Nova Zelândia, África do Sul ou Peru? Quem planeja fazer uma trilha de longa distância – aquelas em que você passa dias caminhando pela mata - logo pensa em visitar parques nacionais nestes países. Mas há uma outra opção que pode parecer surpreendente aos aventureiros mais experimentados: a Grã-Bretanha. É verdade. A pequena ilha européia, lembrada mais pelos agitos de Londres ou pelo uísque escocês, guarda uma imensidão de belas paisagens. Com milhares de quilômetros de trilhas públicas, é possível conhecer a pé as regiões montanhosas do norte ou os pitorescos penhascos da costa do Atlântico, entre outras paragens.
A Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e País de Gales), como nenhuma outra região no mundo, consolidou ao longo do século 20 uma rede de trilhas públicas que não estão confinadas a áreas protegidas, como parques nacionais e outras reservas ecológicas. Os caminhos passam por dentro de fazendas, ranchos, casas de veraneio e quaisquer outros tipos de propriedades privadas. Isso permitiu, por exemplo, que o governo britânico criasse, desde 1965, quinze trilhas oficiais que, juntas, somam quatro mil quilômetros. Isso sem contar as muitas outras, administradas por governos regionais e locais.
Juntos, os três países têm 230 mil quilômetros quadrados, tamanho semelhante ao do estado de Rondônia.
“O que torna o lugar diferente para se caminhar é que aqui as trilhas passam por terras privadas, enquanto em outros países da Europa ou nos Estados Unidos, você só pode caminhar se estiver dentro de um parque nacional”, ressalta David Else, inglês autor de guias de viagens, como o Lonely Planet Walking in Britain.
Tão interessante quanto caminhar pelo interior britânico, lembra Else, é saber a história que existe por trás desse emaranhado de trilhas. A maioria delas percorre antigas rotas usadas pelos habitantes da ilha desde tempos imemoriais. Mas a partir do século 19, a Revolução Industrial alterou completamente a estrutura fundiária do país. A migração da população rural para grandes cidades como Londres e Manchester abriu espaço para a formação de novas e gigantescas propriedades dos endinheirados da indústria e, com isso, muitas das trilhas antigas foram fechadas.
Foi a mesma Revolução Industrial, no entanto, que deu origem à nostalgia da natureza. O inchaço das cidades fez com que surgissem grupos que apreciavam dias de folga no campo. Em seus momentos de lazer, recorriam exatamente aos antigos caminhos, próximos a bosques e lagos. “Isso não agradava à aristocracia, que usava estes mesmos lugares para caçar ”, conta Else.
A disputa se tornou séria na década de 1930, quando ocorreram confrontos físicos. A partir daquele momento, andarilhos lançaram um movimento para que o Parlamento britânico reconhecesse seu direito de caminhar livremente pela natureza. E a empreitada deu certo.
Pelo direito de caminhar
Vídeo (em inglês) conta um pouco da história do Ramblers e revela o gosto britânico pelas caminhadas. |
Em 1935, o movimento pelo acesso às trilhas públicas deu origem aos Ramblers (caminhantes, em tradução livre). A agremiação se tornou a mais forte na defesa dos direitos e hoje existe em todo país, dividida em pequenas seções que organizam caminhadas todos os fins de semana e feriados. São 135 mil associados.
Quase setenta anos de campanha garantiram o estabelecimento do “direito de passagem”, uma lei aprovada em 2000, que permite que os andarilhos cruzem por dentro de propriedades privadas que possuam trechos de antigas trilhas. Ao longo dos anos, a associação conseguiu ampliar o leque de direitos, para que os caminhantes pudessem perambular por montanhas e campinas de altitude.
Já em 2004, foi aprovado um adicional que dá o “direito de vagar”. “Isso quer dizer que, se você estiver em uma trilha e ver algum pássaro ou uma árvore ou qualquer coisa que lhe chame atenção, você poderá sair da trilha e andar até lá. Você tem o direito de explorar”, explica o diretor de Campanhas do Ramblers, David Murray.
A mais nova mobilização do Ramblers é para melhorar o acesso à costa. Na verdade, é uma campanha que está na vanguarda dos problemas ambientais que afetam a Grã-Bretanha. Como há erosão dos penhascos pelo mar, algumas trilhas estão sendo perdidas. Os andarilhos querem a garantia legal que quando cada vez que um caminho desapareça, eles possam automaticamente mudar as passagens para propriedades rurais mais próximas.
Segundo Murray, há um forte lobby de fazendeiros e aristocratas rurais para barrar a nova proposição. “Estamos confiantes que esta lei será aprovada em breve no Parlamento, o que aumentará em muito os nossos direitos de caminhar pela costa”, explica
Um resumo de todas as conquistas para o acesso à natureza pode ser encontrada no site Countryside Access.
Carinho pelas trilhas
Apesar da briga do Ramblers por uma lei ter durado quase 70 anos, o próprio governo britânico parece ter percebido que melhorar ao acesso às trilhas era um bom negócio. Desde 1965, quando a primeiro caminho de longa distância foi aberto, o Peninne Bridleway, com 209 quilômetros, cruzando áreas do Parque Nacional de Lake District, no norte da Inglaterra, outros quatorze roteiros foram criados. O órgão governamental que gerencia as trilhas, o National Trail, trabalha em parceria com ONGs locais e todos os caminhos e passagens são impecáveis.
Todo o trajeto é sinalizado, há sempre pontes para atravessar rios ou passagens por cima de lamaçais. Nos trechos mais íngremes, há sempre um corrimão. Na verdade, basta acessar o site do National Trail para comprovar que existe cuidado e organização na rede de trilhas públicas. Ali, você vai encontrar a história e as principais atrações de cada trilha, um mapa interativo mostra todas as acomodações e restaurantes ao longo da trilha. Além disso, é possível utilizar um planejador para saber como chegar (com transporte público, é claro) em pontos distintos da caminhada.
A trilha mais famosa da ilha é o Caminho da Costa Sudoeste, que possui, nada mais, nada menos, que mil quilômetros! Você pode fazê-la de um fôlego só, mas o que a grande maioria dos britânicos faz é visitar diversas seções, pois ali estão as praias mais famosas e também o clima mais ameno da ilha. Cerca de um milhão de pessoas percorrem todos os anos este caminho, e a receita anual gerada por eles é estimada em 300 milhões de libras esterlinas, ou aproximadamente um bilhão de reais.
“Buscamos sempre dividir as trilhas em trechos menores para fazê-las acessíveis a todos”, explica Sheila Talbott, da ONG Natural England, uma das pioneiras em parcerias com o governo na manutenção das trilhas. Sheila explica que a ONG paga 100% do custo do planejamento de novas trilhas e depois faz doações para a manutenção das mesmas.
Anualmente, a Natural England gasta 3,5 milhões de libras (cerca de 10 milhões de reais) no manejo das trilhas. Um valor bem gasto na opinião da ambientalista. “Nós acreditamos que, quando as pessoas passam tempo no campo, elas também aprendem a apreciar a natureza”, disse.
Atalhos:
Ramblers
National Trail
Saiba mais:
Arrume as malas, vá para a mata
Percorrendo trilhas com cuidado
Montanhistas comemoram
Aventureiro caça novos contornos do Brasil
O abc do desenvolvimento sustentável
Leia também
As COPs sob o jugo do petróleo
Estamos revivendo nas COPs a velha fábula da raposa no galinheiro, onde os países mais envolvidos com a produção de petróleo sediam conferências climáticas em que um dos grandes objetivos é justamente eliminar os combustíveis fósseis →
Sentados sobre petróleo, países se reúnem no Azerbaijão para discutir crise climática
“Nós devemos investir hoje para salvar o amanhã”, diz presidente da COP29, Mukhtar Babayev, que já foi vice-presidente de petrolífera estatal no país →
A ciência precisa estar conectada com a cultura
Se influencers e criadores de conteúdo convertem milhares de reais em compras, será que eles não engajam pessoas na pauta climática? →