Há um ano, em Washington, a ministra de Minas e Energia Dilma Roussef informou que o país está investindo na produção de hidrogênio a partir do álcool e da eletrólise da água, e deve utilizar também a rede de gás natural, que está em expansão.
Era o primeiro encontro da Parceria Internacional Para a Economia do Hidrogênio (IPHE, na sigla em inglês). O grupo reúne os 15 maiores países consumidores de energia para criar estratégias de distribuição do hidrogênio, hoje considerado a principal alternativa para substituir o petróleo, cujos estoques devem durar cerca de 40 anos.
Das três formas de produzir hidrogênio citadas por Dilma, a eletrólise da água é sem dúvida a mais limpa e renovável. Considerando sua tendência a produzir usinas às custas da preservação ambiental, ao menos o farto sistema hidrelétrico nacional poderia propiciar a Dilma uma forma de diminuir a poluição dos combustíveis fósseis via hidrogênio. Por tabela, evitaria reinventar a devastação promovida em passado recente pelo ProÁlcool.
Até a indústria canavieira já acordou para a grande oportunidade comercial do combustível hidrogênio. A Única (União da Agroindústria Canavieira de São Paulo) e a Copersucar (Cooperativa dos produtores de cana-de-açúcar de São Paulo) integram a equipe do Programa Brasileiro Sistemas Célula a Combustível (ProCaC). Lançado em novembro de 2002 no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia, em seu documento inaugural o ProCaC defende como prioritárias as pesquisas com etanol (álcool), fonte que considera “atraente e estratégica para aplicações automotivas”.
Enquanto o governo brasileiro continua tentado a investir no álcool, os países desenvolvidos apressam-se numa corrida tecnológica que pode definir os rumos do poder mundial ainda neste século XXI. Os estoques de petróleo atualmente conhecidos não permitem à humanidade contar com este precioso combustível fóssil por muito mais tempo. O que é obviamente uma ótima notícia para quem se preocupa com o aquecimento terrestre, em grande medida causado pela emissão de gás carbônico na atmosfera.
Os cientistas de ponta já estão noutra. É preciso alcançar rapidamente uma maneira viável de substituir o petróleo. Não se encontrou ainda resposta melhor do que o hidrogênio. Ele tem duas grandes vantagens: é o terceiro elemento mais abundante na superfície da Terra e não polui. Depois de gerar energia, o hidrogênio reúne-se ao oxigênio e torna-se… água. E isto é tudo o que os carros movidos a hidrogênio vão liberar. O hidrogênio também poderá ser fonte de energia elétrica nos locais onde faltam recursos renováveis (água, sol, ventos) para isso.
Tanto carros quanto casas e empresas, no futuro, obterão sua energia através de “células de hidrogênio”. As células (ou pilhas) são espécies de tanques que armazenam o elemento puro e poderão ser reabastecidos na grande rede que existirá em substituição aos postos de gasolina. É o que prevê Jeremy Rifkin no livro “A Economia do Hidrogênio” (2003). O autor americano, especialista em biotecnologia, é um entusiasta dessa nova fonte de energia. Para Rifkin, a Era do Hidrogênio trará uma revolução nas relações econômicas, políticas e sociais. O poder será redistribuído. As grandes corporações que exploram a energia deixarão de existir. Todo indivíduo poderá ter sua própria central de geração e compartilhamento de energia.
Muitos cientistas não levam a sério essas profecias tecno-sociológicas. Um argumento muito simples é usado para contestar a nova sociedade prevista por Rifkin: como o elemento hidrogênio (H) não existe isolado na natureza, é necessário utilizar outra forma de energia para separá-lo da água ou de um composto orgânico. Pode ser através da “reforma” de recursos naturais (o próprio petróleo, gás, álcool, biodiesel) ou de energias renováveis. Isso torna a obtenção do “combustível eterno” uma façanha ainda cara e complexa. Uma vez obtido o hidrogênio puro, restam à ciência os desafios de armazená-lo (nas células combustíveis) e comercializá-lo.
As pesquisas avançam rápido, mas o hidrogênio combustível só deve ser comercializado em massa em 2014. Enquanto isso, governos e grandes montadoras de automóveis investem bilhões de dólares no desenvolvimento de outras tecnologias “limpas”. O objetivo é abandonar gradativamente os combustíveis fósseis. O Protocolo de Kyoto, que lançou o alerta mundial sobre a necessidade de se reduzir a emissão de dióxido de carbono, apesar de ainda não ter entrado em vigor, já influenciou leis nacionais e locais nesse sentido. Matéria de capa de revista The Economist de setembro conta que a Comissão Européia convenceu seus fabricantes de carro a cortar as emissões em 25% até 2008. O governo da Califórnia baixou regulamentação exigindo redução de 30% dos gases poluentes a partir de 2009. A legislação daquele estado americano é uma das mais rígidas no sentido de reduzir a poluição dos automóveis. Já vigora uma lei que obriga todas as montadoras a produzirem pelo menos 10% de carros ZEV, ou Zero Emission Vehicle.
Atualmente, só é possível atingir uma emissão de poluentes igual a zero se o carro tiver um motor elétrico acionado por célula de hidrogênio. Como a Califórnia concentra 10% do automotivo norte-americano, e a penalidade para quem não alcançar a meta é a proibição de vender no estado, as montadoras dedicaram-se à pesquisa, e os resultados já estão nas ruas.
A Honda foi a primeira a lançar um ZEV no mercado, mas todos os outros fabricantes já têm os seus protótipos de hidrogênio. Enquanto isso, para limpar sua barra com o consumidor consciente, estão desenvolvendo os chamados carros híbridos. Estes funcionam com um motor metade elétrico e metade a combustão. O combustível serve para acionar o sistema elétrico, e quando o carro está em movimento eles se alternam, poluindo muito menos e fazendo um litro de gasolina render mais do que nos carros convencionais. O primeiro híbrido do mercado foi o Toyota Prius, que já vendeu 200 mil unidades, seguido pelo Honda Insight. Há poucos meses, a Ford lançou sua camionete semi-elétrica, chamada Escape, gabando-se de ter atingido um “híbrido completo”. A diferença é que a bateria armazena mais energia elétrica do que os concorrentes e é recarregada sempre que o motorista pisa no freio. Portanto há mais autonomia da parte elétrica e menos necessidade de usar a combustão. Em números: o Ford Escape polui 99,4% menos do que um carro convencional, e faz 17 quilômetros com um litro de gasolina.
No Brasil essas novidades ainda não chegaram. A indústria automobilística não investe em pesquisa de ponta. O governo não criou leis determinando a redução da emissão de CO2. O consumidor também está longe de cobrar das montadoras soluções menos poluentes. Nem mesmo em São Paulo, onde os carros são obrigados a se revezar nas ruas para diminuir a poluição, existe qualquer movimento nesse sentido.
As filiais brasileiras das grandes montadoras nem mencionam que, lá fora, seus mais badalados lançamentos são ambientalmente corretos. Devem achar que isso é coisa de mentalidade desenvolvida. Talvez tenham razão. Ninguém chiou quando emplacaram, aqui, os carros bi-combustível. São, em bom português, os FlexPower. Você pode escolher se vai usar gasolina ou álcool. Ou seja, se vai usar um combustível fóssil altamente poluente ou se pretende poluir menos, usando um combustível de origem natural mas cujo sistema de produção é ambientalmente desastroso. A produção de álcool em grande escala é considerada insustentável do ponto de vista ambiental. A expansão da cana-de-açúcar gerada pelo ProÁlcool foi responsável pela devastação de boa parte do que sobrava de Mata Atlântica no Nordeste.
Com o crescimento das pesquisas com hidrogênio no país, o álcool volta a surgir como solução nacional. A biomassa é uma das fontes primárias de energia que liberam hidrogênio. Como já contamos com uma grande rede de distribuição implantada em todo o território, é tentador, para o governo, pensar no uso do álcool (etanol) para produzir o novo combustível.
As diretrizes do governo influenciam os três principais laboratórios universitários criados para pesquisar as células de hidrogênio, na Unicamp, UFRJ, e uma parceria entre a Universidade Estadual de Maringá e o instituto LacTec. As instituições científicas dedicam a maior parte de seus recursos para desenvolver tecnologia que permita a “reforma” do etanol em hidrogênio.
E o trem da história vai passando sem que o país do futuro se dê conta… Cristopher Flaving, do World Watch Institut, que pesquisa tecnologias ambientalmente sustentáveis, considera o Brasil um ator estratégico nos novos rumos energéticos da humanidade. Para ele, tivemos pouca importância na era dos combustíveis fósseis, mas podemos ser os líderes dos combustíveis renováveis, graças aos nossos recursos naturais. Emilio Hoffmann Gomes Neto, jovem cientista brasileiro da área, também aposta nisso. O engenheiro eletricista de 28 anos, formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), criou com dois amigos a Brasil H2, uma empresa especializada em células a combustível, e se orgulha de ter sido o primeiro a registrar na Internet o domínio http://www.celulaacombustivel.com.br. Ele acredita que, assim como no século XIX a liderança inglesa baseou-se no carvão e no século XX a liderança americana foi puxada pelo petróleo, a era dos recursos renováveis pode ter como potência o Brasil. Mas Emilio alerta que o Canadá tem feito as maiores descobertas tecnológicas na área e “está patenteando tudo”, o que gera o risco futuro de que tenhamos que pagar royalties aos “inventores” do hidrogênio combustível.
No momento em que se abre um novo leque de alternativas para a consolidação de uma energia inédita no mundo, o Brasil ainda engatinha nas pesquisas com células a combustível. Isto se deve ao tradicionalmente baixo investimento público em ciência e tecnologia, por um lado, mas também a uma opção ambientalmente equivocada. Apostar maciçamente no álcool para a produção de hidrogênio pode nos colocar, num futuro próximo, como vilões de um jogo em que o principal argumento será a sustentabilidade.
Talvez então já seja tarde para buscar outras tecnologias made in Brazil.
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