Os deputados da Assembléia Legislativa do Pará receberão do governo estadual, nesta segunda semana de dezembro, um anteprojeto de lei de reordenamento da ocupação do solo com base em um novo macrozoneamento do território do estado. Embora a proposta tenha o objetivo de dar um choque de ordem na bagunça da estrutura fundiária tão comum aos estados da região Norte do Brasil, ela terá, se for aprovada, um inegável impacto na preservação do meio ambiente. O texto do anteprojeto reserva pouco mais de 60% do território paraense para a preservação ambiental, com unidades de conservação definidas pelo Executivo. Convocados extraordinariamente para examinar a proposta, os deputados têm a obrigação de votá-la até o dia 20 de dezembro.
É uma mudança de rumo radical. O que o anteprojeto pretende é virar de cabeça para baixo a história recente da expansão da fronteira econômica no estado, que nas últimas três décadas, por onde passou, deixou um rastro de grilagem de terras, devastação e miséria. Por trás dessa virada, há um incentivo econômico. O governo estadual discute um financiamento com o Banco Mundial e uma das exigências feitas para liberar o dinheiro é justamente a aprovação do macrozoneamento do estado. Mas essa não é a razão fundamental, como explica o secretário de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Pará, Gabriel Guerreiro (foto). O que move a mudança, no fundo, é a percepção de que o modelo de desenvolvimento baseado no avanço ininterrupto sobre as áreas de floresta está esgotado.
“Pode anotar”, diz Guerreiro. “O projeto vai passar”. O que dá a ele tanta confiança, além do apoio do governador Simão Jatene (PSDB) à idéia, é a certeza, escorada em 11 meses de estudos para preparar o anteprojeto, de que a lógica que vem regendo a atividade econômica no estado é furada. “É uma maluquice continuar expandindo a fronteira para o Oeste”, afirma Guerreiro. “Não há Eldorado para lá. O resto do estado vai acabar igualzinho ao que está se deixando para trás, uma zona empobrecida, devastada, tomada por capoeiras, sem qualquer perspectiva de desenvolvimento”. Guerreiro acredita que, entrando em vigor, a lei desviará os investimentos que empurram a ocupação humana em direção à fronteira com o Amazonas de volta ao Leste do estado, onde ela já está estabilizada.
Da sanha disciplinadora da ocupação do solo encampada pelo governo, não escapará nem a Terra do Meio, região do estado onde nesse momento a devastação da floresta e a grilagem de terras ocorrem com maior intensidade e violência. O anteprojeto prevê a destinação de 34% de seus 8,8 milhões de hectares para a criação de unidades de proteção integral. Outros 22% serão transformados em reservas de desenvolvimento sustentável e florestas estaduais, nas quais a atividade econômica é permitida desde que tenha como base o manejo dos recursos da floresta. Dos 44% que sobram, quase 20% já estão protegidos como florestas nacionais e reservas extrativistas e 8% demarcados como terras indígenas.
Na parte sudoeste da Terra do Meio ficam os 16% que faltam para fechar a conta. Equivalem a 1,5 milhão de hectares onde a presença humana tornou-se avassaladora na última década, e por isso devem virar apenas uma Área de Proteção Ambiental. “A idéia é ceder nos locais onde a ocupação é irreversível para garantir a preservação do que ainda resta de floresta na região”, explica Adalberto Veríssimo (à direita na foto, com Guerreiro), do Imazon, ONG que está assessorando Guerreiro na definição das Unidades de Conservação que serão a marca futura da Terra do Meio.
No norte do estado, acima do rio Trombetas, o macrozoneamento contempla uma proposta ambiciosa do ponto de vista ambiental. O secretário quer redesenhar o traçado de duas áreas de proteção federais — uma Reserva Biológica e uma Floresta Estadual — retirando delas comunidades antigas, estabelecidas há mais de dois séculos na margem do Trombetas. Essas reservas seriam incorporadas a um mosaico de unidades de conservação estaduais para formar um corredor de proteção que a Oeste encosta na fronteira com Roraima e a Leste estica-se até o Amapá. No total, são 244 mil km2, uma área do tamanho do estado de São Paulo. Ao norte desta faixa, serão implantadas unidades de proteção integral interligando as terras indígenas que já existem na região. Ao sul, serão criados quase 57 mil Km2 de Florestas Estaduais e unidades de uso sustentável. Toda essa imensa região da calha norte do Pará seria transformada na maior reserva de biosfera do planeta.
“No Brasil nunca se fez nada desse porte”, diz Veríssimo, dando a dimensão das intenções do governo do Pará. “O estado não tem outra saída”, afirma o secretário Guerreiro. Essa convicção ele forjou ao longo dos últimos 30 anos de sua vida no estado, primeiro fazendo pesquisas como geólogo e depois numa carreira política onde despontam um mandato como deputado federal e três como deputado estadual. “O macrozoneamento dimensiona de uma vez por todas o espaço onde o governo deve atuar com suas políticas públicas”, explica. Hoje, ele tem que atuar em tantas áreas e em tantas direções que sua ação acaba diluída e não tem qualquer impacto. Com a aprovação do macrozoneamento, ele poderá se concentrar nos 40% do estado onde há alta densidade populacional.
Estudos do solo, do clima e da cobertura de florestas, feitos com o auxílio de imagens de satélite de todo o estado do Pará, comprovam que a expansão da fronteira rumo a Oeste não vai encontrar nada de diferente do que já se achou no Leste do estado, onde sua herança é a destruição e a estagnação econômica. “O clima é igual, o solo é igual, a vegetação é igual e a hidrografia é igual em todo o território estadual. Não há nenhuma novidade econômica onde ainda existe a floresta”, diz Guerreiro. “É preciso desenvolver a fronteira que já foi aberta e não criar novas fronteiras que o passado ensina que não terão futuro”. O secretário admite que o plano de macrozoneamento enfrentou pesadas resistências entre o empresariado e os políticos estaduais.
Afinal, para gente que se criou explorando ao máximo recursos naturais em terras públicas, é difícil engolir que 60% do território estadual ficarão salvaguardados de sua ambição econômica. Mas para eles, Guerreiro tem uma conta devastadora. Os quase 40% que sobram livres para a exploração econômica e a ocupação humana somam 500 mil km2 de território. “São dois São Paulos para um contingente de apenas 7 milhões de habitantes. Não é possível que isso não seja suficiente”, diz. Os planos do governo para essa área são tão grandiosos quanto para o restante do território que será destinado a áreas de proteção. Vai mapeá-la a partir de imagens de satélite dispostas em 211 folhas em escala de 1 para 100 mil. Nessa proporção, nada escapará aos olhos do pessoal do planejamento do governo estadual.
Essa lupa de satélite já foi passada por cima de algumas áreas e revelaram inclusive que mesmo no Leste do Pará, tão devastado pela ocupação humana, ainda sobrevivem intactas algumas áreas de floresta. Nessa região, Guerreiro diz que o governo pretende ordenar os investimentos de modo a criar atividades econômicas estáveis e com escala capaz de gerar milhares de empregos. A ocupação do solo será regulada pelo Código Florestal Brasileiro, o que faz Veríssimo, do Imazon, antever a possibilidade de proprietários de empreendimentos agropecuários fazerem pressão para rediscutir a determinação de que fazendas precisam preservar 80% de suas áreas intocadas.
Muitos fazendeiros acham que essa exigência torna sua atividade economicamente inviável. “Dentro de um quadro de reordenamento da ocupação e de separação de mais de 60% do território do estado para a preservação e o manejo, a rediscussão dessa exigência pode ser não apenas aceitável, mas exeqüível”, diz. Para a região destinada à preservação, Guerreiro imagina atividades econômicas sustentáveis, como a extração de madeira, em regime de concessão e debaixo de pesada regulamentação. Lá, o uso do solo será regido pelo status legal de cada unidade de conservação. A decisão do governo paraense de fazer um macrozoneamento de seu território com base em unidades de conservação confirma uma tendência entre os governos da região de apelarem às leis de proteção do meio ambiente não tanto para preservar, embora esta seja uma conseqüência óbvia da sua adoção, mas para dar ordem à bagunça em que se transformou a ocupação do solo na região amazônica.
No Amazonas, por exemplo, há um decreto esperando a assinatura do governador Eduardo Braga que cria um mosaico de unidades de conservação no sul do estado com 3,2 milhões de hectares. A previsão é que Braga coloque seu jamegão na papelada em janeiro. O mosaico vai proteger um bocado de biodiversidade. Mas num primeiro momento, seu principal impacto será o de impedir a grilagem de terras por gente que está chegando de Mato Grosso, empurrada pela expansão da soja. Unidades de conservação aumentam exponencialmente os custos da grilagem e da exploração descontrolada dos recursos naturais.
Primeiro porque impedem qualquer tentativa de regularizar terras ilegalmente ocupadas. E depois, porque junto com elas vem sempre um aumento da fiscalização. Como diz o secretário Guerreiro, a implantação de unidades de conservação é a única saída que restou aos governos da região, depois de décadas de ausência de qualquer autoridade em grandes extensões territoriais, para impor um marco regulatório que de fato discipline o uso do solo.
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