Reportagens

Liqüida-se um Estado

Em conluio com autoridades locais, a multinacional Bunge bota abaixo o Cerrado para alimentar sua usina de soja no Piauí. E ainda tem 100% de isenção fiscal.

Carolina Mourão ·
2 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás

Todos os dias, cerca de 40 caminhões de lenha do Cerrado chegam ao pequeno município de Uruçuí, a 450 quilômetros de Teresina, Piauí. Eles vão alimentar os fornos da multinacional argentina Bunge Alimentos. A empresa tem 12 fábricas de processamento de soja no Brasil. A que fica no sul do Piauí é responsável, sozinha, pelo desmatamento de mais de 50% do Cerrado do estado.

A região está peneirada por clareiras que se perdem no horizonte porque a empresa se recusa a mudar o modelo energético. Nenhuma novidade, já que por todo país, absurdamente, o Cerrado é considerado terreno disponível para desmatamento, cuja lenha, de árvores como o Ipê, é que gera energia para beneficiar a soja. Mas, no caso, o Cerrado é de transição para a caatinga, raríssimo e completamente desconhecido pelos cientistas.

Formas alternativas de produção de energia já existem na prática para este fim, equivalentes no preço e na eficiência, mas a multinacional se recusa a promover a alteração. Faz mais: ameaça covardemente deixar o estado – para desespero da rede de corrupção formada por autoridades estaduais e federais comprometidas até o pescoço com a empresa. Estranhamente, a Bunge não paga impostos.

A matriz energética para o processamento da soja já pode ser substituída. O Petcoke – resíduo de petróleo – é equivalente e muito utilizado por uma indústria cimenteira instalada na mesma região. Um dos argumentos da Bunge para a utilização da lenha é a localização e o difícil acesso à fábrica, que inviabilizaria outra forma de geração de energia. O Petcoke, de tão popular e fácil acesso, é utilizado até em padarias no nordeste do país. A Figener, uma empresa de consultoria de matrizes energéticas, afirma que o resíduo do Petcoke agride menos o meio ambiente e pode ser totalmente aproveitado para correção de solo porque contém calcário.

Desde a sua posse contrário ao modelo energético adotado pela Bunge no Piauí, o então diretor de Parques e Florestas da Secretaria de Meio Ambiente do Estado, Judson Barros, afirma receber constantemente ameaças de morte e chegou a perder o cargo por conta da postura que adotou. Quando assumiu a pasta no início do governo do PT, não conseguiu impedir que a Bunge trabalhasse sem a licença ambiental, que foi “arranjada” há um ano, para encerrar a polêmica em torno do assunto. Assim, um Estudo de Impacto Ambiental padrão foi imediatamente aprovado pelo governo do Estado e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama do Piauí.

Ano passado, uma ação pública que já acumula 16 volumes foi aberta contra a empresa pela Funáguas (Fundação Águas do Piauí), cujo presidente é o ex-secretário de Meio Ambiente. Desde que comprou essa briga, Judson Barros também tem sofrido represálias da população de Uruçuí, cidade onde nasceu.

Para a população local e até para a opinião pública do Estado, a vinda da Bunge foi um grande negócio, que se resume, na prática, a pequenas divisas geradas para o comércio da região, além de um chamariz para novos investidores no Piauí. Compreensível. Antes da chegada da Bunge, o sul do Piauí era completamente abandonado pelas autoridades e a população pulsava uma miséria sem perspectivas, como ainda acontece. O lenhadores que trabalham para a Graúna – empresa terceirizada pela Bunge que responde pela lenha retirada, recebem 50 centavos por metro cúbico da matéria-prima. Um bom negócio por lá, onde o índice de desemprego é crítico. Para estas pessoas, proporcionalmente, é melhor retirar lenha do Cerrado no sul do Piauí do que tentar a sorte em um garimpo. Portanto, uma oportunidade de trabalho sem precedentes.

A preocupação ambiental parece preciosismo quando um estado carente de investimentos como o Piauí precisa se recuperar de um atraso econômico histórico. A chegada da multinacional no Estado foi inegavelmente importante como vitrine. Sabendo da necessidade da presença da empresa, a Bunge simplesmente adota o modelo que prefere, manda e desmanda nas regras. A empresa afirma que a lenha é retirada apenas das áreas que mais tarde serão ocupadas pelos grãos, mas o desmatamento vai além das regiões de plantio. De acordo com o Ministério Público, a empresa precisa de 217,5 milhões de metros cúbicos estéreis de lenha por ano, muito acima dos 120 mil metros cúbicos declarados pela Bunge, referentes às áreas preparadas para cultivo.

Além disso, o desmatamento também atinge afluentes do rio Parnaíba, que banham o Estado e correm dentro da área de Cerrado. O fluxo do rio já foi reduzido e a reprodução dos peixes está mais difícil. A mudança foi sentida pelos pescadores. O Balsas, principal afluente do Parnaíba pelo Maranhão, e o Uruçuí Preto, pelo Piauí, estão cercados até a mata ciliar pela soja da Bunge.

Por um lapso, a Bunge juntou aos autos do processo uma cópia com todas as Guias de Autorização de Desmatamento fornecidas pelo Ibama. Surpreendentemente, as Guias apresentadas deram conta de que a empresa estava “formalmente” adquirindo lenha de localidades distantes até mil quilômetros da sede, onde não existe cultura de soja. O absurdo em alguns casos levantou a suspeita de um provável “tráfico” ilegal de Guias de Autorização de Desmatamento, já que é praticamente impossível que a lenha consumida pela empresa esteja sendo de fato cortada e transportada em áreas tão distantes, o que inviabilizaria a logística e o custo da lenha.

Um acordo foi então fechado em agosto de 2004 entre a multinacional e representantes do Ministério Público, com o governo do Estado e com a Mineração Graúna, que paga os lenhadores, para pôr fim à ação pública aberta no ano passado pela Funáguas contra a empresa. Agora, por mais seis anos, a multinacional argentina tem autorização para usar mata nativa para alimentar os fornos de Uruçuí. Até lá não haverá mais Cerrado na região. Pelo acordo, mesmo que a lenha seja insuficiente, a empresa não vai ser punida, já que a responsabilidade pela retirada da matéria-prima é de outra empresa, a Graúna.

Segundo Judson Barros, o procurador da República Tranvanvan Feitosa, do Ministério Público Federal, se posicionava contra o uso da lenha, mas “estranhamente mudou de opinião depois de uma misteriosa visita do governador”.

A empresa Mineradora Graúna, que assume a responsabilidade pela retirada da lenha, pertence a Sergio Bortolozi, um conhecido financiador de campanhas políticas no Piauí. Coincidências assim são comuns nesta história. Ficou constatado que todo o procedimento que antecedeu o licenciamento para a derrubada do Cerrado não passava de uma operação entre familiares, envolvendo dirigentes do Ibama – Almir Lima, responsável pelo atestado que garantiu a procedência legal da lenha – e os responsáveis pela elaboração do EIA/RIMA da Bunge – entre eles, Iracildes Moura Fé Lima, casada com Almir, citados em denúncia da revista Isto É. Almir hoje está aposentado precocemente por conta das investigações de irregularidades iniciadas pela Procuradoria do Ibama.

Dez ou doze produtores concentram o plantio e a renda obtida pela produção de soja em Uruçuí. Todo o sistema de semeadura e colheita do grão é mecanizado e conta com tecnologia de ponta. Apenas 120 empregados estão envolvidos no processo que envolve quase meio bilhão de reais de investimentos não revertidos para o Estado, já que a multinacional tem 100% de isenção fiscal por 15 anos.

Se o ICMS e o IPI da Bunge Alimentos no Piauí fossem recolhidos, o problema do funcionalismo público do Estado estaria resolvido. O lucro previsto para cada ano pela empresa é de 1 bilhão de reais. A contradição é que a fome em Uruçuí é vizinha dos campos de soja. Não há dúvidas sobre a dureza da vida de quem mora por lá. Sangue é o nome do povoado miserável que cerca a região de plantio.

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