Se nem esta semana você ouviu falar de Laury Cullen Júnior, está na hora de acertar seu jornal pelo fuso de Genebra. Ele é engenheiro florestal, mora no interior de São Paulo, numa casa de madeira diante do rio Paranapanema, trabalha numa ONG chamada Instituto Ipê e acaba de ganhar um Rolex. E não se trata só do relógio, embora a fábrica suíça tenha aproveitado a ocasião para gravar seu nome num legítimo cronômetro de ouro e aço. Ele foi premiado em Genebra com um dos Rolex Awards for Enterprise. E isso é notícia em qualquer lugar do mundo.
O Brasil é mesmo distraído. Do rol de onze escolhidos pelo premio Rolex este ano, consta a argentina Teresa Manero de Bianco, que cuida de preservar as pegadas de animais pré-históricos no chão da Patagônia. Sua escolha saiu no La Nación, o mais importante jornal argentino. Faça-se em seguida o teste do Google. O americano Lonnie Dupre, que inscreveu uma proposta de atravessar o Ártico no pior momento, quando o gelo estiver se mexendo no próximo verão, aparece nada menos de 26 vezes, se o seu nome é associado no programa de busca à marca do relógio.
Laury Cullen, um dos seis “laureados adjuntos” de 2004, emplaca no Google uma única citação em português. Saiu até agora exclusivamente num site de notícias. E não é que ele esteja metido em empreitadas exóticas para lá do fim do mundo. Vive num lugar que freqüenta regularmente as manchetes nacionais, sempre que o MST esquenta os tambores da reforma agrária. Candidatou-se com o projeto de anexar 400 famílias de pequenos agricultores ao programa de reflorestamento que o Ipê implantou no Pontal do Paranapanema, convertendo ao credo ecológico do instituto centenas de assentados, num terreno minado pela grilagem e o conflito fundiário.
E tem vasta folha de serviços prestados ao Pontal. Hoje, graças aos dez anos de catequese do Ipê, os assentamentos da região cultivam também viveiros, que fornecem mudas de árvores até para os fazendeiros da vizinhança, inspirados pelas multas do Ibama a reconstituir matas ciliares e reservas legais. Além disso, produzem, entre outros trunfos da agricultura ambientalmente correta, café tipo exportação, cultivado à sombra da floresta que está rebrotando. Como? Aplicando “os princípios da silvicultura”, diz Laury Cullen, que agora, com o dinheiro do premio, quer repetir a fórmula em 10 quilômetros quadrados de solo degradado em volta da reserva.
O que ele está fazendo no Pontal é um daqueles trabalhos que se enxergam da órbita terrestre, numa fotografia de satélite. O Morro do Diabo, que na década passada era um fragmento de mata atlântica sitiado por fazendas, seis mil lotes rurais de no máximo 15 hectares, estradas vicinais, rodovias asfaltadas e o cinturão urbano da cidade de Teodoro Sampaio, foi cerzido aos poucos por linhas de arborização às capoeiras e manchas de floresta que sobraram em sua vizinhança.
Esses caminhos foram traçados pelos próprios bichos, seguidos de longe pelo Ipê sempre que saíam do Morro do Diabo para zanzar nos campos abertos. E é por eles que hoje as onças e as antas do parque caminham até o Mato Grosso do Sul, atravessando a fronteira de São Paulo. Não estão mais ilhadas, como estavam, numa reserva que encolheu da noite para o dia, quando nos anos 50 o governo paulista deixou a pecuária extensiva invadir o Pontal do Paranapanema.
Ao premiar Laury Cullen com 35 mil dólares, o comitê do Rolex Awards pôs mais um sinal de reconhecimento numa carreira que já parece maior vista de fora, onde ele acumula títulos e troféus internacionais, do que do Brasil, onde suas façanhas no exterior sequer viram notícia. Foi assim em 2002, quando ele recebeu em Londres das mãos da princesa Anne, aplaudido pela boa parte do PIB inglês no palco da Royal Geographic Society, o premio Whitley. Aqui, a notícia custo a chegar. E esfriou no caminho.
Ele é um paulista de 38 anos. O nome estrangeiro veio de imigrantes confederados, radicados na cidade de Americana, interior de São Paulo, depois da derrota sulista na Guerra de Secessão. Já foi caçador, como o pai. Formou-se em engenharia florestal, numa época em que os professores ensinavam a derrubar árvores com tratores e correntes no Cerrado. Em 1989, no último semestre do curso, candidatou-se a um estágio no Morro do Diabo. E, quando se deu conta, estava ajudando o biólogo Claudio Padua e sua mulher, Suzana, a fundarem o Ipê – quer dizer: Instituto de Pesquisas Ecológicas. A ONG cabia num espaço tão apertado, que em seus primeiros anos de existência sua equipe se reunia no quarto do casal.
Isso foi há 12 anos. O Pontal se tornava na época uma região definitivamente conflagrada. E, no meio da disputa entre o MST e o latifúndio, estava o parque estadual, um santuário de 370 quilômetros quadrados, onde Claudio Padua se enfurnara para estudar Leontopithecus chrysopygus. Ou mico-leão-preto, um bicho raro, tímido e endêmico, que passara décadas na lista de espécies extintas, antes de ser redescoberto naquele campo de batalha.
Sessenta e poucos anos antes, havia no Pontal do Paranapanema uma vasta
floresta. Ela figurava nos mapas desde 1905 como reserva estadual. Quando se concretizou, em 1941, com os poderes de representante do Estado Novo, o interventor Fernando Costa desapropriou três mil quilômetros quadrados de títulos grilados, que fatiavam aquela selva intacta desde o Império. Mas Costa morreu em 1946, durante a campanha para voltar ao cargo como governador eleito.
E “outra mão veio para o leme, dessa vez a de um pirata”, ensina o historiador Warren Dean, no livro A Ferro e Fogo: “O governador Adhemar de Barros, eleito com o apoio dos prefeitos do noroeste, demonstrou sua gratidão renunciando à propriedade estadual sobre quase a metade da reserva do Pontal, permitindo que a mesma fosse atravessada por uma ferrovia e adjudicando um contrato para fundar ali uma colônia de imigrantes. Faixas de terra invadidas eram vendidas e revendidas, e mesmo doadas a conselhos municipais, para conquistar aliados na tarefa de legitimação”. Em poucos anos, sobrava menos de um décimo da mata original.
Foi nas últimas sobras dessa pilhagem fundiária que, há pouco mais de 30 anos, o primatologista Adhemar Coimbra Filho identificou o mico-leão-preto, tido então como extinto. E Claudio Padua se apresentou como voluntário para acompanhar, da manhã à noite, o dia-a-dia na mata dessa autêntica relíquia viva. Era um macaco tão ameaçado que podia desaparecer de uma vez por todas antes de ser imortalizado pela pesquisa de campo. E, para salvá-lo, o biólogo achou que precisaria livrar o Morro do Diabo das pressões que comprometiam a sobrevivência da espécie. E assim Laury Cullen, estagiando com ele no Pontal, acabou embarcando definitivamente na aventura do Ipê.
Claudio Padua é neto de Benedito Valladares, um legendário político mineiro, o que é sinônimo de esperteza e moderação. Mas uma década antes dera uma virada radical em sua própria vida, levando junto Suzana e dois filhos. Demitira-se da presidência de uma fábrica de produtos farmacêuticos, decidido a se dedicar dali para a frente à conservação da natureza. Constatou depois que essa decisão iria lhe custar um vestibular de Biologia, um mestrado na Inglaterra, um PhD na Flórida e a maior parte de seu patrimônio, consumida durante a dácada de mudança.
Ele deixou de ser executivo aos 30 anos. E aos 40 estava no Morro do Diabo, tendo perdido carro esporte, casa no Rio de Janeiro e projeto de comprar barco para os fins de semana. Renunciara, de quebra, ao posto de diretor em Washington da ONG The Nature Conservancy, um dos fundos mais sólidos do ambientalismo internacional. Rico, dali por diante, seria só o seu currículo.
Hoje, o Ipê administra cinco reservas, desde Superagüi, no litoral paranaense, ao arquipélago das Anavilhanas, na Amazônia. Os bichos que pastoreia nesses paraísos ecológicos – como o peixe-boi e o papagaio charão, para não falar no mico-leão-preto – decoram as palmilhas de um novo modelo de sandálias Havaianas, exportado para a Europa, porque a fábrica associou recentemente sua marca à do instituto. E decidiu financiá-lo. Mas Laury é do tempo das vacas magras. Quando chegou ao Morro do Diabo, estava terminando o curso na USP. “As pessoas viviam me dizendo que eu precisava conhecer Claudio Padua”, explica. Ele foi lá ver. E ficou.
Quando Claudio voltou aos Estados Unidos para acabar o doutorado, foi ele que tomou conta das novas famílias de mico-leão-preto, localizadas em fiapos de mata atlântica, nas franjas do Pontal. “Eram populações muito isoladas. Havia um caso em que sobrava só uma família e a mãe estava cruzando com os filhos”, diz ele. Alguns anos depois, o bicho parece ter chances de vingar. Há pelo menos oitocentos micos dentro do parque. E duzentos espalhados pelo estado de São Paulo.
Foi desses achados que o Ipê tirou o projeto de ligar o que sobrava da floresta no oeste paulista, plantando os caminhos arborizados que, no jargão dos ambientalistas, se chamam “corredores da biodiversidade”. Em princípio, o projeto só tinha o apoio da fauna. Era visto com desconfiança pelos fazendeiros e pelos líderes do MST, que nisso pelo menos tinham lá suas afinidades. Laury contornou essa resistência aprendendo antes de mais nada a conversar com o MST. “Passei a visitar assentamentos. Discuti muito. Participei até de invasões para ver como é que essas coisas acontecem. Mas acabei convencido de que é possível arrumar o Pontal com a ajuda deles”, ele conta.
Ele é especialista em impactos causados pela presença humana em áreas de proteção. O diploma, tirado na Flórida, vacinou-o contra os excessos de otimismo do populismo ambiental, que considera plausível entregar aos ”povos da floresta” e outras populações tradicionais até a direção de parques nacionais. Mas aprendeu, trabalhando no Pontal, que o ambientalismo, se quiser mesmo dar certo, não pode cuidar só de bicho e planta. Terá que lidar com gente.
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