À frente do mega-projeto de transposição das águas do rio São Francisco, o ministro Ciro Gomes tem alguma experiência no assunto. Em 1993, quando era governador do Ceará, Ciro construiu o maior canal de transposição de águas fluviais da América Latina na época. Não foi exatamente um caso de sucesso.
O Canal do Trabalhador, com seus 115 km de extensão ligando o rio Jaguaribe à Região Metropolitana de Fortaleza, está carente de manutenção e reparos. Em alguns trechos, a água vaza. Em outros, simplesmente seca sob o sol. Há também sinais de poluição, o que inviabiliza o consumo humano. Com tudo isso, a obra, que custou 48 milhões de dólares, tornou-se praticamente obsoleta, diante de novas alternativas de oferta de água para a população de Fortaleza e para a irrigação de plantações.
O projeto foi feito às pressas. Em maio de 93, o esgotamento das reservas dos açudes Pacoti, Riachão e Gavião anunciava um iminente colapso de abastecimento de água na capital cearense. O governador reagiu à crise rapidamente: decidiu trazer as águas do Jaguaribe até Fortaleza e convocou doze construtoras do Estado para cumprir a tarefa. No primeiro dia de junho, começava a obra. Em setembro, o Canal do Trabalhador já estava funcionando.
A transposição coletou águas dos açudes localizados ao longo dos rios Jaguaribe e Salgado (principalmente o açude de Orós), levando-as até o complexo Pacoti-Riachão por meio de um canal a céu aberto. No lugar de concreto, material normalmente utilizado para obras do gênero, optou-se pelo revestimento de uma manta asfáltica impermeável. Um ano após a inauguração, trechos da manta já se encontravam totalmente destruídos pela força da água. O calor intenso da região é apontado por especialistas como outro fator de desgaste. “Nem tudo o que é bom para a Europa é bom para o Brasil”, diz Caio Lóssio, engenheiro, geólogo e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Segundo ele, a utilização de mantas asfálticas é adotada em países europeus pela facilidade de sua aplicação. “Mas estamos numa região única no mundo, um semi-árido localizado na zona equatorial, onde o calor é muito maior”, argumenta. A justificativa para a manta asfáltica foi o caráter emergencial da obra.
Dois sifões também apresentaram problemas. As peças, que servem para transportar água de um trecho mais baixo para outro mais alto do percurso, foram construídas com um material chamado chapa corrugada armco. Resultado: enferrujaram e se tornaram imprestáveis para o uso, segundo a Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará. Acabaram substituídas, anos depois, por sifões de aço com revestimento anti-ferrugem. “Não daria tempo para fazer dois sifões de aço”, explicou o gerente da obra, Domingos Diógenes.
Sob o argumento de que o papel do canal era suprir o abastecimento da capital apenas em períodos de extrema seca, ele foi desativado em 1994, e só voltou a ser usado em uma estiagem ocorrida quatro anos depois, quando abasteceu cerca de 2/3 da demanda de Fortaleza.
Denúncias de que as águas do canal estavam poluindo o Rio Jaguaribe chegaram à Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) em 2002. O órgão alegou não ter dados concretos que comprovassem a poluição, mas a proliferação de algas ao longo de todo o canal, liberando toxinas nocivas, mostrava que a água estava imprópria para consumo humano. Para o professor Jeovah Meireles, do Departamento de Geografia da UFC, o surgimento das algas se deve a falhas na canalização, e sua decomposição diminui o oxigênio na água e asfixia os peixes.
Meireles lembra também que a falta de fiscalização no canal permite aos moradores abrir acessos improvisados sobre seu leito, como pontes e passagens rudimentares. Vacas, cavalos, jumentos e cabritos caem e acabam morrendo dentro do canal, pois não há cerca de proteção. O professor cobra uma ação integrada da manutenção física e do controle da vazão. “Na concepção original, aquela água ia servir para atividades agrícolas. Ela poderia ser usada para isso”, afirma.
“Isto já está acontecendo”, diz Cláudio Gesteira, técnico da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos (Cogerh) e responsável pela área administrativa do Canal do Trabalhador. “Ao longo do canal tem irrigação, horticultura, fruticultura. Ele não é usado para abastecer Fortaleza, mas nem por isso está abandonado ou desativado. A função maior dele é social”, defende Gesteira.
Não é o que diz o Diário do Nordeste, que no final de 2003 mandou repórteres percorrerem o Canal dos Trabalhadores para analisar suas condições. A reportagem afirma que as ações complementares divulgadas à época da construção não saíram do papel. Entre elas a criação de um pólo agroindustrial na região com irrigação de 25 mil hectares, o plantio de vegetação às margens do canal para garantir sua durabilidade e o desenvolvimento de piscicultura para detectar a contaminação da água por poluentes.
O jornal também relata sinais de assoreamento na altura do município de Cascavel, onde bancos de areia impediam a passagem da água. Nas proximidades da BR-304, à altura do km 12, foram abandonadas dezenas de tubos que deveriam ser utilizados na manutenção de trechos subterrâneos. O material estava sendo corroído pelo tempo. As obras de recuperação, orçadas então em R$ 11,9 milhões, sempre segundo o Diário do Nordeste, haviam sido interrompidas em meados de setembro de 2003. O secretário de Recursos Hídricos do Ceará, Edinardo Rodrigues, afirmou na época que aguardava 6,5 milhões do Governo Federal para retomar os trabalhos.
Apesar de tantos pesares – que incluem uma ação parada na Justiça local desde 97 contestando as irregularidades da obra – em suas duas campanhas presidenciais Ciro Gomes decantou o Canal dos Trabalhadores como um grande êxito político.
Procurado para falar de sua primeira experiência com transposição de águas, o ministro não foi encontrado. Seu chefe de gabinete, Pedro Brito, não quis comentar a obra, alegando que a responsabilidade pela manutenção e uso do Canal do Trabalhador é do estado do Ceará.
* Max Krichanã é jornalista, especialista em Psicopedagogia e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Trabalha no jornal O Povo.
Colaboraram Thiago Cafardo e Erivaldo Carvalho, da redação do O Povo.
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