Reportagens

Vida sustentável no Cerrado

Leandro dos Santos Jacintho deixou um cargo no Ministério da Previdência e transformou sua propriedade em um experimento  inteligente com os recursos da savana. De quebra, ajuda o planeta.

Aldem Bourscheit ·
6 de novembro de 2009 · 15 anos atrás

Leandro dos Santos Jacintho deixou um cargo no Ministério da Previdência e vem aprendendo e ensinando meios práticos e inteligentes para aproveitar os recursos naturais do Cerrado. O administrador de empresas de 28 anos recebeu a reportagem de O Eco e revelou alguns segredos da chácara Asa Branca, a menos de trinta quilômetros do centro político do país.

O espaço pertence à família desde o início dos anos 1980 e é usado há dez anos para experimentos com a chamada permacultura, conjunto de conhecimentos ancestrais e modernos reunidos desde os anos 1970 por Bill Mollison e David Holgren. “Graças a deus conhecemos a permacultura, senão teríamos feito uma chácara convencional, ‘limpando’ o Cerrado. Essa técnica permite conhecer os recursos e usá-los com inteligência”, disse.

E assim foi feito. A casa de Jacintho foi construída para receber a maior quantidade de vento, tem generosas janelas e todos os cômodos são vazados. Isso lhe proporcionou grande economia de energia com iluminação e ventilação. E nada de cimento, tijolo e outros materiais tão usados na construção civil. A residência de dois andares e duzentos metros quadrados cresceu com o barro do chão, bambu e reforço de malha de ferro. A técnica é semelhante a do pau-a-pique (taipa). (Reportagem continua abaixo)

Tudo se transforma

O buracão que cedeu terra para erguer a casa da família se transformou em dos quatro tanques da chácara. Três deles aproveitam o desnível de sete metros do terreno para armazenar até 180 mil litros de água. Outro, de 70 mil litros, ganha volume com a água que escorre pelo telhado. Um sistema simples e engenhoso descarta os primeiros litros, impregnados com a limpeza da cobertura.

Os banheiros ficam fora da residência e são “secos”, não repetem o erro de usar água potável ou tratada para dar fim a certos resíduos. Graças a princípios básicos da Física e da Química, o material desce até reservatórios onde se transformará em adubo, usado em vários pontos da propriedade, menos nas hortas. A água quentinha dos chuveiros é aquecida pelo sol.

O que mais se vê na Asa Branca é Cerrado. Ele cobre quase toda a propriedade. Moradores e visitantes se movimentam em trilhas de terra vermelha abertas com o menor desmatamento possível. Os caminhos mais percorridos ganharam um toque especial: retalhos de mármore. “É o ‘lixo’ do vizinho”, explica Leandro. Por essas vielas ladrilhadas em preto e branco alcançamos outros pontos da chácara, como duas residências mais antigas.

Uma delas exibe em suas extremidades os troncos retorcidos típicos do Cerrado. Em outra, o telhado é coberto por um verdejante gramado. Foi a maneira encontrada pelos locais para reduzir a derrubada de árvores e garantir conforto térmico e sonoro. Há países europeus onde o uso de coberturas verdes é estimulado para reduzir a emissão de calor para a atmosfera. Vegetais com raízes curtas crescem bem nesses locais. “Charme e beleza também contam”, disse.

A parte mais elevada do terreno foi reservada para uma agrofloresta. Onde havia degradação, agora crescem espécies como manga, mandioca, margaridão, guandu, feijão, abacaxi, jatobá, eucalipto e palmeiras. Conforme Leandro, o tempo ajudará na formação de uma nova mata, oferecendo até madeira para construções.

Em outra área, alface, tomatinho, rúcula, feijão-guandú e berinjela são cultivados em hortas bem diferentes das convencionais. Elas têm o formato de mandalas, facilitando a circulação entre os canteiros para preparação da terra e cultivo. Os excedentes da produção são vendidos.

Sustentabilidade na prática

A sustentabilidade financeira é o desafio no horizonte próximo da chácara, reconhece Leandro. A propriedade ainda depende de recursos da família. “Ninguém se sustenta sozinho, nem o planeta, que precisa do sol. Solucionaremos o que for possível com o que temos aqui dentro”, ressaltou.

Desde 2002, o local recebe alunos e professores de escolas do Distrito Federal. Mês passado, foram todas as 13 sextas séries do Colégio Sigma, de Brasília. Além da visitação, obtém dinheiro com cursos, consultorias e novos viveiros devem ser implementados para elevar a produção e venda de mudas. Apesar das dificuldades, a determinação parece ser a maior fonte de sustento na propriedade. “Antes morávamos no Lago Sul (bairro nobre de Brasília), hoje bebo água da chuva e uso banheiro seco, mas minha qualidade de vida só aumentou. Não tenho angústia sobre o futuro, porque o que fazemos é bom e necessário”, disse.

A chácara Asa Branca é uma das propriedades ligadas ao Ipoema – Instituto de Permacultura, Ecovilas e Meio Ambiente. O trabalho vem ganhando tanto corpo que ganhou apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia e do governo do Distrito Federal para implantar técnicas permaculturais no Parque da Asa Sul. Outra iniciativa é desenvolvida no Jardim Botânico da capital federal. “Quem sabe essas experiências não se tornam políticas públicas?”, arremata Leandro.

Atalhos:
Chácara Asa Branca
Ipoema – Instituto de Permacultura, Ecovilas e Meio Ambiente

Saiba mais:

A tragédia dos comuns
Cultura Permanente
Permacultura e gestão socioambiental
Sociedade enfezada
Arquitetura ao natural – com Johan Van Lengen

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

Leia também

Notícias
19 de dezembro de 2024

Desmatamento na Amazônia sobe 41% em novembro, mostra Imazon

Este é o sexto mês consecutivo de alta na destruição do bioma, segundo SAD/Imazon. Degradação florestal tem alta de 84% em relação a novembro de 2023

Notícias
19 de dezembro de 2024

A um mês da posse de Trump, EUA lançam sua meta de corte de emissões

Proposta de Biden é reduzir entre 61% e 66% das emissões até 2035. Governadores dos principais estados dos EUA falam que meta será “estrela guia”

Análises
19 de dezembro de 2024

Restauração muda paisagem em Guaraqueçaba, no litoral do Paraná

Iniciado há 24 anos, plantio de 300 hectares de Mata Atlântica pela SPVS uniu ciência e alta tecnologia, em um casamento que deu certo

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.