Reportagens

Aviso: A floresta lotou

O maior aglomerado de espécies em extinção do Brasil corre risco de desaparecer. Murici, em Alagoas, já virou área de proteção, mas talvez seja tarde.

Tim Hirsch ·
12 de novembro de 2004 · 20 anos atrás

Se a Mata Atlântica é como a Arca de Noé atravessando uma tempestade, imagine que uma parte da sua preciosa carga foi prensada em um barco salva-vidas furado e abandonada à própria sorte no mar revolto.

É mais ou menos essa a situação da floresta de Murici, no oeste de Alagoas, um dos poucos remanescentes do vibrante ecossistema encontrado pelos portugueses quando eles colonizaram o litoral do nordeste há 500 anos.

Na prática, o termo Mata Atlântica refere-se a um mosaico de diferentes ecossistemas influenciados por contrastantes condições de clima, latitude e altitude. Recentemente, cientistas especializados em conservação a dividiram em várias ecorregiões, onde a evolução produziu um grande número de espécies que só existem ali.

Uma dessas áreas, conhecida como Ecorregião das Florestas Costeiras de Pernambuco, é um pedaço de floresta que no passado se estendia pela margem norte do rio São Francisco até o Rio Grande do Norte. Cinco séculos de desmatamento para abrir espaço para plantações de cana-de-açúcar e pastos deixaram apenas alguns arquipélagos minúsculos de florestas. Murici é um dos maiores fragmentos dessa mata. E ainda serve de refúgio para um ecossistema inteiro. Os seis mil hectares de mata densa no alto dos morros do interior de Alagoas destacam-se dos extensos campos pelados da região e, de alguma maneira, conseguiram abrigar uma impressionante variedade de animais e plantas.

Nada menos que 289 espécies de pássaros foram registradas nesta pequena área, sendo que 13 estão ameaçadas de extinção mundial – o equivalente a 11% de todos os tipos de aves ameaçados no Brasil. Algumas foram identificadas ali pela primeira vez na década de 80, como a Limpa-folha-do-nordeste (Philydor novaesi) e a Choquinha-de-Alagoas (Myrmotherula snow).

Além da exuberante fauna aviária, a floresta comporta uma teia de lagartos, cobras, sapos, borboletas, bromélias,orquídeas e palmeiras. Muitas espécies são endêmicas e, de vez em quando, botânicos e zoólogos fazem novas descobertas.

Mesmo assim, apenas em 2001 essa jóia da natureza foi agraciada com a proteção do governo e o título de Estação Ecológica. Há anos grupos ambientais liderados pela Birdlife International e a Sociedade Nordestina de Ecologia (SNE) exigiam isso. Jaqueline Goerck, da equipe brasileira da Birdlife International, está convencida da importância do local. “Murici é uma das florestas mais importantes da América do Sul e talvez do mundo, se for considerado o número de espécies ameaçadas de extinção que ela abriga. As pessoas pensam: por que deveríamos proteger alguns poucos milhares de hectares aqui se é possível proteger uma região muito maior na Amazônia? Mas você pode preservar milhões de hectares na Amazônia e não conseguir proteger tantas espécies ameaçadas de extinção com está sendo feito nesta pequena área do nordeste brasileiro”.

Apesar do status de área protegida, a floresta ainda está nas mãos de proprietários particulares e não se livrou das pressões que a ameaçam. Somam-se à fragilidade dessa ilha de natureza atividades madeireiras, caça de pássaros, tráfico de animais e o risco de incêndio por causa das queimadas nas plantações de cana-de-açúcar vizinhas.

O desafio de salvar Murici tornou-se ainda maior por causa do crescente número de pessoas na região. Recentemente foram assentados ali trabalhadores sem-terra, o que elevou a população local para mais de 2 mil habitantes. Há pouco tempo, um estudo revelou que um assentamento de 364 famílias consome 20 caminhões lotados de madeira em um ano. No começo do ano, oito ONGs assinaram um pacto para priorizar os esforços para combater essas pressões. Vários projetos estão sendo desenvolvidos para dar melhor sorte à floresta. O caminho seria uma combinação de educação, novos incentivos para conservação e uma rigidez maior.

Testemunhei um desses projetos na Fazenda Boa Sorte, na borda da floresta, onde há um viveiro de plantas nativas. Moradores de uma comunidade local são contratados para plantar as espécies em pastos desativados na tentativa de juntar fragmentos degradados de floresta. Mesmo neste exemplo positivo, a tensão existente na região fica clara quando um representante do Ibama visita a fazenda. Ângela Maria Borges dos Santos, que trabalha na atividade de reflorestamento, reclama para o visitante que denunciar ações ilegais na floresta pode colocar a vida de sua família em perigo. “O Ibama vai lá e olha, de longe. Não vai pessoalmente. A gente não vai arriscar a nossa vida. Deve haver mais interesse do Ibama nisso aí. Porque são eles que devem ir, não é a gente. A minha vida não está pra ir na boca de espingarda de maneira nenhuma”.

Analista ambiental do Ibama na região, Jaílton Fernandes admite que é um grande desafio impor a lei com tão poucos recursos e funcionários para fiscalizar uma área tão extensa. Mas afirma que o Ibama está aumentando a presença permanente em Murici. Segundo ele, a maior dificuldade é mudar o comportamento da população local em relação à floresta. Jaílton é cético em relação à consciência ambiental dos moradores. “O Incra pensa na parte dele, de assentar o povo, e não pensa no meio ambiente. Não só aqui em Alagoas, é um problema no Brasil. O Incra esquece da reserva legal, esquece da mata, esquece de tudo. Depois é que a gente vai resolver os problemas. Isso dificulta muito a atuação do Ibama nessas áreas.”

O projeto está, pelo menos, unindo os proprietários de terra e comunidades pobres em um esforço para valorizar a floresta única que eles têm no quintal de casa. Entre as soluções cogitadas estão o ecoturismo e o uso de crédito de carbono conforme previsto no Protocolo de Kyoto, que permitirá recompensar os fazendeiros que preservarem a floresta e aumentarem a quantidade de CO2 absorvido da atmosfera.

Mas mesmo que os esforços dêem certo e livrem Murici da interferência humana, há dúvidas se um ecossistema tão pequeno é capaz de manter a sua diversidade no longo prazo, admite Jaqueline Goerck, da Birdlife International: “Tenho que ser realista e dizer que talvez nós tenhamos chegado tarde na região, que sofre tantas pressões e vem sofrendo um longo período de degradação. As espécies estão todas lá, nós podemos ouvi-las, estão sendo monitoradas, mas estamos com receio que algumas populações estejam muito reduzidas para existirem por um longo tempo”.

Ouvi temores parecidos em outro significativo remanescente da floresta nordestina a uma hora de viagem de Murici, em Usina Serra Grande, na divisa com Pernambuco. Lá, a companhia de açúcar está trabalhando em parceria com a universidade do estado e outros grupos para preservar milhares de hectares dentro da sua propriedade. O que inclui a reintrodução de grandes mamíferos como a capivara e a anta para tentar completar o antigo ecossistema local.

Conversando comigo no histórico escritório da fábrica, construída em 1880, o administrador da propriedade em Serra Grande, José Bakker, admitiu que junto com o desejo de colaborar com a preservação da natureza há também um interesse próprio no programa, uma vez que florestas bem conservadas ajudam a proteger mananciais numa região seca onde a água é fundamental para a produção de cana-de-açúcar.

Mas Bakker ressalta que esses esforços podem ser insuficientes por causa do “efeito das bordas”, em que florestas isoladas tendem a morrer de fora para dentro. Ele afirma que apenas um grande esforço envolvendo todos os níveis do governo para unir os fragmentos de florestas remanescentes será capaz de garantir o futuro das espécies que nelas vivem. “Não há vontade política, e nós não temos tempo. Temos que agir o mais rápido possível porque senão é como plantar jardins em vez de preservar a natureza” disse Bakker.

A idéia de construir corredores ecológicos para ampliar a abrangência e a diversidade dessas espécies está sendo defendida arduamente por grupos de conservação, mas ao viajar por Alagoas a escala do trabalho se torna óbvia.

Um dos milagres da Mata Atlântica é que, apesar de toda a pressão, sabe-se apenas de uma espécie de pássaro que se tornou extinta nos últimos anos. Foi a alagoana mutum-do-nordeste (Mitu mitu), que vagava pelas florestas baixas que ficam não muito longe de Murici.

Mas na semana em que a União Mundial para a Natureza (UICN) publicou a última lista mundial de espécies ameaçadas, essas florestas demonstram graficamente como é fácil para os atuais dados sofrerem uma enxurrada de novas espécies. O que nos traz de volta à imagem do barco salva-vidas furado sendo jogado de um lado para o outro pelo mar revolto. Se as espécies de Murici conseguirem sobreviver em condições tão precárias a essa tempestade, graças aos tardios esforços para salvá-las, pode ser um sinal da habilidade humana de prevenir o catastrófico naufrágio da própria Arca da vida.

* Tim Hirsch é correspondente de meio ambiente da BBC News desde 1997 e está de férias sabáticas no Brasil, onde trabalha como freelancer. Formou-se em história na Universidade de Cambridge.

Leia este artigo na versão original em inglês.

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