Acostumado a deter o título de campeão de queimadas no Brasil, Mato Grosso este ano está batendo seus próprios recordes. Até o último dia 27 de setembro, o Ibama apontava o acúmulo de 60.702 focos de incêndio no estado. No mesmo período do ano passado, os números estavam na casa dos 48 mil focos.
A expansão das fronteiras agrícolas também ocasionou um desmatamento de proporções inéditas no estado. Entre 2002 e 2003, foram desmatados 10.416 quilômetros quadrados de florestas, a maioria de forma ilegal. O governador Blairo Maggi, que é o maior produtor mundial de soja, reconheceu o número, mas disse, em evento recente, que não o considera alto.
Os prejuízos ambientais causados pela agricultura não são a principal preocupação do governo. O secretário de Desenvolvimento Agrário de Mato Grosso, Homero Pereira, tem outra prioridade no momento. Recentemente, ele convocou uma reunião com a Delegacia Regional do Trabalho e Ministério Público do Trabalho para pedir uma “trégua” na fiscalização contra o trabalho escravo em fazendas matogrossenses. Os critérios da fiscalização foram considerados “rígidos demais” pelo secretário. Agressão ambiental, agricultura e trabalho escravo estão intimamente relacionados em Mato Grosso. O trabalho braçal realizado em condições degradantes costuma ser utilizado principalmente nas queimadas e desmatamentos, que “limpam o solo” para o plantio.
Há alguns anos, ensaiaram-se progressos na política ambiental do Mato Grosso. Entre 2001 e 2002, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fema) rodou o Brasil e o mundo divulgando uma tecnologia de ponta capaz de monitorar áreas desmatadas ou destruídas por incêndios. Na mesma época, funcionava um Sistema de Licenciamento Ambiental em propriedades rurais que conseguiu reduzir drasticamente esses crimes promovidos por fazendeiros. Mas isso foi antes da gestão Blairo Maggi. As notícias mais recentes indicam que foi tudo por água abaixo. Ou pior: fogo acima.
Este ano, a Fema e o Ibama culpam diferentes setores produtivos pelo desastre ambiental causado pelas queimadas. Enquanto a Fema responsabiliza os pequenos agricultores e assentados, o escritório do Ibama em Mato Grosso culpa os grandes fazendeiros.
Em vez de promover ações contra as queimadas e de proteger as unidades de conservação, a Fema dá prioridade à fiscalização das atividades pesqueiras, eventos de educação ambiental e críticas às queimadas urbanas, que competem às prefeituras e não ao estado. Não realizou campanhas de prevenção ao fogo e não dispunha de uma equipe para combatê-lo. O presidente da Fema, Moacir Pires, limitou-se a mandar uma carta aos produtores rurais, tratando-os como parceiros e pedindo para que não ateassem fogo durante o período de proibição de queimadas, de 15 de julho a 15 de setembro.
Apesar de algumas diferenças no discurso, o Ibama e a Fema também promovem trapalhadas juntos. Dois dias depois de terminado o período restritivo às queimadas, decidiram prorrogá-lo por prazo indeterminado, devido ao tempo seco e à falta de chuvas. Certamente os dois órgãos não desconheciam as condições climáticas dois dias antes, quando liberaram as queimadas. Pouco mais de uma semana após chamarem a mídia para anunciar a boa nova, o “prazo indeterminado” acabou, desta vez sem estardalhaço.
A maior parte dos incêndios ocorre nas regiões do Médio Norte e do Araguaia, por onde avança a produção de soja. É nessa região que vem sendo detectado o maior número de casos de trabalho escravo em Mato Grosso. Em apenas seis operações até julho de 2004, com 19 fazendas vistoriadas, a Delegacia Regional do Trabalho encontrou 583 trabalhadores em situação irregular e libertou 259 que viviam em condições de escravidão. Sueko Cecília Uski, chefe de Operacionalização e Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, diz que o pequeno número de inspeções em Mato Grosso se deve à escassez de denúncias. “Os trabalhadores denunciam menos porque têm mais medo. Mas a gente ouve que em Mato Grosso há uma situação bastante crítica, principalmente porque ali tem muita queimada e desmatamento. Eles usam os trabalhadores para preparar a terra. Quem desmata são trabalhadores aliciados”.
Por meio de sua assessoria, a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Agrário reconhece a existência de trabalho escravo, mas acha que a Delegacia Regional do Trabalho (DRT) precisa rever os critérios de fiscalização. Por isso solicitou a interrupção das inspeções no estado. Valdinei Arruda, coordenador de Fiscalização Rural da DRT, diz que as autoridades temiam que a safra deste ano pudesse ser prejudicada. “Eles pediram um prazo para fazer um trabalho de orientação junto aos fazendeiros”. Mas as fiscalizações continuam, devagar e sempre. No começo de outubro, foi decretada a prisão preventiva de um fazendeiro e libertados 136 trabalhadores.
A impressão é de que os recordes positivos na produção agrícola dependem de recordes negativos nas áreas ambiental e trabalhista. Este ano, a safra de grãos alcançou os maiores números já registrados e a de algodão teve aumento de mais de 60%.
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