreados, praticamente imperceptíveis debaixo da terra.

As 14 placas bilíngues (em português e inglês), que levam as informações sobre o ecossistema e a história da região coletadas e selecionadas pela UniverCidade para os turistas, não estão em bom estado de conservação. Sujas e mal cuidadas, elas se unem aos quadros de sinalização sobre o estado do solo em alguns trechos do percurso na categoria das áreas que precisam de um cuidado urgente. Além disso, certos pontos de passagem já estão cobertos por folhas que caíram e ainda não foram recolhidas. “Na minha opinião, as placas deveriam ser retiradas porque não estão sendo bem mantidas e o nome da faculdade permanece lá”, diz a professora Simone Figueiredo.

O projeto pareceu ser mesmo sério. A subida, repleta de trechos íngremes, é muito facilitada pelos degraus, que têm ainda a função de indicar o caminho correto para os visitantes. No segundo trecho do caminho há um espaço plano e amplo, chamado de “Praça dos Bambuzais”. Lá, é possível se refrescar à sombra das árvores e sentar para descansar em uma confortável cadeira desenhada e produzida pelos alunos. O problema é que até ela já começa a ganhar contornos de esquecimento.

A história

A história do local é curiosa. Durante muitos anos a encosta foi tomada por trabalhadores, principalmente imigrados do Maranhão no início da década de 40, que lá construíram suas casas. A partir daquele momento, as árvores começaram a ser derrubadas progressivamente e o morro perdeu grande parte de sua cobertura original. Quase trinta anos depois, em 1970, o então governador do estado Carlos Lacerda ordenou que toda a população de cerca de dez mil pessoas fosse removida. De lá, os habitantes foram levados para alguns conjuntos habitacionais, como o da Vila Kennedy, Cidade de Deus e Guaporé-Quitungo.

A intenção de Lacerda era transformar o morro em um parque com esculturas ao ar livre. E conseguiu, já que até hoje ele é reconhecido como o mais importante da cidade nesse quesito. O espaço ganhou status de unidade de conservação em 1979, já no governo de Chagas Freitas, que decidiu homenagear o antecessor conferindo seu nome a mais nova criação. Mas foi apenas em 1988 que começou o processo de reflorestamento da encosta, quando mudas de árvores pioneiras, como o maricá, o cabiá e o mulungu foram inseridas. Elas foram escolhidas porque crescem mais rápido, precisam de menos água e são mais resistentes à radiação solar.

Quando o trabalho de cooperação com a UniverCidade começou, teve início também a segunda fase do plantio. Desta vez, foram introduzidas espécies secundárias, como a paineira e o pau d’alho, no lugar da exótica capim colonião. Foi também nessa época que alunos de biologia e design começaram uma longa pesquisa para fazer o levantamento de fauna e flora da região. As descobertas foram interessantes. Entre os animais, pode-se encontrar hoje pela mata o gambá, morcegos, preá-do-mato, cobra verde e aves como rolinhas, cambaciça, gavião-carijó e canário-sapê. Os tipos de plantas mais observados são o flamboyant, as figueiras e o sombreiro.

O Parque Natural Municipal da Catacumba continua com suas portas abertas para todos os curiosos de terça-feira a domingo, entre as 9hs e 17hs. A entrada é gratuita e, do topo do mirante do Sacopã, é possível admirar uma das vistas mais belas da cidade. Resta saber se o fim dessa bem sucedida e pioneira parceria vai causar prejuízos ainda maiores do que equipamentos de informação mal cuidados ao longo da trilha.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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