Reportagens

Gema da Terra

Imenso platô de quartzo que reflete luz para o espaço, o Parque Nacional da Chapada do Veadeiros é terra de fogo e de água. E, infelizmente, de homens também.

Carolina Mourão ·
7 de outubro de 2004 · 20 anos atrás

O Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros brilha como uma jóia. Localizado a 250 quilômetros de Brasília, é o ponto natural de maior luminosidade do globo terrestre. Quem diz isso e já cansou de admirar seu fulgor lá do espaço com seus satélites e espaçonaves é o pessoal da Nasa. A placa Araí, imenso platô de quartzo que reflete o sol e forra o Parque, também não passou despercebida pelos garimpeiros. Foram eles os primeiros a desbravar essa área, que além de belíssima, tem imensa importância ambiental e científica.

Criado em 1961, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros tinha originalmente 600 mil hectares. Ao longo dos anos, os diferentes governos diminuíram cada vez mais a área protegida, que chegou a ter apenas 60 mil hectares. Em meados de 2001, o Parque foi novamente ampliado, para 236 mil hectares. Mas no governo Lula recuou para 65.514 hectares.

Entre reduções e ampliações, a Chapada dos Veadeiros recebeu o título de Reserva da Biosfera do Cerrado. Ainda era pouco, diante da preciosidade daquele ecossistema: o raro cerrado de altitude, ao longo de 2 milhões e 500 mil anos de isolamento, formou um alto grau de endemismo. Por este motivo, o Parque também recebeu o título de Patrimônio Natural da Humanidade.

Quando foi fundado, já havia 15 mil garimpeiros acampados na vila de São Jorge, distante 11 km da cidade de Alto Paraíso, sertão adentro, no miolo do Parque. Com o tempo, o ciclo do cristal minguou e eles começaram a ser substituídos por naturalistas e esotéricos. A beleza natural e o magnetismo de suas rochas esculpidas pela água fizeram muita gente mudar de mala e cuia para a Chapada. Foram criadas comunidades alternativas e místicas, os ufólogos juram ser a área um ponto privilegiado para o pouso de discos voadores. De dez anos para cá, o fluxo aumentou. Chegou a luz e muitas estrelas do “céu de purpurina” desapareceram.

As primeiras pousadas, bem simples, dividiam os turistas com as áreas de camping. Surgiram então novas pousadas, de dois andares. E agora, com piscina. Uma onda de especulação imobiliária levou à expansão de São Jorge. São Jorge II é um conjunto de lotes novos, em uma vila que não poderia crescer às margens do Parque, por determinação ambiental. A chegada do asfalto à estrada entre São Jorge e Alto Paraíso é o mais recente capítulo da urbanização da outrora isolada Chapada dos Veadeiros. A pavimentação é considerada uma ameaça à integridade dos limites do Parque. Vem a reboque da construção da usina hidrelétrica Serra da Mesa e das casas luxuosas que começaram a ser erguidas em volta da enorme lagoa que se formou.

Alto Paraíso é a cidade-base para quem vai conhecer a Chapada. Ela é o termômetro de São Jorge, que por sua vez é o termômetro do Parque. E as coisas em Alto Paraíso não andam boas. Na contramão da intensa especulação promovida no entorno, o município experimenta uma quebradeira imobiliária. É conseqüência da fuga da segunda geração de habitantes forasteiros, que se desencantaram com a nova realidade local. Depois dos garimpeiros e dos naturalistas, parece estar começando um terceiro ciclo. O do crescimento urbano desordenado. O número de furtos aumentou e a ocupação irregular não pára. A comunidade convive com abusos políticos e má administração. Neste momento, não há juiz na cidade, pois Alto Paraíso é um daqueles destinos temporários de recém-concursados federais, com grande rotatividade de autoridades. Eles assumem, ficam o tempo mínimo exigido e logo pedem transferência.

As irregularidades se amontoam. Os cartórios de Alto Paraíso e Cavalcanti, até meados de 2001, registravam como queriam as titulações de terras. É comum encontrar um terreno com muitos donos. Há casos em que dez pessoas pagaram pelo título do mesmo espaço. A União pretendia pagar uma indenização para os proprietários que desocupassem as áreas ao redor do Parque, e ainda pretende, para garantir a integridade do Patrimônio. Mas, no fim das sobreposições de títulos, as terras sempre pertencem, na origem, à própria União. Algumas autoridades locais negociam até hoje essas terras em áreas consideradas devolutas que, de uma hora para outra, passam a pertencer a um novo dono.

Na problemática cidade, a caça é um hobby. Os animais de grande porte que ultrapassam a fronteira do Parque, invadindo áreas particulares vizinhas, viram alvo certo. Em dias de movimentação política, um vereador de nome sugestivo costuma promover churrascos memoráveis com carne de caça, para mostrar o valor da região. A turma do gatilho pertence à elite política local. O abate do veado campeiro, que só existe ali e está quase extinto, envolve prejuízos que vão além da perda do animal. Primeiro, o caçador toca fogo no campo de cerrado, calcinando outras espécies animais e vegetais. Quando vem a chuva e começa a brotar a nova cobertura verde, o veado aparece para se alimentar. Está pronta a armadilha. Trilhas de caminhonetes e cercas cortadas indicam a tocaia.

O Ibama, maior autoridade ambiental, tem apenas três pessoas para fiscalizar e dirigir as atividades no Parque. Diante da missão impossível, os técnicos ambientais decidiram investir numa inteligente parceria com a comunidade. Formou os moradores como guias turísticos, e com isso ganhou adeptos naturais da preservação ambiental. Os guias fiscalizam a área de forma exemplar, em visitas detalhadas e regulares. Levam plásticos para recolher o lixo e educam turistas desavisados. Já são duas as gerações de guias trabalhando no Parque Nacional. Para eles, preservar o Parque é preservar sua fonte de renda. Mesmo com a ajuda dos guias, é difícil monitorar tudo o que acontece com o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Entre reservas particulares, fazendas de gado e terras da União, cachoeiras e paredões, a fronteira está indefinida em muitos pontos. Em alguns lugares não há cerca.

Um dos tesouros da Chapada dos Veadeiros são suas nascentes. Como a própria vida, elas surgem do nada, no chão de cristal. Alimentam o Rio Preto, o Rio dos Couros, o Rio das Almas, o Rio Macaco e o Rio Bartolomeu, que abastecem o Tocantins. Mas dados preliminares da WWF apontam que muitas delas estão contaminadas por agrotóxico ou coliformes fecais. A invasão da soja nas redondezas e o despejo indiscriminado do lixo de Alto Paraíso seriam os grandes responsáveis pela contaminação. Há controvérsias sobre os números. Fato é que o lixão da cidade tem uma usina de reciclagem desativada, e queima tudo a céu aberto. Seringas do lixo hospitalar misturam-se na maçaroca – parte queimada, parte em decomposição. O lixo está espalhado por todo o terreno fora do galpão de reciclagem da usina e avança para a entrada de Alto Paraíso, que fica ao lado. Para fazer a foto, fomos atacados por milhares de moscas. Uma língua negra vinha em nossa direção.

As trombas d’água vêm em épocas de seca inclemente. Sem aviso prévio, metros de água avançam como se uma represa tivesse sido aberta a poucos metros, engolindo tudo pela frente, cânion abaixo. É um impressionante, imprevisível e violento fenômeno da natureza. O Vale da Lua, área particular, revela do que a água é capaz. Desde o período pré-cambriano, há 200 milhões de anos, a água esculpe aquelas pedras côncavas ou convexas, com bordas de navalha. Não há outro lugar assim. Nem mesmo dentro do Parque.

Há águas que vêm para o mal. Uma hidrelétrica está para ser construída num vão entre os rios dos Couros e Tocantinzinho, dentro do Parque. Vai inundar 51 quilômetros quadrados. Um parecer do Ibama enumera o impacto ambiental que a obra pode causar. Os prejuízos serão irreversíveis à fauna, já que toda ela, a maioria endêmica, utiliza exatamente o fundo dos vales, os chamados corredores biológicos, para se refugiar de predadores, do sol e para alimentar-se de outras espécies. Os visitantes queixam-se de não ver muitos bichos na área mais visitada do Parque. É porque é no fundo dos vales que estão escondidos animais como a onça e o tamanduá-bandeira. A maioria na lista vermelha de extinção.

O Parque também abriga, proporcionalmente, uma das maiores biodiversidades em anfíbios do planeta. Rãs, sapos e pererecas que se adaptaram ao clima durante milhares de anos estão desaparecendo. O fogo, ameaça constante, vem com a pressão humana. Algumas pessoas atribuem os incêndios à presença dos cristais, que esquentam e geram fogo em épocas de estiagem. Mas é de origem criminosa o fogo responsável pelos grandes incêndios. Persiste o mito de que o Cerrado resiste ao fogo. É falso. Ele apenas se recupera bem dos incêndios rasteiros de origem natural. O fogo provocado quase sempre traz danos irreparáveis à fauna e às espécies vegetais.

Pontas de cigarro acesas na rodovia que faz fronteira com o Parque, fazendeiros que queimam o pasto e perdem o controle das chamas, turistas que fazem fogueiras. Tem de tudo. Um ritual esotérico provocou um grande incêndio no final de agosto de 2000, quando 20 mil hectares do Parque Nacional foram completamente queimados. O relatório do Corpo de Bombeiros e dos técnicos do Ibama apontou como foco uma fogueira em forma de estrela. Ano passado um homem foi preso depois de tocar fogo três vezes seguidas na área. Foi pego em flagrante com uma vela na mão. A família alegou insanidade.

Nem o Ibama nem o Corpo de Bombeiros estão preparados para incêndios de grandes proporções. Todos os anos o Parque fica em chamas e todos os anos faltam homens para contê-las, deixando claro que não há equipamentos, pessoal e uma política de prevenção.

Na terra do fogo e da água, os estoques de calcário branco e de carvão negro, retirados ilegalmente, dividem espaço na fotografia. Na vizinhança e no próprio Parque Nacional, as atividades de extração ilegal de madeira são uma realidade. Na Serra da Laranjeira, a 35 quilômetros a leste de Alto Paraíso, o Ibama apreendeu ano passado, de uma só vez, 70 metros cúbicos de ipê, braúna e aroeira. As duas últimas, ameaçadas de extinção. Em apenas um dia, 200 caminhões de lenha circulam pela estrada de Planaltina rumo a Minas Gerais, para alimentar as inúmeras indústrias de lá.

Apesar de todas as agressões, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros ainda é um santuário. Em 2003, três patos-mergulhões foram vistos no Rio das Pedras por Carlos Bianchi, pesquisador do Ibama. No dia seguinte, dois deles voltaram a aparecer. Desde a década de 50 não se via um exemplar da espécie. A dificuldade de encontrar o habitat ideal é uma das causas de sua classificação como espécie criticamente ameaçada de extinção nas duas listas vermelhas de 2003, a brasileira (publicada pelo Ibama) e a internacional (coordenada pela União Mundial para a Conservação da Natureza, IUCN). Hoje, a população de patos-mergulhões está estimada em 250 animais na América do Sul. Extremamente sensível a alterações do meio ambiente, o Mergus octosetaceus sobrevive apenas em rios encachoeirados e livres de qualquer poluição. Sem dúvida, a água dali é uma jóia, assim como todo o platô.

Uma coroa, central e alta, iluminando do Brasil. Tesouro com exemplares tão raros quanto o próprio Cerrado de Altitude. Sertão endêmico de todas as paisagens, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros vale mais do que seu quartzo visto do espaço.

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