Reportagens

A bioeconomia é POP: documentário apresenta a nova economia da floresta no Brasil e no mundo

‘Parceiros da Floresta’ revela a faceta dos negócios da nova economia e necessidade de parcerias entre os setores privado, público e as comunidades locais

Marcio Isensee e Sá ·
7 de junho de 2023 · 1 anos atrás

Qualquer pessoa que tenha assistido TV aberta nos últimos anos se deparou com uma gigantesca campanha de comunicação com o slogan O Agro é POP. No mundo mágico da propaganda, o agronegócio carece de falhas e garante a sobrevivência do país e do mundo, impregnando o imaginário da sociedade. Mas confrontado com a realidade, onde o desmatamento e perda de florestas úmidas no mundo estão em grande medida associadas ao setor, o slogan não para em pé e não aponta para um futuro sustentável.

O filme Parceiros da Floresta, dirigido por Fred Rahal Mauro a partir de ideia original do diretor com a jornalista Juliana Tinoco, apresenta iniciativas prósperas a partir de sistemas produtivos sustentáveis ao redor do mundo, demonstrando como é possível alcançar ganhos sociais, ambientais e econômicos com a conservação e a restauração de biomas nativos. “É meio que criar ‘o agro é pop’ da bioeconomia”, afirma Juliana Tinoco, idealizadora e roteirista do filme, “precisamos criar, imaginar e incorporar à identidade cultural, com formação de consumidor, essa essa visão que fortaleça as potencialidades [da economia da floresta] e se desenvolva para além de produtos de nicho”.  Em entrevista para ((o))eco, Juliana destaca ainda a importância de trazer o agronegócio “tradicional” para junto desse processo: “O agronegócio tem que fazer parte da economia da floresta, não se pode dissociar o agro dos ecossistemas florestais. Eles disputam o mesmo território e coincidem no mesmo território”.

Com uma linguagem apropriada para se tornar um filme POP, Parceiros da Floresta mostra também que é necessário entender que os países com florestas tropicais de todo o mundo estão no mesmo movimento e tem desafios muito semelhantes. Por isso o filme nos apresenta iniciativas em três continentes e uma diversidade enorme de produtos florestais possíveis. “A gente sempre cita castanha do Brasil e açaí como exemplos clássicos, mas a gama de produtos que não estão visíveis por não estarem chegando ao consumidor final das grandes cidades é imensa. Posso citar óleos vegetais de espécies como buriti, por exemplo, que hoje tem saída para a indústria cosmética”, comenta Juliana, que lidera o trabalho da Partnerships for Forests (P4F) na América Latina, programa do governo do Reino Unido que visa o desenvolvimento econômico sustentável em áreas de florestas a partir do suporte a iniciativas comerciais. A P4f é o financiador do filme.

A produção tem sua estreia marcada para a esta quarta-feira (07 de junho) na Mostra Ecofalante, em São Paulo. Após a exibição do filme será realizado um debate com atores e organizações que já participam e incentivam essa nova economia da floresta. Os detalhes podem ser acessados aqui.

Leia a entrevista na íntegra:

((o))eco: Queria que você começasse apresentando o filme para gente.

Juliana Tinoco: O filme nasce do seguinte contexto: ele foi financiado pelo programa Partnership for Forest, que é um programa do governo do Reino Unido com o objetivo de fortalecer e incentivar parcerias entre o setor público, privado, comunidades e organizações da sociedade civil em prol de preservação e restauração de florestas. A forma como ele faz isso é operando no cinturão tropical do mundo, em florestas, a partir de uma abordagem de negócios, incentivando cadeias produtivas mais sustentáveis e buscando aprimorar as cadeias produtivas que hoje são ligadas ao desmatamento (por exemplo: a pecuária, óleo de palma e outras) e trabalhando para buscar modelos econômicos para restauração de florestas.

Observando diferentes casos de iniciativas de economia florestal pelo cinturão tropical com o entendimento de que existe [uma economia da floresta] que está acontecendo nas florestas do mundo do ponto de vista social, econômico, de inovação, mas que é pouco visto. A gente só costuma olhar para as florestas, de um lado, da forma idílica das florestas preservadas, biodiversidade, fauna e flora, comunidades tradicionais; ou, do outro lado, o ponto de vista de destruição, incêndios, queimadas, desmatamento, extrativismo predatório. A narrativa se concentrou muito nesses dois polos e essa economia que alimenta a indústria, a inovação, a ciência aliada a saberes tradicionais, onde você está pensando negócios e empreendedorismo, desenvolvendo um pensamento econômico, essa é uma história que a gente tem encontrado pouco e é justamente para fortalecer essa agenda positiva que é preciso contá-las. 

A primeira vontade de fazer o filme surgiu de observar esse cardápio de histórias interessantes que mereceriam ser trazidas à tona. E a segunda vontade foi de começar a colocar junto, na mesma história, florestas dos diferentes lugares do mundo. Porque existe um bloco de países do Sul global que compartilham o que ainda tem de florestas e que têm desafios muito semelhantes e oportunidades muito semelhantes.

O filme busca também dar essa tonalidade e começar a mostrar que no Brasil, na Indonésia, em países da África, está todo mundo fazendo e batalhando com uma visão muito singular. Por fim, a mensagem geral do filme é de que você só alcança qualquer um dos resultados quando você tem parceria.

Divulgação / Parceiros da Floresta
Imagem: Divulgação/Parceiros da Floresta.

O filme traz uma diversidade de realidades geográficas, mas também de cadeias de produtos florestais. Como vocês pensaram em jogar luz sobre a economia da floresta indo além do imaginário básico?

Eu entendo que tem os produtos que são velhos conhecidos, né? A gente sempre cita castanha do Brasil e açaí como exemplos clássicos, assim como a borracha nativa que ainda é um produto que pertence ao imaginário das pessoas.

Mas a gama de produtos que não estão visíveis porque não estão necessariamente chegando ao consumidor final das grandes cidades é imensa. Posso citar óleos vegetais de espécies como buriti, que hoje tem saída para a indústria cosmética. Esse é só um exemplo de tantos outros que já estão sendo utilizados e que tem potencial de ser utilizado.

No mesmo setor – de moagem de castanhas, tem a castanha do baru, que é uma espécie do Cerrado, pra gente sair um pouco da Amazônia. Tem uma gama de produtos que estão diluídos e que têm potencial comercial e já tem algum tipo de escala de vendas, mas acabam ficando em segmentos muito de nicho. 

Existe toda uma discussão de como você abre mais espaços, como gerar maior visibilidade para esses produtos. O mesmo vale se olharmos, por exemplo, para a Colômbia. Lá, até muito pouco tempo atrás, não se comia açaí e estão começando a criar esse mercado lá. No Peru, que é um país onde você tem uma política de governo em prol da economia da floresta, você já vê empresas grandes, casos que o filme menciona, trabalhando com o buriti em escala comercial para exportação. Aqui no Brasil a gente tem potencial de fazer e não faz. 

Hoje já existe um esforço considerável de identificação de espécies com potencial [econômico]. Depois de identificar, tem que ter um avanço significativo em começar a desenvolver os produtos. O problema é que tem pouco conhecimento desse universo. Por isso que nós fizemos muitos esforços de comunicação: como esse filme, ou como o podcast Isso também é floresta, além de uma campanha digital que está prevista. Vamos abrir uma página de Instagram só para trabalhar esse tema e começar a dar mais visibilidade a esse universo da economia florestal para o público geral.

Eu brinco que é meio que criar “o agro é pop” da bioeconomia. Criar, imaginar e incorporar à identidade cultural, com formação de consumidor, essa visão que fortaleça as potencialidades e se desenvolva para além de produtos de nicho ou para além de escalas menores.

Eu vejo isso como crucial para que a gente amplie esse “cardápio”, esse menu de espécies e de potenciais. Para fazer isso, temos que olhar pra demanda, trabalhar a demanda, abrir mercado, estruturar a ponta da demanda para que quando você for organizar as cadeias produtivas, elas saibam que vão vender, que tem saída

Fazer filmes é trazer à tona o debate e um olhar para esse ponto da demanda, olhar para o consumidor, olhar pro público geral, para que esse setor econômico se torne mais visível para a sociedade.

Tem um lado de dar visibilidade, mas tem um outro lado de incentivo de políticas públicas. Esse foi o caso do Peru que você citou. O que pode fazer diferença nesse caminho da economia da floresta? O Brasil está atrasado?

Eu acho que a gente está entrando agora nesse momento de uma nova abordagem, com direção a uma economia da floresta, que seja de fato sustentável. Já se observa isso quando se cria uma Secretaria de Bioeconomia dentro do âmbito do Ministério do Meio Ambiente, embora ainda não tenha colocado concretamente o que vai ser.

Como eu enxergo a política pública? Temos um aspecto que é o mais óbvio: tem que ter infraestrutura adequada para que negócios se desenvolvam. Isso vale para qualquer negócio. Para negócios florestais, mais ainda, porque eles se dão nos territórios de floresta, sejam eles de natureza extrativista ou não, mas eles não estão se desenvolvendo dentro do espaço urbano, então você tem um desafio logístico. Muitas vezes são comunidades que sequer tem energia elétrica. Esse é um ponto muito básico de política pública, que é criar as condições de infra estruturas necessárias para que você desenvolva negócios, isso é óbvio. 

Mas é interessante pensar a política pública de uma forma mais transversal. De que forma as políticas públicas voltadas ao desenvolvimento econômico sustentável de florestas serão feitas? É somente uma atribuição do Ministério do Meio Ambiente? Não seria também uma atribuição do Ministério da Agricultura? Ou de um ministério que esteja pensando no desenvolvimento logístico e infraestrutura? Porque aí começamos a criar um desenho de desenvolvimento de viés florestal como uma prioridade de país, para o Brasil passar a se entender como um país de floresta e que, portanto, detém riquezas que são a biodiversidade, o conhecimento tradicional, as águas, enfim, a própria floresta. Mais do que tudo, o país deve se enxergar como um país de riqueza, de diversidade, de fazer disso a sua visão de progresso social, econômico e não só ambiental: é uma mudança de visão. E as políticas públicas acompanham.

Mas hoje o país se volta inteiro ao agronegócio e isso não tem mudado, independente de que governante a gente esteja olhando. Se criam as facilidades necessárias para que o agronegócio se desenvolva do ponto de vista tecnológico e de infraestrutura, com subsídios. Isso pode resultar no agronegócio em muitos aspectos moderno e que avança e gera PIB para o país. Mas isso se deu a partir de um incentivo do governo pra isso, né? 

Então por que contar essas histórias? Porque eu acho que é importante que o brasileiro se entenda como o povo de um país de floresta, para que gere conexão com essa ideia e isso seja algo que gere orgulho, desejo e entendimento cultural das pessoas.

Divulgação / Parceiros da Floresta
Imagem: Divulgação/Parceiros da Floresta.

Queria que você comentasse um pouco como você acha que o agronegócio (que envolve muita coisa) pode dialogar e aproveitar exatamente essa ideia de um país florestal e da economia da floresta.

O agronegócio tem que fazer parte da economia da floresta, não se pode dissociar o agro dos ecossistemas florestais. Eles disputam o mesmo território e coincidem no mesmo território. Eu estou falando do agro que se dá ainda nos territórios de expansão (como por exemplo, a Amazônia, o Cerrado), mas se você olhar para a Mata Atlântica, nós precisamos restaurar floresta no Brasil e vamos restaurar a floresta nas áreas que já foram degradadas, que em algum momento já foram utilizadas para o agronegócio. E ao mesmo tempo é preciso aumentar a produtividade dentro das áreas abertas, porque você não vai desmatar, isso já deveria estar superado enquanto modelo.

Quando a gente fala de uma nova economia florestal, as cadeias produtivas ligadas ao agro fazem parte dessa conversa, porque você precisa olhar para quais são os incentivos econômicos que vão viabilizar economicamente o agronegócio a pensar, por exemplo, como efetivar a restauração florestal que é necessária que seja feita dentro das áreas privadas do país. 

Também é importante pensar como viabilizar financeiramente que se transformem as cadeias produtivas que estão postas e a pecuária é um bom exemplo. Precisamos urgentemente fazer uma pecuária diferente. Mas fazer uma pecuária diferente hoje ainda é caro e tem muito pouco incentivo econômico para isso. 

Por fim, precisamos trazer um pouco essa visão de uma economia que esteja a serviço da biodiversidade e dos seus povos, não como a biodiversidade vai servir ao fim econômico, mas como que gerar desenvolvimento social e econômico retorna para a proteção e a preservação da biodiversidade. Isso tem que ser interessante para os negócios: para o investidor, para quem está na ponta, para o produtor rural, por exemplo. 

Para fazer uma mudança efetiva, não basta ter alguém que extrai um produto e alguém que compra. Não é só isso. Não há, assim, uma cadeia de valor. Uma cadeia de valor é uma série de atores. É preciso criar um ecossistema de negócios para favorecer uma outra cultura.

É isso que eu acho que precisa estar dentro dos esforços, tanto do ponto de vista das políticas públicas, como dos empresários do setor privado, os investidores, que estão olhando para o que vai ser uma economia do futuro. Por que fazer uma aposta naquilo que está “morrendo”, nas “economias velhas”? Já é uma aposta de altíssimo risco para o próprio país, de graves consequências ambientais que não terão como ser revertidas. 

Fazendo esse filme, vocês estiveram em muitos lugares e uma coisa que me chama atenção é que praticamente em todos os lugares você tem um protagonismo de comunidades tradicionais muito grande, né?

Divulgação / Parceiros da Floresta
Imagem: Divulgação/Parceiros da Floresta.

A gente só pode falar de uma nova economia florestal de fato, se ela for inclusiva. Se não, ela é o velho modelo. O novo modelo precisa se voltar para a biodiversidade e para os povos do território. São esses dois elementos que precisam ser favorecidos, antes de mais nada.

Primeiro pelo motivo mais óbvio: se queremos proteger alguma coisa, ou restaurar alguma coisa, a gente precisa que quem está na ponta faça, porque são eles que tomam a decisão. São eles que de fato estão colocando sua força de trabalho, sua energia e seu cuidado com aquele ambiente. Não adianta nada a gente criar a melhor política pública, ter uma quantidade de dinheiro fluindo, tudo certo, se lá na ponta quem está fazendo não está comprometido com essa ideia. 

A aposta é que se você criar o incentivo econômico para quem está na ponta, junto com a certeza de que elas estão amparadas e apoiadas por parcerias sólidas e cria um senso de pertencimento e conexão com essa ideia, elas vão fazer. Para além de fazer todo o dever de casa do ponto de vista de criar cadeias de valores, criar ambientes de negócio, desenvolver a indústria, etc, você precisa fazer com que as pessoas se sintam pertencentes a uma economia da floresta.E não é simples, porque ser seringueiro dá trabalho, é recurso intensivo de mão de obra humana.

Chamamos atenção à questão das populações tradicionais porque o protagonismo tem que ser delas. São elas que têm que assistir filmes, se verem representadas nas histórias, para que entendam que fazem parte de algo que tem valor para a sociedade e pro mundo. Nas minhas andanças é algo que eu busco ressaltar: “a sua história tem muita importância pra gente que está muito longe daqui”. 

O filme estreia na Mostra Ecofalante, em São Paulo. Queria que você falasse como é concretizar um trabalho tão intenso há vários anos, com muitas parcerias, muitos atores envolvidos. Como, pessoalmente, você chega para essa estreia e o que vai acontecer por lá?

A ideia de realizar uma história em formato documentário nasce no final de 2019, mas em 2020 bate pandemia, né? Então o que era pra ser um filme “de fato” filmado não foi possível. Então a gente usou muito material que já tinha sido filmado e usou o material cedido pelas outras regiões do programa [P4F].

A gente buscou dar essas tonalidades: diferentes histórias, recortes e paisagens florestais. Até para se expandir um pouco o que significa floresta, porque é uma curva de paisagens muito variadas. Assim como dentro do universo da economia florestal, você tem um monte de possibilidades de produtos, de formas de fazer, de desenvolvimentos tecnológicos, de atores. A cara da coisa é muito variada. 

A ideia agora é usar o filme como uma ferramenta. Ele é uma ferramenta para promover essa conversa. A história dessa nova economia florestal, que hoje envolve o investidor, a indústria, os centros de desenvolvimento tecnológico, os indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas… É uma multiplicidade de parcerias mas que estão em construção e é muito importante que a sociedade faça parte desse debate. Que desenvolvimento a gente quer? Para quem? O que de fato é a economia florestal sustentável, e o que não é? Especialmente neste momento em que há muito interesse de se investir, seja pela iniciativa privada ou governos, principalmente na América Latina, olhando para essa pauta. Para que isso não seja capturado e engolido pela mesma lógica extremamente predatória. 

Que a gente possa discutir produtos do Cerrado, produtos da Amazônia e cadeias da pecuária na mesma conversa, porque elas precisam fazer parte da mesma conversa.

O filme estreia na Mostra Ecofalante [dia 07 de Junho] seguido de debate, uma conversa sobre alguns casos e “marcas” da floresta, olhando esse potencial da nova economia florestal no Brasil e para onde estamos rumando. Depois a nossa expectativa é seguir promovendo eventos com o filme para que ele possa servir como essa plataforma de debate e depois ficará disponível na plataforma da Ecofalante [ainda sem data].

  • Marcio Isensee e Sá

    Marcio Isensee e Sá é fotógrafo e videomaker. Seu trabalho foca principalmente na cobertura de questões ambientais no Brasil.

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