Reportagens

Papo de bicho homem

Na Terra do Meio, no Pará, as pessoas só querem saber que compensação terão quando lá forem criadas unidades de proteção. O macrozoneamento do estado foi adiado.

Carolina Elia ·
23 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás

A votação do plano de Macrozoneamento do Pará pela Assembléia Legislativa, prometida para antes do Natal, ficou para a primeira semana de janeiro. O projeto de lei reestrutura a organização fundiária de todo território e reserva 63% das terras para áreas de unidades de conservação. O adiamento frustrou a expectativa do governo estadual de deixar tudo pronto para começar 2005 decretando a criação de unidades de proteção integral e de uso sustentável. Mas isso ainda pode acontecer, só que pelo lado do governo federal. No começo desta semana foram realizadas duas audiências públicas na região da Terra do Meio, onde podem ser criadas 2 unidades de proteção integral ainda este ano.

As consultas públicas aconteceram dia 20 em Altamira e dia 21 em São Félix do Xingu. Os dois municípios tiveram menos de uma semana para se organizar e reunir o maior número de pessoas possível para debater o projeto. A pressa foi imposta pelo Ministério do Meio Ambiente, que quer computar as áreas de proteção integral na sua magra lista de feitos de 2004. O governo do estado não quis ficar para trás. Afinal trata-se de terras estaduais que estão a um triz de parar nas mãos da União, como aconteceu há poucos meses com a criação das Reservas de Desenvolvimento Sustentável Verde para Sempre e Riozinho do Anfrisio. Por isso propôs um acordo de cavaleiros. Em relação à Terra do Meio, o governo federal decretaria as áreas de proteção integral e o Pará as de uso sustentável, que podem ter atividades econômicas. Esse acordo vale até dia 31 de dezembro. Se o presidente Lula não assinar a criação dos parques, o governo do estado não descarta a possibilidade de criá-los em janeiro.

Esse acordo velado ficou claro nas audiências públicas. Em Altamira, tanto os representantes do governo federal quanto os do governo estadual se preocuparam em discutir a proposta de criação de um Parque Nacional e uma estação ecológica na Terra do Meio (área verde no mapa), como explicitava o cartaz trazido pelo pessoal do Ministério do Meio Ambiente. Em São Félix do Xingu, o debate incluiu as áreas de uso sustentável (área azul no mapa) e houve a preocupação de se explicar a intenção do governo estadual de criar uma Área de Proteção Ambiental (APA) no município. Essa categoria é a mais branda, permite vários tipos de atividades econômicas dentro de seus limites e não prevê expropriações. Enquanto o governo federal tem urgência em criar a área de proteção integral na região, que vai ajudar a deter a grilagem de terras e a preservar uma floresta em bom estado de conservação, o estado quer decretar a APA o mais rápido possível e organizar a bagunça ali existente, que está atrapalhando um empréstimo fechado com o Banco Mundial. São Félix do Xingu é recordista em queimadas, desmatamentos e grilagens.

Existia um clima de tensão em torno das audiências. Em São Félix havia o receio de que os pecuaristas e grileiros nem permitissem o começo da conversa. Em Altamira, os pecuaristas e madeireiros chiaram, mas não atrapalharam a consulta. Antes da audiência, os líderes de cada classe se reuniram com o deputado estadual Airton Faleiro (PT) para debater a proposta do governo estadual e pensar uma contra-proposta. “Quanto mais próximo chegarmos de um consenso melhor. Aprovar o parque sem o apoio da população é deixar espaço para depredadores atuarem.” justificou Airton.

Na audiência, a população parecia afim de aceitar as idéias dos governos desde que recebesse compensações. Alguns sugeriram que o limite de desmatamento em cada propriedade aumentasse de 20% para 50%, já que uma parte da região será transformada em parque nacional e estação ecológica, os tipos mais restritivos de unidades de conservação. Outros pediram para que as áreas reservadas para uso sustentável nas margens dos rios Xingu e Iriri fossem ampliadas de 10km para pelo menos 20 km de extensão, o que reduziria a unidade de proteção integral. Todos aproveitaram para reclamar da ausência do estado na região e disseram que antes das onças e dos micos-leões dourados, deveria vir o bicho homem.

A consulta em Altamira também foi marcada por protestos de moradores de regiões ribeirinhas, que foram expulsos das terras onde moravam por grileiros. Eles narraram casos de casas incendiadas, ameaças de morte e de policiais militares trabalhando a mando dos grileiros. Pelo projeto, as famílias tradicionais voltariam para a região e ficariam nas áreas reservadas para uso sustentável, onde alguns tipos de atividades econômicas, principalmente as extrativistas, são permitidos.

Em São Félix do Xingu, as histórias e argumentos foram bastante parecidos, mas o tom foi diferente. Primeiro, havia o prefeito do município, o prefeito eleito e vereadores pressionando por compensações. O número de participantes também era bem maior e as pessoas estavam mais desconfiadas das intenções do governo federal. Além de acusarem o governo de vender a Amazônia e de tentar frear o desenvolvimento da região, um representante dos pecuaristas soltou: “ Isso que vocês tão apresentando é uma proposta ou uma imposição? Nunca vi uma equipe do governo federal ou estadual vir aqui para trazer proposta para preservar a vida do homem, e não meia dúzia de cachoeiras. Acho que o objetivo é estancar o desenvolvimento do Pará. Se a verdadeira preocupação fosse o meio ambiente, vocês já teriam feito muito mais.“

Um dos representantes do governo do estado na região, Crisomar Lobato, lembrou que a APA terá 1,7 milhões de he só para o homem , mas o argumento não convenceu. Na platéia um agricultor simples pensou alto. “Só se for na sua cabeça.” E é por aí mesmo. Para essas pessoas locais, a idéia de preservar a floresta é uma coisa incompreensível. Mais difícil é enxergar o desenvolvimento a que os moradores se referem. São Félix do Xingu tem quase que uma cabeça de gado para cada 2 hectares de terra , vive o fim do ciclo do mogno, é campeão de desmatamento e nenhuma dessas atividades levou o município a ter saneamento básico, boas escolas ou hospitais. É tudo muito precário: escola funcionando em galpão de igreja, valas, fossas, um hospital municipal capenga e endemias de malária e hanseníase.

O próprio governo do estado reconhece a falta da presença do poder público nessas áreas, mas também é bem realista. O secretário de Ciência , Tecnologia e Meio Ambiente do Pará, Gabriel Guerreiro, vai na ferida: “ Não faz sentido abrir mais fronteira fundiária, não temos orçamento estadual para segui-la. Temos que meter na cabeça que o que precisamos fazer é investir na área que já mexemos. Desenvolver usando essas áreas de forma sustentável, inteligente.” O projeto de macrozonemanto cumpre exatamente o papel de limitar essas fronteiras. Ao determinar as áreas do estado que em curto ou médio prazo serão transformadas em unidades de proteção integral, o macrozonemanto desanima o grileiro a invadi-las, já que ele em breve será expulso sem direito a indenização.

A questão da indenização foi um dos pontos mais debatidos nas audiências, mas principalmente em são Felix do Xingu. Ninguém pode morar em Unidades de Proteção Integral ou em alguns tipos de unidades de uso sustentável, como as reservas extrativistas. Na platéia, a frase que mais se ouvia era “Você ta dentro ou tá fora?” Todos queriam saber se as suas terras estavam dentro da área de proteção integral. Independentemente de quem criar as unidades de proteção na região, seja o governo federal ou estadual, o macrozoneamento determina que 37% da Terra do Meio estão reservados para unidades de proteção integral e 36% para unidades de uso sustentável. Fora isso, 27% das terras já são ou terras indígenas ou áreas de preservação existentes. Como falou um fundiário ao olhar o mapa: “Acabou, não sobrou nada.” Exato, acabou a farra; pelo menos no papel.

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