Reportagens

Natureza na cabeça

Considerado um dos maiores naturalistas vivos do mundo, o biólogo alemão radicado no Brasil Rolf Grantsau é do tipo que larga tudo para ver um beija-flor raro na Caatinga.

Bernardo Camara ·
22 de abril de 2008 · 17 anos atrás

Foram 15 dias de andanças pelas matas de Mato Grosso, atrás do raro Phaethonis nattereri. Rolf Grantsau já arrumava as malas sem esperanças, quando o motivo da viagem deu com o bico no vidro do hotel. “O beija-flor se suicidou na frente dele”, recorda, rindo, o fotógrafo Haroldo Palo Júnior, um dos grandes amigos do octagenário biólogo alemão que escolheu o Brasil como lar, há 45 anos. Louco por beija-flores e tudo mais que tem asas, penas, pêlos ou raízes, Grantsau chega à oitava década de vida sem pendurar as botas que calça para ir a campo.

É verdade que ultimamente o naturalista tem ficado mais sossegado em sua residência, no interior de São Paulo. Mas a temporada caseira está longe de ser ociosa. Das 24 horas do dia, metade ele passa debruçado sobre seu “Guia Completo das Aves do Brasil”, um livro de 600 páginas prestes a ser parido, e que não deixa de fora uma unha das espécies que sobrevoam os céus brasileiros. Literalmente. “Esse trabalho é uma resenha dos 45 anos de pesquisa intensa que ele fez por aqui, suas técnicas em aquarela, ilustração de pena”, conta Palo Júnior, que está editando o material. “Terá ave por ave destrinchada, recheado de detalhes do pé, do dedo, da unha de cada bicho”.

À primeira vista pode parecer exagero. Mas quem conhece o ornitólogo alemão está acostumado com sua cabeça a mil por hora. E apesar da paixão antiga pelos beija-flores, as aves bicudas não conseguiram exclusividade nos pensamentos que permeiam seus cabelos brancos. “A mente dele é uma esponja. Ele começa a falar de crustáceos da Antártica com a mesma desenvolvutra que comenta sobre passarinhos”, diz Luís Fábio Silveira, curador de aves do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP).

Um apaixonado

Grantsau é considerado hoje um dos maiores naturalistas vivos do mundo, apesar de sua formação não oferecer deslumbre: apenas jogou para o alto o chapéu de formatura da faculdade de Biologia, cursada no país de origem. A bagagem que carrega é fruto dos livros que devorou durante os anos e dos rodeios que fez por aí. Veio para cá com a cara e a coragem, trazendo esposa, filhos pequenos e pouco dinheiro no bolso. Só tinha olhos para a generosa oferta de beija-flores que o país guardava. Ajeitou-se num fundo de quintal em São Bernardo do Campo e foi atrás de seu objeto de estudo.

O trunfo do biólogo era um portfólio recheado de desenhos impecáveis. Após algumas circuladas pela terra da garoa, conheceu a turma do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo e os pesquisadores logo notaram que aquele rapaz de fala enrolada entendia do riscado. “Rolf veio em busca de parcerias, desenvolver projetos. Teve contato com grandes ornitólogos daqui e nunca parou. Os demais curadores morreram e ele continua aí, colaborando com a coleção até hoje”, diz Silveira.

O museu seguiu sendo a segunda casa do alemão, até arranjar emprego numa fábrica de automóveis, onde precisavam de desenhistas para botar no papel as peças em três dimensões. Com o dinheiro que descolou no trabalho, botava o leite das crianças na mesa e partia para os fundos do Brasil, atrás de tudo o que tinha vida. “Ele tem interesse em qualquer coisa. Estudar plantas, insetos, pássaros, répteis, aves oceânicas”, lista o ornitólogo baiano Pedro Cerqueira Lima, que até hoje se embrenha nas matas com o amigo.

Causos

Uma prova do vasto repertório de interesses de Grantsau está nas homenagens rendidas a ele com a descrição de três espécies distantes entre si: o besouro Gnomidolon grantsaui, a planta carnívora Drosera grantsaui e o pássaro Formicivora grantsaui. Por tabela, as cobras brasileiras também têm um saldo de gratidão com o naturalista. Na década de 90, durante meses, ele aparecia quase que diariamente no Instituto Butantan, com o projeto de registrar as serpentes em desenhos. O órgão aprovou a idéia e abriu as portas do cativeiro. De lá, o biólogo seguia para casa, com as venenosas – vivas – a tira colo.

O trabalho resultou no livro “As Cobras Venenosas do Brasil”. Se não foi lançado, por ocasião da morte do então chefe do instituto, o material rendeu boas memórias. As idas e vindas com a “carga viva” não puderam passar despercebidas pelos demais passageiros do ônibus que o biólogo apanhava para chegar em São Bernardo do Campo. “Um dia, as pessoas começaram a pular e a descer do ônibus. Então Rolf percebeu que as cobras tinham escapado”, relembra Palo Júnior.

Foi o fotógrafo que carregou Rolf Grantsau para a primeira viagem que fez à Antártica, numa expedição à base brasileira de pesquisa. O biólogo partiu quietinho, como convidado. Agradou tanto que o governo resolveu enviá-lo por mais seis meses. Num total de um ano, botou a região gelada de cabeça para baixo e voltou com material suficiente para produzir um guia da fauna local, tomado de ilustrações e informações detalhadas sobre os distantes animais. “A rapidez com que ele compila os dados é impressionante. Ele foi sem a menor pretensão, apenas para ampliar os conhecimentos, e volta com o guia da fauna. Posso ir 30 vezes lá que não vou conseguir isso”, brinca Palo Júnior.

As histórias de Rolf com a natureza não acabam. Ele é do tipo que não agüenta passar por um jardim sem olhar as formas de vida mais de perto. Se esbarra com uma lagarta, já quer tirar foto – com máquina digital, diga-se – jogar no computador e acompanhar sua transformação em borboleta. Foi num desses impulsos que acolheu do aviador aposentado e amigo, Alcides Vertematti, uma fêmea de mutum, ainda na década de 60. O Notocrax urumutum era uma espécie raríssima e de hábitos bastante desconhecidos. A ave avermelhada, que já não se via por estas terras, foi parar na sala de sua casa e resolveu prestigiá-lo com um ovo.

Desde o momento em que o filhote veio ao mundo, a chiadeira não parava e a dupla fez o que pôde para entender os lamentos. “Rolf pegou um gavião grande e colorido que tinha na coleção, abriu a asa dele e envolveu o filhote. Não adiantou.Achamos que talvez faltasse algum sinal de vida e botamos um despertador ao lado do viveiro, para simular as batidas do coração. Também não resolveu, então tentamos uma lâmpada para esquentar o ambiente”, diverte-se Vertematti, também amante das aves. “Enfim, acabamos descobrindo que aquela espécie, ao contrário dos outros mutuns, não comia sozinha nos primeiros dias de vida”.

“É impossével conversar com Rolf sem cair para os bichos. É o grande prazer dele”, avisa o professor da USP. O alemão, porém, nem precisa abrir a boca para denunciar seu gosto pela fauna. Sob o teto que dorme, incontáveis recortes da natureza dividem espaço com o computador. “A casa dele é um museu. Tem coleções que nunca vi em lugar algum. São conchas, micro-conchas do oceano pacífico, aves, morcegos, cobras”, enumera Palo Júnior. “Ele trabalha com tudo ao mesmo tempo. Não é como hoje, que todo mundo é especializado, tem doutorado em determinada espécie”, faz coro Pedro Lima.

Recato

Poucas coisas têm feito Grantsau desviar os olhos de seu “Guia Completo das Aves do Brasil”. O motivo, porém, não precisa ser grande. O tamanho de um Phaethornis gounellei, espécie rara de beija-flor endêmico da Caatinga, já é suficiente. Dez anos após revirar o bioma atrás do ninho do animal, o ornitólogo recebeu a notícia de que ele fora encontrado, há pouco mais de um mês. Largou tudo, calçou as botas e foi se enfiar nas matas de Jeremoabo, na Bahia. Após fotografar o reduto do besourinho-de-cauda-larga, o alemão se deu por satisfeito com o presente dado pela natureza, já que estava a 15 dias de completar 80 anos. Seguiu para uma homenagem que recebera no mesmo estado, pelo aniversário, e logo retornou para casa, em São Paulo.

A data comemorativa lhe rendeu assédios de gente que queria espalhar aos quatro ventos as façanhas do “maior naturalista vivo do mundo”. Recebeu proposta para filmar um documentário sobre sua vida, mas nem a promessa de cachê o fez trocar a prancheta de desenhos pelas câmeras. Entrevista também não é com ele. Procurado pelo Eco, delicadamente pediu desculpas e avisou que estava “muito ocupado com os trabalhos” para falar sobre si próprio. Tudo bem, não faltou quem quisesse falar dele.

“É sempre um prazer falar do Rolf, que é extremamente inteligente e perspicaz. Não conheço ninguém que trabalhe com a visão fora do normal que ele tem para a ornitologia. E sua generosidade tem que ser ressaltada, pois sempre trouxe material científico, alguns raros, e nunca pediu nada em troca. Está sempre ajudando”, elogia o curador de aves do museu de Zoologia da USP. “Qualquer coisa que você fala com ele, ele sabe. É uma pessoa muito acessível, não tem essa história de que só troca idéias com comunidade científica. O que ele sabe, espalha. E geralmente ele sabe”, completa Paulo Flecha, da Sociedade Ornitológica Bandeirante.

Síntese

A paixão de Rolf Grantsau pela natureza não veio com a maturidade. Já na adolescência carimbou o nome de Beija-Flor num barco que possuía. Ao longo das décadas, perambulou por incontáveis regiões não só do Brasil. Agora, apesar de não negar uma ida a campo, sua prioridade é transformar em livros o farto material que colheu pelo mundo. São pelo menos 17 temas que vão para o papel, entre morcegos, tucanos, sapos venenosos da Amazônia, conchas do Brasil etc.

“Já vivi minha vida”, diz ele, numa pausa de dois minutos para atender ao telefone. Coisa chata essa de atender à imprensa para falar da carreira. Um exagero lhe colocar no pedestal. “Não me considero um dos melhores naturalistas, como falam. Apenas fiz meu trabalho”, conclui, pedindo desculpas por ter de voltar à labuta.

  • Bernardo Camara

    Bernardo Camara é jornalista formado pela PUC-Rio. Desde 2007 dedica-se a temas ambientais e de direitos humanos. Viveu por 4...

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