Reportagens

Era uma vez a floresta

Assentamento na Amazônia mato-grossense mostra como, sem planejamento e assistência rural, uma propriedade inteiramente coberta por floresta ficou destruída em apenas 10 anos.

Andreia Fanzeres ·
3 de março de 2008 · 17 anos atrás

As galinhas dão os ovos e a proteína de que Ari Picchi e sua esposa Célia precisam. Eles criam também porcos, algumas vacas leiteiras, plantam milho, pupunha, abóbora, mandioca, árvores frutíferas e construíram uma roda d’água que lhes fornece energia suficiente para fazer a televisão funcionar de noite e não ficarem na completa escuridão. Estas são preciosas e recentes conquistas que transformaram o lote em que vivem num sítio aconchegante a 75 quilômetros do núcleo urbano de Juína, no noroeste de Mato Grosso. “Nosso sonho era ter um lugar assim pra viver”, lembra Célia, que até 1996 era lavadeira na cidade e ajudava na renda do marido, que tentou a vida nos garimpos.

Apesar de ainda aguardarem a energia elétrica do Programa Luz Para Todos, de terem passado maus bocados para manter o filho estudando – um dia sim, um dia não – e de sofrerem com o transporte precário até a cidade, que leva no mínimo 4h30, eles não reclamam de quase nada. “Eu só queria ter logo a documentação dessa nossa área, para não depender da burocracia dos outros para conseguir financiamentos”, diz ele. Em tese, o título já tinha que estar na mão, mas não deve sair enquanto todos esses problemas de infra-estrutura existirem. Por enquanto, Ari e Célia vivem em 21 alqueires de terra, ou 50 dos 18 mil hectares de uma fazenda desapropriada pelo Incra e homologada como projeto de assentamento na Amazônia dez anos atrás. Vizinha ao Parque Indígena Aripuanã, hoje a área é conhecida como Gleba Iracema.

Naquela época, já vigorava a medida provisória que estabeleceu os 80% de reserva legal na Amazônia. Mas os assentados disseram que não era esse percentual que deviam manter. “Fomos orientados pelo Incra que tínhamos por obrigação desmatar pelo menos a metade do lote”, lembra Ari, uma das pessoas que abriram as primeiras picadas na mata para demarcação das áreas. Ali ele percebeu que, junto com outras cerca de 345 famílias, tinha sido assentado numa área inteiramente coberta por floresta.

“Logo no início, recebemos um fomento do Incra no valor de 808 reais para fazer a primeira derrubada”, recorda-se. Ele e Célia, sozinhos, puseram dois alqueires no chão. “Quem demorou para derrubar foi chamado a atenção”, diz a esposa. O casal foi exceção. “Teve gente que conseguiu limpar tudo naquele primeiro ano. E hoje são essas pessoas que estão melhor de vida”, reflete Ari.

Sedução bovina

Ari e Célia dizem que até hoje só derrubaram 30% de sua área para os plantios de subsistência, e a pequena produção de sementes de pupunha e legumes, vendidos a um programa de complementação de merenda escolar. “Nós gostamos da mata, queremos manter”, convencem-se. Eles são uma das 45 famílias do assentamento que começaram a receber suporte técnico do Programa Proambiente, do governo federal, tocado localmente pela Associação Juinense Organizada para Ajuda Mútua (Ajopam). Aprenderam conceitos de agroecologia, técnicas para realizarem plantios consorciados e práticas ambientalmente mais saudáveis de uso da terra. “Mas ainda não temos condição de eliminar o fogo por causa da pecuária. Uma hora de trator é muito caro. Então procuramos atear depois da primeira chuva”, diz Ari. Sua criação, garante, só serve à retirada de leite para subsistência. Mas, calcula, pelo menos 80% do assentamento tem gado de corte. Em alguns deles, só vivem bois.

“Às vezes ficamos balançados. Eu já podia ter colocado gado. Conseguiria cinco mil reais em um ano, daria para viver bem”, avalia Ari. Célia lembra que eles só não cedem à sedução do boi porque lembram do sonhado sítio, que escolheram pra viver. “Aqueles que chegaram e desmataram tudo hoje têm carro, passam por nós e nos jogam lama. Hoje somos vistos como preguiçosos”. Apesar da venda da pequena produção de café, pupunha e argila medicinal para a Pastoral, Ari e Célia sabem que, além da perseverança, podem contar com a renda do aluguel de sua antiga casa em Juína, que se tornou a base do orçamento familiar.

Mas quem não tem outra fonte de renda não pestanejou em reconhecer no rebanho bovino a alternativa mais rápida e barata de se sustentar no assentamento. A opção majoritária pelo gado, em vez de plantios diversificados e potencialmente menos impactantes à natureza se justifica, ainda, na dificuldade de escoamento da produção. Alguns lotes do assentamento ficam a quase 100 quilômetros de Juína. “Não compensa levar nada para lá. O frete é muito caro, nunca menos de 300 reais”, conta Ari. “No início, uns técnicos da Empaer (Empresa de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural) falavam de pupunha, café… Obrigaram a gente a comprar gado leiteiro, mas não tinha pra quem vender, nem energia elétrica para o refrigerador”, explica José Carlos Durini, produtor que acredita piamente em sua opção pelo gado. “A nossa região só é boa para pasto. O gado se cria sozinho, é bom demais”, comemora.

Trinta e cinco quilômetros adiante do lote de Ari e Célia, numa área caracterizada por muitos morros e pedregulhos que restringem as áreas de plantio, Astrogildo Machado Araújo garante que abandonou o fogo. E embora diga ser mais consciente em relação à importância do meio ambiente, admite que seu lote hoje tem um alqueire destinado à produção de subsistência e onze convertidos em pasto para o gado. “O resto é mata”, ele afirma, orgulhando-se de não ter destruído tudo. “Há um vizinho por aqui que tem olho grande, pensa igual a fazendeiro”, ele cita. “Eu acho que quem não consegue deixar metade do terreno com mata e usar só a outra metade, não sabe trabalhar”.

Para Astrogildo, quem pensa como ele é raridade. “Os que deixaram alguma coisa, têm quatro alqueires de mata no máximo”, especula. Essa é mais ou menos a situação da família Durini, que vive próxima dali. José Carlos, a esposa Cleide e seus quatro filhos plantam café em dois alqueires, dos 21 que possuem. Têm 50 cabeças de gado em outros 15 alqueires convertidos em pasto e deixaram apenas três com vegetação nativa. O chefe da família justifica. “De floresta ninguém vive. Ela só serve para segurar a água mesmo, mas não dá para tirar proveito nenhum”, crê José Carlos.

Mas se para algumas culturas falta mercado consumidor, sobra para quem cria bois no assentamento Iracema. Para isso, existem os “picaretas”. Este é o nome como os atravessadores de gado são conhecidos na região. “Eles vêm aqui, compram um pouco de gado de cada assentado e levam para o frigorífico”, descreve José Carlos. “Mas não dão nota fiscal”, lembra. Até hoje nem o Incra ou qualquer outro órgão público se interessou em analisar as conseqüências do desleixo, especialmente para a conservação, nas falhas ao assistir essas famílias.

Assistência e muito mais

“Se no início do projeto de assentamento houvesse a idéia de produzirmos leite, doces ou outras coisas, talvez a situação fosse diferente. Mas hoje todo mundo tem gado e ninguém vai trocar isso por outra coisa”, diz Astrogildo. Sua percepção é lamentavelmente tudo que Eder Luis Weber não gostaria de constatar. Ele é um dos técnicos da Ajopam contratados pelo programa ATES (Assessoria Técnica Social e Ambiental), do Incra, para não só prestar assistência rural, mas também ajudar na melhoria de condições de acesso, escolaridade, produção, elaboração de propostas para obtenção de financiamentos e estímulos a práticas ambientais sustentáveis. Conhece a gleba com a palma da mão e se entristece quando vê desistências. “Há pouco tempo o dono de um lote que começou a adotar práticas mais sustentáveis resolveu ‘vender’ sua área para outro que só pensa em pecuária. Em troca levou um carro usado, uma casa de quatro mil reais e uma caminhonete velha. Está mendigando em Juína”, conta.

Outros casos de ‘venda’ de lotes para fazendeiros e terceiros, ainda que nenhum assentado tenha o título de sua área, acontecem aos montes. “Tem gente que nem mora mais aqui, só vem de vez em quando ver como os bois estão”, conta Ari. Por essas e outras, Eder crê que a situação ambiental do assentamento hoje seja muito séria. “É difícil pensar em manutenção de reserva legal desse jeito. Não se sabe, por exemplo, se mesmo sem título ela deveria ser averbada em cada um dos lotes, ou seria escolhida uma outra área, ainda não desmatada, retirando eventualmente do dono seu ‘direito’ de derrubar um percentual”.

Muitas dessas brechas para que o desmatamento continue de vento em popa tem, para Eder, raiz em problemas de planejamento na época da implantação. “É difícil fazer um bom trabalho agora que está tudo desmatado. O projeto de assistência técnica veio só há três anos”, revela. E tem data para acabar: agora em março. “Tivemos dificuldades, o recurso ficou suspenso por um tempo e aí não conseguimos trabalhar direito”, conta. Como são conhecidos na região pelo trabalho de assistência prestado pela Ajopam, Eder e colegas não pretendem abandonar os assentados, mas ainda não sabem como será seu futuro ali. Segundo a assessoria de imprensa do Incra em Cuiabá, entre 2004 e 2007 foram atendidas cerca de 23 mil famílias nesse programa em Mato Grosso. A perspectiva é que continue apoiando essas mesmas famílias e seja ampliada em mais duas mil.

A questão é saber de que maneira essa assistência vai continuar sendo prestada. Se com poucos recursos e atenção ou com a solução de problemas sócio-econômicos básicos, sem os quais os assentados não conseguem pensar em conservar qualquer coisa. Até aqui, dez anos foi tempo suficiente para mostrar que linha do desleixo é a que país tem seguido.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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