Reportagens

Parque de la Papa: um modelo de área protegida “biocultural”

Parque alia conservação com agricultura milenar e mantém as tradições dos qhéchuas, que vivem do cultivo de 400 variedades de batata.

Fabíola Ortiz ·
15 de dezembro de 2014 · 10 anos atrás

Vista das montanhas do Parque de la Papa. Fotos: Fabíola Ortiz
Vista das montanhas do Parque de la Papa. Fotos: Fabíola Ortiz

Cusco, Peru – Assim que aterrissamos na antiga capital do Império Inca, a cidade de Cusco no altiplano andino – ou melhor Qosqo, em quéchua – situada a 3.400 metros acima do nível do mar, já é possível sentir os efeitos da altitude e do ar rarefeito. Quem não está acostumado, pode sofrer com o chamado “mal das alturas”, ou soroche, que leva a sintomas de tontura, dores de cabeça e náuseas. A sabedoria inca já indicava o chá de coca como um remédio eficaz para o soroche. E funciona.

Enquanto milhares de turistas desembarcam todos os anos para fazer a trilha inca e conhecer as ruínas Machu Picchu, nosso destino é outro e pouco conhecido: visitar o Parque de la Papa, uma área protegida biocultural que une comunidades indígenas quéchua da província de Calca, no distrito de Pisac da região de Cusco.

Criado em 2002 com o apoio da ONG Associação Andes, o Parque de la Papa é um novo modelo de área protegida nos Andes, que alia manejo sustentável da paisagem e tradição cultural, assim como o cultivo das mais de 1.400 variedades de batatas. O parque é administrado pelos cinco povoados que abrange, sem auxílio do Estado, seja na gestão ou no financiamento.

Segundo o diretor da Associação Andes, Alejandro Argumedo, a ideia é que o parque seja autossustentável e se estruture com recursos próprios. Por enquanto, a organização Andes ajuda a captar financiamento para projetos e apoia as comunidades quéchua.

“Nós apoiamos a criação do parque que já foi reconhecida pelo próprio governo peruano como modelo de área protegida que reúne a preservação da cosmovisão indígena, conservação natural e produção alimentar, a batata”, disse Argumedo a ((o))eco.

Em uma conversa informal, ele conta que este é o trabalho de uma vida é idealizadores este modelo após viajar o mundo conhecendo experiências de áreas protegidas.

A vida nas alturas

 Em primeiro plano, plantações de batata em terraços do vale.
Em primeiro plano, plantações de batata em terraços do vale.
“A batata, antes que era cultivada a 3.200 metros de altitude, hoje já ultrapassa os 4.000 e só poderá subir até 4.500 metros.”

O Parque de la Papa se situa numa área de 9.200 hectares em altitudes que alcançam 4.500 metros acima do nivel do mar. Aqui vivem seis mil indígenas quéchua espalhados por cinco pequenos povoados – Amaru e Paru Paru na parte alta, de cerca de 4.400 metros; Pampallaqta e Sacaca, na parte média, e Chawaytire na parte baixa, a cerca de 4.000 metros.

Antes de começar a caminhar pelas montanhas escarpadas, os líderes indígenas quéchua também conhecidos como Papa Arariwa, ou os guardiães da batata, realizam um breve ritual espiritual com folha de coca para pedir a benção das entidades que vivem nas montanhas, os chamados Apus. Eles pedem permissão para a caminhada. Um dos deuses mais evocados se chama Apu Sancca. Começamos a caminhada. Embora curta em trajeto e cansativa pela altitude. É preciso subir o plano inclinado das montanhas devagar para evitar o incômodo soroche.

Esta área protegida é rodeada por imponentes formações de montanha e de suas rochas, outrora cobertas de neves eternas. Há pelo menos vinte anos não há mais resquício de gelo nos picos, admite o Papa Arariwa Lino Mamani Huarka, de 50 anos, enquanto percorria trechos das montanhas do vale Kinsa Ccocha. “Pachamama está nervosa pelo que estamos fazendo com ela”, lamenta ao admitir que os verdadeiros efeitos das mudanças no clima podem ser sentidos aqui.

Entre as montanhas, um visual seco e muito vento. A 4.060 metros uma lagoa de água gélida persiste. Para os quéchua, o vento é o sinal das entidades que estão protegendo o vale. A concepção tradicional deste povo andino preza por uma existência harmoniosa com a natureza, o que chamam de Sumaq Kausay. Eles creem em três niveis de comunidade: os Ayllu, que estão interconectados. São eles a esfera dos humanos – Runa Ayllu – onde vivem os homens e plantam sua subsistência; a esfera do silvestre e da vida animal – Sallk’a Ayllu – com os elementos da natureza; e o sagrado, Auki Ayllu – as entidades espirituais e divinas, os espíritos das montanhas e força da Pachamama. A vida para os quéchuas se mantém em equilíbrio quando as três esferas se complementam e estão saudáveis.

E foi sobre este ideal que o Parque de la Papa se apoiou para manter a biodiversidade, as variedades de batatas, os saberes indígenas e os rituais espirituais.

Mamani Huarka explica que as comunidades do parque são autônomas, mas é a “batata que une a todos”. Ele diz que “as batatas são sagradas, temos que saber como tratá-las pois são importantes para nosso sustento, elas têm espírito e se conectam com a vida. Já as montanhas são sagradas, os deuses nos protegem e guardam nossa região. Fazemos rituais de agradecimento porque eles nos proveem, são rituais ancestrais do tempo dos incas”.

Mudança do clima

Índios quéchua fazem ritual para evocar entidades das montanhas.
Índios quéchua fazem ritual para evocar entidades das montanhas.

No entanto, apesar de inovador este modelo de unidade conservação, uma ameaça silenciosa coloca em risco a sobrevivência das mais de 2.000 famílias quéchua no Parque de la Papa, prejudica o cultivo de batatas e outros alimentos, além de afetar as tradições locais.

Enquanto a 20ª Conferência das Partes (COP-20) sobre Mudanças Climáticas corria a pleno vapor e o mundo se reunia em Lima para tentar traçar planos de ação a fim de combater e mitigar as alterações do clima no mundo, ali no Vale Sagrado dos Incas, os guardiães da batata trocavam suas experiências e relatavam como as altas temperaturas e o regime de chuva escasso têm afetado diretamente os seus cultivos.

Os quéchua fazem um apelo em nome de sua sobrevivência. Para o Papa Arariwa Mamani Huarka, os verdadeiros impactos das mudanças climáticas estão aqui: “Temos que plantar nossas batatas em áreas cada vez mais altas. Todos os cultivos estão se movendo mais para o alto da montanha até um momento onde não haverá montanha para plantar”.

Em seu pedaço de terra de 6 mil metros quadrados, Mamani Huarka, membro da comunidade de Pampallaqtal, trabalha com 280 variedades diferentes de batatas, muitas cultivadas apenas na parte alta.

Embora não entendam bem bem o que são mudanças climáticas, a expressão já é comum na boca dos quéchua que há bem pouco tempo começaram a conviver com um calendário diferente para a produção de seus alimentos.

“Fico pensando qual é o futuro da minha família e como será o tempo depois. Haverá comida?”, indaga Mamani Huarka. A batata, antes que era cultivada a 3.200 metros de altitude, hoje já ultrapassa os 4.000 e só poderá subir até 4.500 metros. “Quando plantamos nas partes baixas, as pragas e doenças aparecem rapidamente”.

O engenheiro agrônomo René Gómez, responsável pelo banco de germoplasma do Centro Internacional de la Papa (CIP), estima que neste ritmo, em 40 anos não haverá mais onde cultivar as batatas. Este poderia ser o fim da área protegida Parque de la Papa, que se fundamenta neste cultivo milenar e na preservação da biodiversidade andina.

“Para que os tubérculos mantenham suas propriedades nutritivas, é preciso de frio. As batatas nativas daqui (cerca de 400 variedades) necessitam de temperaturas entre 4º e 8º C, algumas alcançam até 12ºC”, explicou Gómez.

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Adaptação

Porém, há formas de adaptação. “Podemos mitigar os efeitos. A saída está nos genes das batatas. Já identificamos, pelo menos, 11 cultivares tolerantes a secas (até 200mm de chuva por ano), altas temperaturas e heladas (períodos de queda brusca de temperatura que congelam as plantações e geralmente ocorrem após longos dias de seca)”, afirmou Gómez.

Há pouco, os governos peruano e norueguês com a Associação Andes, o CIP e sob o consentimento das comunidades quéchua no Parque de la Papa firmaram um convênio. Ele autorizou o envio de 100 sementes botânicas de 400 variedades nativas de batatas desta região para o Banco Global de Sementes de Svalbard, na Noruega.

Este banco funciona como uma “arca de noé”, uma caixa forte encravada no círculo polar ártico a vários metros de profundidade no permafrost ártico do arquipélago de Svalbard para preservar milhares de sementes no mundo. O convênio está prestes a sair do papel: deve começar em 2015.

Conservação e produção de alimentos nativos

Para Alejandro Argumedo, diretor da Associação Andes e um dos idealizadores do Parque de la Papa, é o manejo sustentável da paisagem e a segurança alimentar que conserva os direitos dos indígenas a seus territórios.

Em 2009, o Parque de la Papa foi premiado como a melhor proposta apresentada ao Fundo de Distribuição de Benefícios do Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura.

Argumedo tem viajado pelo Peru para compartilhar a experiência implantada no Parque de la Papa para estruturar futuros parques como do cacau, em Quillabamba na região de Cusco, e o parque da quinua, em Puno, às margens do lago Titicaca no extremo sul do Peru.

O plano se estende a replicar este modelo em nivel internacional. Representantes de países como Etiópia, Quênia, China e Índia já visitaram o Parque de la Papa e pensam em adotar seu modelo. Segundo Argumedo, até o Brasil andou sondando a iniciativa para elaborar algo semelhante no nordeste brasileiro, com a mandioca.

Jovem quéchua
Jovem quéchua

 

 

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  • Fabíola Ortiz

    Jornalista e historiadora. Nascida no Rio, cobre temas de desenvolvimento sustentável. Radicada na Alemanha.

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