O ministério dos Transportes está terminando o edital de licitação para o asfaltamento do último trecho de terra da BR-163, conhecida como Cuiabá-Santarém, e seus técnicos trabalham com certa pressa. A intenção do governo federal é lançar a concorrência para a obra logo depois do carnaval. A estrada, com 1765 quilômetros de extensão, foi aberta no início dos anos setenta pelo regime militar e asfaltada apenas pela metade, na parte que vai de Cuiabá e Guarantã do Norte, também no Mato Grosso. Foi vítima do esquecimento que contemplou outras obras da época do Brasil Grande, como a rodovia Transamazônica.
A expansão do cultivo da soja e a ideologia desenvolvimentista do governo Lula tiraram a BR-163 do ostracismo. Asfaltada, ela vira uma alternativa para escoar a produção de soja matogrossense pelo Pará. Mas, se não forem tomados cuidados adicionais, certamente acabará apressando o processo de desmatamento que já acontece na região cortada pela estrada. Se o cronograma da licitação for mantido, a esperança no ministério é que a obra, repartida em 8 lotes, comece ainda em julho deste ano. O maior entrave ao início dos trabalhos é a licença ambiental do Ibama, que ainda não foi concedida.
O órgão aguarda a complementação do estudo de impacto ambiental do asfaltamento para poder decidir se a libera ou não. A decisão de licitar a obra antes da obtenção da licença, semelhante à que foi tomada, como revelou o jornal Valor em sua edição de quinta-feira, pelo ministério da Integração Regional em relação à transposição do Rio São Francisco, mostra que o governo federal adotou a estratégia de acelerar a execução de seus projetos de infra-estrutura. Tecnicamente, não há nenhum impedimento legal à abertura de uma licitação antes da obtenção da licença do Ibama. Mas essa não era a prática anterior. E é uma medida de imprudência.
“Com a lei das Parcerias Público-Privadas aprovada no Congresso, não chega a ser surpreendente que o governo esteja pisando no acelerador”, diz Claudio Maretti, do WWF. É claro que isso preocupa as entidades sócio-ambientais que acompanham com lupa a novela do asfaltamento da BR-163. Elas sabem muito bem qual é o resultado da abertura de estradas oficiais na Amazônia sem a criação de uma estrutura para disciplinar a bagunça fundiária da região e conter o uso predatório de seus recursos naturais. Seu primeiro efeito é atrair uma imigração desordenada, que adentra a floresta abrindo estradas vicinais por onde os madeireiros clandestinos adentram a floresta.
Atrás deles vêm os grileiros e a pecuária e agricultura. “No princípio, isso gera uma sensação instantânea de riqueza”, lembra Ane Alencar, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. “Mas ao longo do tempo, ela produz apenas devastação e pobreza”. Ao longo do trecho da BR-163 que corta o Centro-Oeste do Pará, esses efeitos já são facilmente percebidos. A área virou um dos principais pólos madeireiros do estado e foco de conflitos agrários. O asfaltamento sem qualquer contrapartida para organizar a propriedade do solo e definir a que tipos de uso ele pode ser submetido só piora essa situação.
“O simples anúncio de que o asfalto vinha acelerou a degradação da área da BR-163”, diz Alencar. No município de Novo Progresso, onde a conversa sobre a chegada do asfalto coincidiu com a chegada do PT ao poder em Brasília, o desmatamento cresceu em 2003 3% em relação ao ano anterior. A pesquisadora até acha que na partida do projeto para pavimentar a estrada, o governo federal parecia genuinamente interessado em fazer as coisas de modo diferente. Sob o comando do gerentão de Lula, José Dirceu, a Casa Civil coordenou um grupo de trabalho de 14 ministérios que produziram um texto de 44 laudas chamado de Plano de Desenvolvimento Sustentável para a Área de Influência da BR-163.
Ele foi apresentado em julho do ano passado em consultas públicas realizadas em três municípios por onde passa o trecho da estrada que será asfaltado. Tinha mais pinta de protocolo de intenções do que plano para minorar o impacto sócioambiental da obra. O problema, aponta Alencar, é que do pouco que ele propunha de concreto, nada saiu realmente do papel. Por exemplo, ele falava na criação de fóruns municipais para discutir e acompanhar a evolução do projeto da obra. Mas por falta de apoio oficial, nenhum deles foi constituído. Também tocava na necessidade de se fazer um levantamento sobre a ocupação de terras na região e da implantação de unidades de conservação, para proteger pelo menos um naco da biodiversidade que estea ameaçada pela estrada.
Não se tem notícia de que algo foi feito em nenhuma das duas pontas. Na verdade, o governo federal até que fez uma coisa: criou uma Reserva Extrativista, a de Riozinho do Anfrísio, que fazia parte do plano original. Mas foi só. “A questão fundiária e a criação das Unidades de Conservação da Terra do Meio, no Pará, não foram realmete adiante”, reclama Alencar. Em novembro, 32 entidades se reuniram em Santarém para formar o Consórcio pelo Desenvolvimento Sócioambiental da BR-163. Seu objetivo era representar movimentos sociais e conservacionistas nas negociações sobre a implementação do projeto de asfaltamento.
Em dezembro, o Consórcio recebeu carta do Grupo de Trabalho Interministerial coordenado pela Casa Civil informando que as sugestões recebidas nas consultas públicas de julho de 2004 seriam finalmente incorporadas ao Plano original e reapresentadas às comunidades. Mas ninguém ainda viu qualquer papel. O Consórcio teme que o novo Plano lhes seja apresentado em cima da hora e que não haja tempo hábil para um exame detalhado do que ele contém, de modo a permitir a elaboração de contra-propostas.
Há uma sensação geral que o governo está correndo para poder apresentar fatos que amenizem o lançamento da licitação para pavimentar a estrada antes de obter a licença ambiental para a obra. Apresentar um novo Plano não é o único indício disso. Embora não saiba se a questão tem conexão com a BR-163 – “não tenho acompanhado o processo da estrada” – Maretti, do WWF, diz que o governo federal está acelerando o processo de criação de suas Unidades de Conservação na Terra do Meio. Sua entidade, que vem financiando as consultas públicas feitas nas comunidades que serão afetadas pelas novas áreas de proteção foi avisada pelo governo federal no início do ano para deixar a sua carteira à postos.
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