De corpo esguio e plumagem cinzenta, o pato-mergulhão (Mergus octosetaceus) habita águas puras e cristalinas em pontos isolados do Cerrado e é uma das aves mais ameaçadas do planeta. Em outros países, sua imagem já estaria estampada em camisetas, bonés e cartazes, em plena campanha por sua sobrevivência. Mas no Brasil é diferente. Por aqui temos espécies para dar, vender e ameaçar de extermínio, seja com desmatamento ou geração de “energia limpa”.
A história se repete em rios preservados na região da Chapada dos Veadeiros, onde há planos para pelo menos 18 pequenas geradoras de energia, além da Usina de Mirador e para uma siderúrgica. Estudos de campo registraram em locais isolados o pato-mergulhão, inclusive no local programado para uma barragem (foto abaixo). Ele foi localizado nos rios São Miguel, afluente do rio Tocantinzinho, dos Couros e Preto, em algumas áreas hoje fora do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Antigamente, a unidade de conservação tinha dez vezes seu tamanho atual.
Conforme ambientalistas, as barragens irão prejudicar quem atua ou pensa em trabalhar com turismo, afetar reservas particulares e alterar as características naturais dos rios, essenciais para a sobrevivência do pato e até deixar debaixo d´água locais que ele usa para reprodução (veja foto abaixo). A espécie aproveita buracos em pedras, terra e árvores para construir ninhos com as penas do próprio peito.
No rastro do emplumado
Pesquisador talhado na exploração do Cerrado, Paulo Zuquim Antas alerta que os barramentos projetados para o Rio Tocantinzinho e afluentes são pura dor de cabeça para quem se preocupa com a manutenção da espécie e da própria Chapada dos Veadeiros. A Usina de Mirador é outra pedra no sapato, pois pode afetar também os rios dos Couros, Cachoeirinha e parcela importante da reserva particular Campo Alegre. Lá estão dois dos quatro ninhos conhecidos do pato na região. A usina teve projeto remodelado e não deve ser leiloada para 2010. Mas o plano para sua construção segue vivo.
Entre 2007 e este ano, o ornitólogo e outros especialistas percorreram 176 quilômetros de rios e afluentes. Comprovaram que nas bacias dos rios Tocantinzinho, Preto e das Pedras estão as maiores quantidades da rara espécie. “Mas em cada rio, os grupos mal somaram uma dezena de indivíduos”, ressaltou.
O Rio Tocantinzinho já fornece água para a usina de Serra da Mesa, mas tem outras 16 pequenas usinas previstas para seu leito principal e afluentes. Uma delas pode afogar a cachoeira Bonita, dentro de uma reserva particular de mesmo nome, em Colinas do Sul . “Fica difícil avaliar ‘medida mitigatórias’ nesse caso, pela profunda alteração da ecologia dos rios pelos barramentos”, disse Zuquim Antas.
Existência restrita
Confira áreas propícias ao pato-mergulhão na América do Sul
Extremamente criterioso com a qualidade da água onde vive, o pato-mergulhão é um indicador de boa saúde dos rios e córregos e uma bandeira pela preservação do Cerrado e de inúmeras espécies que dele dependem.
A ornitóloga Ivana Lamas comentou a O Eco que a espécie sempre foi rara no Brasil e porções da Argentina e Paraguai, países onde hoje não é mais encontrada. Na província Argentina de Misiones, foi vista pela última vez no arroio Uruzú, em 2002. O último registro no Paraguai aconteceu em 1984. “Desenvolvimento baseado em agropecuária e desmatamento afetam rios e suas margens, reduzindo as possibilidades de sobrevivência da espécie”, ressaltou a especialista da ong Conservação Internacional.
“As barragens são um problema, associado ao desrespeito à legislação que mantêm vegetação em margens de rios e ao modelo agrícola e de ocupação do solo que provoca erosões, assoreamentos e contaminação dos mananciais”, completou Zuquim Antas.
No Brasil, o simpático emplumado só vive no Cerrado, bioma que perdeu metade do verde que exibia em tempos mais vigorosos e é o alvo preferido do governo para projetos desenvolvimentistas sem tempero ambiental fora da Amazônia. O pato ainda pode ser visto no Jalapão, Chapada dos Veadeiros, Serra da Canastra, região de Patrocínio (MG). Pesquisadores vasculham áreas no Paraná e sul da Bahia, onde o pato ocorria, mas sem sucesso. Também há registros antigos no Parque Nacional das Emas.
Com a extinção do Mergus australis na Nova Zelândia, após a colonização inglesa, o pato-mergulhão tornou-se o único representante desse grupo de patos no Hemisfério Sul. Devem existir pouco mais de 250 exemplares da espécie no mundo, todos no Brasil. “Somos (Brasil) hoje os maiores responsáveis pela preservação da espécie no mundo. Ela é também uma bandeira para se garantir boa qualidade de recursos hídricos, inclusive para uso humano”, ressaltou Lamas.
Pequenas no nome
Por isso o temor com as propostas para barramentos na Chapada dos Veadeiros. “Mudar o regime de águas dos rios é um dos maiores detonadores do habitat dos patos. Eles precisam de água corrente e muito limpa, enquanto qualquer represa transforma trechos de rios em lagos, áreas perdidas para ele, como ocorreu na região da Canastra com a hidrelétrica de Mascarenhas. Outros problemas de difícil solução são manter uma vazão adequada para manutenção da espécie, impactos em sua alimentação, baseada em pequenos peixes”, ressaltou Lamas, da Conservação Internacional.
Frente ao conjunto de ameaças ao pato-mergulhão, Zuquim Antas avalia que “pequena central hidrelétrica” é apenas um nome politicamente correto para obras que podem ter grandes impactos ambientais. Também comenta que a região alvo dos barramentos tem belezas de tirar o fôlego que serão bem melhor preservadas e aproveitadas se ficarem livres da geração de energia.
“O Tocantinzinho é um rio excepcional para turismo, tem paisagens maravilhosas. As barragens inundarão muito disso pelo baixo desnível regional, formando grandes lagos. Essas usinas podem ser pequenas na geração de energia, mas seus impactos são grandes. O Brasil tem uma matriz energética diferente da de outros países, mas é uma bobagem afirmar que nossa geração é limpa frente aos impactos na biodiversidade”, completou.
Devoradores de energia
Nos oito municípios da região da Chapada dos Veadeiros vivem pouco mais de 60 mil habitantes, conforme o IBGE, e não há um conjunto de grandes indústrias para absorver a energia produzida em quase duas dezenas de barragens. Por enquanto.
Empolgados parlamentares e empresários já projetam a instalação de uma mina e siderúrgica de ferro em Cavalcante, em parceria com a China. As exportações goianas para aquele país cresceram 280% nos últimos três anos, principalmente de soja, couros e da liga ferronióbio, e as possibilidades de negócios se ampliaram desde que Lula e o governador Alcides Rodrigues visitaram o país asiático, que devora metade do ferro produzido no mundo.
Conforme os projetos, 1,5 bilhão de toneladas poderão ser extraídas de jazidas apenas em Colinas (TO), rendendo cerca de R$ 180 bilhões. Na pacata Cavalcante, as projeções são ainda maioresj á que o ferro dali tem melhor qualidade, o que reduz custos de produção. O município goiano com forte apelo turístico movimenta hoje cerca 50 carretas por dia com manganês, até Ilhéus (BA). Já a logística para o ferro se completa com a construção de hidrelétricas e da ferrovia Norte-Sul. Assim, as exportações de matérias-primas básicas para alimentar o desenvolvimento chinês escoarão pelo porto de Itaqui, no Maranhão.
Presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa de Goiás, a deputada Vanusa Valadares (PSC) acredita em uma saída equilibrada para os projetos energéticos e de mineração para a Chapada dos Veadeiros. Segundo ela, o desenvolvimento não pode ser parado por questões ambientais, mas estudos sobre a oportunidades econômicas de cada municipio permitirão encontrar soluções viáveis de desenvolvimento, com proteção ao meio ambiente.
“O que não se pode permitir é que em nome do desenvolvimento econômico, toda uma cultura corra o risco de ser dizimada ou prejudicada, e que ainda uma região onde há um grande número de espécies de fauna e flora, e um importante manancial de água, seja entremeada por hidrelétricas. Energia elétrica é essencial, mas é preciso cuidado e não verificar apenas seus benefícios. É preciso avaliar a socialização dos prejuízos”, ressaltou.
Audiência pública
Conforme o promotor estadual de justiça José Ricardo Teixeira Alves, em Alto Paraíso, fim de outubro deve acontecer uma audiência pública naquele município goiano para se discutir o conjunto projetado de barragens para a Chapada dos Veadeiros. Antes disso, diz, nenhuma licença poderá ser concedida para as obras.
“A audiência acontecerá justamente para que todos conheçam os impactos desses projetos. A fase atual é de estudos e análises sobre os possíveis danos à região. Dependendo dos pareceres, poderemos ser contrários às barragens”, disse.
Atalhos:
Mais imagens do pato-mergulhão, por Sávio Bruno
Programa Pato Aqui, Água Acolá / Terra Brasilis
Saiba mais:
Na fita, o pato-mergulhão
Alagando o Jalapão
Mirador volta a ameaçar Veadeiros
Ninguém é inocente
Um lugar para o pato-mergulhão
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