Reportagens

Refúgio bagunçado

Um dos melhores locais para observação de aves no País é a Lagoa do Peixe (RS), um parque nacional onde há caça, pesca, ocupações humanas, árvores exóticas e muito lixo.

Aldem Bourscheit ·
9 de janeiro de 2008 · 16 anos atrás

Todos os anos, temperaturas em queda e hábitos reprodutivos empurram milhares de aves em jornadas épicas entre o norte e o sul do Planeta. Um dos heróis da resistência é o maçarico-de-papo-vermelho. Pequenino, voa até 36 mil quilômetros por ano, quase a circunferência da Terra. Chega a permanecer cinco dias no ar, gastando gordura acumulada. Mas ninguém é de ferro. Em suas cruzadas aéreas, tanto aves turbinadas como os maçaricos quanto emplumados de menor autonomia de vôo fazem paradas em locais estratégicos para alimentação, repouso e reprodução.

Uma dessas áreas é o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, no litoral sul gaúcho. Debruçado em uma faixa com mais de cem quilômetros de areia, alagados e matas, entre o Oceano Atlântico e a gigante Laguna dos Patos, a área protegida federal é um dos melhores pontos nacionais para a observação de aves. O rosado flamingo aparece por lá durante quase todo o ano. Além desse migrante do Chile e da Argentina, as águas salobras e cheias de comida atraem dezenas de outras espécies.

Camarões, vermes, caranguejos e peixes povoam a lâmina d´água, que não passa dos 60 centímetros, e servem de banquete a batuíras, maçaricos, trinta-réis, colhereiros, coscorobas, cisnes-do-pescoço-preto, garças-mouras e tantos outros. Lá já foram catalogadas 190 aves diferentes, entre visitantes e residentes. Também há capivaras, lontras, pequenos roedores como o tuco-tuco e jacarés no parque, criado em 1986. Sua riqueza natural é reabastecida por uma “barra”, espécie de cordão umbilical por onde fluem nutrientes do mar às águas do continente.

Turismo, pinus e falta de dinheiro

As belezas da região também atraem milhares de visitantes para um festival de aves migratórias realizado há sete anos. Na temporada de migrações aladas, a região recebe turistas ansiosos para ver de perto as cores da passarada. Aí começam os problemas do parque, que avançam para pesca irregular de camarão-rosa e tainha, caça, drenagens para plantio de arroz, especulação imobiliária, avanço do pinus, tráfego de veículos e acúmulo de lixo.

Os municípios de Mostardas e Tavares dividem os 344 Km2 do parque e abrigam hotéis e pousadas que organizam por conta própria visitas guiadas à unidade de conservação. O Instituto Chico Mendes (ICMBio) não sente nem o cheiro de recompensas pela exploração comercial da área protegida. Além disso, o parque é pouco sinalizado, não tem guaritas ou postos de fiscalização, não está demarcado e ainda não cobra ingressos. É um queijo-suíço, onde pessoas entram e saem quando bem entendem.

Antes povoada por índios Tupi-Guarani, a região foi colonizada por açorianos que apostaram no gado, milho e arroz. Pouco antes da criação da área protegida, chegou o pinus, que se alastra a passos largos e cobre cinco mil hectares – cerca de 15% do parque. A situação é preocupante e o Ministério Público Federal move ação civil contra o governo, pedindo a remoção dos pinheirais. Por enquanto, empresas removem seus cultivos cruzando por dentro do parque e o Ibama/ICMBio retira árvores “no braço”, enquanto não fica pronto um plano de erradicação.

Mas para cumprir a legislação federal e o plano de manejo elaborado em 1999 e aprovado em abril de 2004, o governo também precisa jogar para fora do parque 331 propriedades (70% com até 50 ha) com gado, arroz e agrotóxicos. Entre as centenas de moradores, há 173 pescadores autorizados pela Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca. Os aglomerados humanos estão na barra, no Farol de Mostardas e no Balneário Mostardense. Construções e reformas são proibidas nesses pontos. Por isso, casas apinhadas de gente são comuns no Verão.

“Menos de 10% da área está regularizada em termos fundiários”, diz Agenor Antônio Gedoz, único analista no Ibama local.

Ao menos, parte do problema fundiário começa a ser resolvido com dinheiro de compensação ambiental, a partir do asfaltamento de trechos da RST-101. Os recursos serão usados para levantamento de documentação e medição de propriedades dentro do parque. Em seguida, devem ocorrer desapropriações e demarcação dos 180 quilômetros de perímetro da área protegida. Muitas propriedades não têm qualquer documento.

“Há uma quantidade razoável de recursos para desapropriação, mas a documentação das propriedades precisa estar em dia. Essa é uma questão crucial para o parque”, avisa a chefe da unidade de conservação Maria Teresa Queiroz. O parque também está ameaçado de perder 11 servidores terceirizados, caso não seja renovado o contrato com a ong Pró-Aves. “Essas pessoas são fundamentais para gestão do parque. Refazer o contrato é uma prioridade”, ressalta Teresa.

Para complicar o quadro, apenas R$ 40 mil dos R$ 3,2 milhões que o Ibama/RS recebeu em 2007 chegaram à Lagoa do Peixe, para aluguel de prédio, diárias e compra de materiais de trabalho. Dos R$ 839 mil do Centro de Estudo de Migração de Aves (Cemave/ICMBio), nenhum centavo foi aplicado no parque. Com cortes na CPMF e divisão atabalhoada do Ibama, as perspectivas não são animadoras para 2008.

Pescarias no parque

Além dos pescadores com carteirinha oficial para atuar na área protegida, com linhas e redes fixas, barcos de pesca costumam invadir a região em busca de cardumes. Muitos pesqueiros vêm de Santa Catarina. “Terminaram os peixes lá e agora atacam por aqui”, diz Gedoz, do Ibama. A área protegida avança um quilômetro mar adentro, a partir do farol de Mostardas.

Apesar do pouco controle e deslizes de pescadores tradicionais, alguns atuam fora dos períodos e cotas de pesca definidas pelo Ibama, principalmente na captura do camarão-rosa, um foco maior de problema são embarcações comerciais com redes de arrasto. Muitos barcos escondem nome e registro e seguem cardumes até onde for possível. O Ibama local não tem embarcações, possui três veículos 4×4 em estado regular e há apenas um helicóptero para as regiões Sul e Sudeste. “Barcos são avistados freqüentemente e alguns são autuados”, diz a chefe do parque, Maria Teresa.

Uma esperança para controlar a pesca ilegal é o monitoramento por satélite de pesqueiros com mais de 15 metros de comprimento. O centro de operações do sistema foi inaugurado em novembro passado, na Marinha do Rio de Janeiro. Até agora há 900 barcos rastreados no País, mas faltam cerca de 400 para completar a primeira etapa de implantação. Depois, chegarão a 3 mil embarcações, de vários portes. O rastreamento é semelhante a um GPS, exibindo posição e rota traçada pelas embarcações.

Até o início do programa, apenas barcos estrangeiros arrendados por brasileiros eram rastreadas. O monitoramento por satélite existe há quase uma década em países como Chile, Peru, Argentina e Uruguai. Agora, segundo o governo, embarcações nacionais não conseguirão renovar licenças de pesca, não receberão sinal verde da Marinha para avançarem no mar, além de perderem subsídios ao óleo diesel. A fiscalização e autuações, no entanto, seguirá com o Ibama.

Segundo a Seap, é possível elevar o volume de pesca de peixes como o atum e outras espécies. O órgão federal vem incentivando aumento e renovação da frota pesqueira em toda a costa nacional. Mas segundo ambientalistas, a sobrevivência de outras espécies marinhas pode ser comprometida se os esforços econômicos não forem controlados. De acordo com estimativas da SEAP existem Estimativas da Seap no Rio Grande do Sul 4 mil embarcações artesanais e 200 industriais. Em Santa Catarina são 3,6 mil embarcações artesanais e 900 industriais

Segundo Paulo Henrique Ott, presidente da ong Gemars (Grupo de Estudos de MamÍferos Aquáticos do RS), nos anos 1990 as redes se estendiam por até dois quilômetros, mas hoje os redames alcançam até 10 quilômetros para se pescar a mesma quantidade de peixes. “Os estoques vêm diminuindo. Enquanto isso, o governo estimula aumento e renovação de frotas pesqueiras. Deveria haver mais investimento na piscicultura”, diz o ambientalista.

Bichos ameaçados

No litoral sulista, é comum a captura acidental de lobos-marinhos e toninhas em redes de arrasto e fixas, essas autorizadas pelo ICMBio. Tartarugas sofrem mais com linhas e espinhéis. Pequeno golfinho que só existe no litoral brasileiro, do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul, além de Uruguai e Argentina, a toninha está ameaçada de extinção. Presa em redes, morre afogada.

Em novembro passado, o servidor da Secretaria Estadual da Agricultura Edmilson dos Santos, percorreu 110 quilômetros entre Quintão e a Lagoa do Peixe. No trajeto, contou 59 toninhas, três leões-marinhos, nove tartarugas e dois pingüins mortos.

Com população estimada em 17 mil indivíduos no estado, cerca de mil desses cetáceos perderiam a vida a cada ano, inclusive por causas naturais. Não há informações precisas se a espécie está repondo suas perdas ou se caminha para a extinção.

Entre as soluções testadas pelo planeta para reduzir a mortandade, está a sinalização sonora ou mudança do material das redes, para que sejam detectadas pelo sonar dos cetáceos. Mas as medidas não são 100% eficazes e podem acabar atraindo golfinhos para a morte. “Também se poderiam criar zonas livres de pesca, mas isso depende de boa fiscalização e recursos. Qualquer solução envolverá alterações na pesca”, diz Ott, que também é professor da Universidade Estadual do RS.

Recentemente, o governo lançou programa de estudo e conservação da toninha. Pelo menos R$ 130 mil serão usados em pesquisas sobre população e compra de equipamentos. O dinheiro vem de multas aplicadas em empresas que buscam bancos de petróleo no subsolo marinho.

Lixo para dar e vender

Nos cerca de 50 quilômetros percorridos pela reportagem de O Eco, entre Mostardas e a barra da Lagoa do Peixe, avistamos vários animais mortos ou repousando e lixo, muito lixo. O visual é tão feio quanto a página na Internet do parque nacional.

Além de fazer mal aos olhos, o lixo pode matar aves, tartarugas e mamíferos que passam pela costa e areias em suas viagens migratórias. Quando um bicho come plástico, por exemplo, sente-se permanentemente saciado e não se alimenta. Morre de inanição.

Monitorando mortes de animais desde 1991, em 270 quilômetros entre Torres e a Lagoa do Peixe, o Gemars avisa que as toneladas de resíduos nas areias gaúchas vêm dos municípios vizinhos, das comunidades de pescadores, turistas e de embarcações. Os itens mais encontrados são pontas de cigarro e garrafas PET, mas também há sacos inteiros de lixo.

Segundo o Ibama, há uma “briga” com as prefeituras da região para que recolham os resíduos. Elas alegam não ter recurso para a empreitada. Sem coleta, o vento generoso espalha a falta de educação e cuidado com o meio ambiente por dezenas de quilômetros. “Se há gente morando, é obrigação das prefeituras recolher o lixo. A situação se complica com o verão”, diz Maria Teresa, chefe do parque nacional.

Mesmo reconhecido como posto avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, integrar a Rede Hemisférica de Reservas para Aves Limnícolas e ter carimbo de Sítio Ramsar (área alagada importante para a vida natural), o Parque Nacional da Lagoa do Peixe precisa de muita atenção do governo e da sociedade brasileira para seguir encantando como rota anual de milhares de aves migratórias.

Como chegar à Lagoa do Peixe

A partir de Porto Alegre (RS) segue-se pela RS-040 até o entroncamento de Capivari do Sul, de onde se avança à direita pela completamente esburacada RST-101, chamada em alguns trechos mais ao sul de Estrada do Inferno. Até Mostardas, onde está a sede do parque nacional, são quase 400 quilômetros desde a capital gaúcha. Para alcançar a barra da Lagoa do Peixe, são necessários cerca de 50 quilômetros a partir de Mostardas, sobre as areais do litoral.

Encontrando animais marinhos

No Inverno, o litoral gaúcho é visitado por lobos, pingüins, focas, leões e até elefantes-marinhos, se as correntes geladas das Ilhas Malvinas forem realmente fortes. As espécies mais freqüentes na região são o leão-marinho-do-sul (Otaria flavescens) e o lobo-marinho-do-sul (Arctocephlus australis), mas todos percorrem enormes distâncias até toparem em nossas praias, onde podem estar descansando ou se recuperando de ferimentos e doenças.

Quando encontrar um desses bichos, a dica é manter distância, não oferecer comida e não tentar retirá-lo do local ou jogá-lo de volta no mar. Além de perturbar o bicho, alguns podem transmitir doenças como tuberculose e pneumonia.

Se um animal apresentar ferimentos graves ou inanição e você quiser realmente ajudar, afaste curiosos e chatos de plantão e avise instituições como:

Ceclimar / UFRGS – (51) 3627-1309 / 3627-5384
Ibama / Lagoa do Peixe – (51) 3673-1464
Batalhão Ambiental da Brigada Militar
Osório – (51) 3663-1040
Tramandai – (51) 3661-4620

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista brasilo-luxemburguês cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Sel...

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