Prestes a completar um ano do rompimento da barragem B1 da mina Córrego do Feijão, operada pela Vale em Brumadinho, área metropolitana de Belo Horizonte, a dor do luto segue latente nessa região onde 259 corpos já foram identificados e 11 ainda estão desaparecidos. No balanço de perdas e danos inestimáveis muitas perguntas sobre a maior tragédia socioambiental da mineração brasileira também permanecem sem respostas, como sinaliza o livro reportagem Brumadinho: a engenharia de um crime, recentemente lançado pela editora Letramento.
Resultado de um amplo trabalho de cobertura do caso, essa publicação de autoria dos jornalistas mineiros Lucas Ragazzi e Murilo Rocha traz à tona inúmeras reflexões sobre os desdobramentos do desastre que deixou um rastro de destruição ao longo de oito quilômetros por onde se espalharam cerca de 14 milhões de toneladas de lama com rejeitos de minério de ferro. Com base nas investigações da força-tarefa da Polícia Federal e em apuração própria dos autores, a obra aponta para atos de negligência que favoreceram a tragédia, uma vez que a Vale tinha conhecimento prévio dos riscos de ruptura da barragem e não agiu a tempo de evitar as perdas humanas, além dos graves impactos ambientais e socioeconômicos.
Em entrevista a ((o))eco, o jornalista Lucas Ragazzi foi enfático, quando indagado a respeito de questões que permanecem sem respostas e cujos esclarecimentos ainda demandam mais desdobramentos em várias frentes de atuação. “Até 23 de dezembro de 2019, nenhuma das investigações instauradas (pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Ministério Público Federal, pela Polícia Federal ou Polícia Civil) identificaram um ‘gatilho’ que possa ter determinado o rompimento da barragem I de Brumadinho naquele dia 25 de janeiro de 2019, às 12h28.” Para ele, “é provável que esse gatilho nunca seja encontrado. ”
Ragazzi atuava como correspondente do jornal O Tempo, em Brasília, quando ocorreu o rompimento da barragem. A partir do acompanhamento das investigações e operações do Ministério Público e da Polícia Federal, ele percebeu uma oportunidade de ampliar a cobertura do caso por meio de um livro-reportagem. A fim de aprofundar toda a complexidade envolvida e de revelar os bastidores da tragédia, convidou o jornalista Murilo Rocha, editor-chefe do jornal, que aceitou o desafio de participar da publicação. Foi assim que ambos passaram a atuar conjuntamente na sua produção.
Ainda que “a espinha dorsal do livro” envolva as investigações da Polícia Federal, Ragazzi ressalta que a publicação também se construiu a partir de uma apuração própria junto a testemunhas e familiares de vítimas. “Também fomos atrás de pessoas envolvidas com as empresas consultoras e até mesmo especialistas internacionais”, explica. Dessa forma, acrescenta o autor, “além de mostrar documentos e e-mails internos, até então inéditos, o livro expõe, ainda, dúvidas, discussões e discordâncias internas na equipe de investigação, inclusive mostrando as divergências entre a Polícia Federal e o Ministério Público”.
Como reflexões centrais da experiência jornalística vivenciada, Ragazzi sinaliza que a segurança desse tipo de barragem é um tema que ainda precisa ser mais amplamente discutido pela sociedade e abordado pela mídia. “É inviável que empresas contratadas pela própria mineradora e com outros contratos dentro da mineradora fiquem responsáveis por determinar se uma barragem pode ou não funcionar. Esses consultores ficam quase como reféns para aprovar tudo”, opina.
Considerando que a agenda socioambiental brasileira tem sofrido inúmeros retrocessos na atual conjuntura, para Ragazzi uma das principais lições tiradas desse desastre se refere à necessidade da presença do poder público como ente fiscalizador. “O setor da mineração se mostrou muito autorregulado, fazendo as próprias regras. A sociedade (principalmente a imprensa) precisa ficar mais alerta quanto à qualidade das barragens e minas”, analisa.
Como partes da dificuldade de cobrir os desdobramentos do rompimento da barragem, Ragazzi menciona a linguagem técnica à qual poucos jornalistas estão familiarizados e o desafio cotidiano de separar a emoção do profissionalismo ao lidar com familiares das vítimas e cenas tristes provocadas pela tragédia.
Em relação à interlocução com a Vale no processo de produção do livro, Ragazzi conta que, no final de julho, foram enviadas 13 perguntas pontuais e técnicas para a empresa. Em setembro, as respostas foram recebidas e, mesmo que não tenham sido esclarecidas todas as questões apresentadas, os autores decidiram publicar o conteúdo na íntegra, em um dos capítulos finais da obra. “Como o livro acaba se tornando um registro histórico desse momento triste, também achamos válido para que no futuro as pessoas saibam o que a empresa dizia”, observa o autor.
Relatórios técnicos apontam falhas e divergências de informações
Em relatório divulgado em novembro de 2019 a Agência Nacional de Mineração (ANM) concluiu que a Vale não reportou informações sobre anomalias identificadas na barragem da mina de Córrego do Feijão. Esse tipo de esclarecimento poderia ter evitado a tragédia, uma vez que a ANM teria exigido medidas emergenciais à empresa. O documento ressalta, entre outros aspectos, que foram percebidas divergências entre informações enviadas à Agência e as que constavam em documentos corporativos internos. De acordo com a portaria 70.389/17, quinzenalmente, as mineradoras devem enviar à ANM relatórios referentes à segurança de suas barragens.
No relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais para apurar as causas do rompimento da barragem foi afirmado que “os indícios apontam para o fato de que funcionários da Vale poderiam e deveriam ter agido para evitar o resultado – contudo, não o fizeram”. Ainda segundo o documento, “todos os envolvidos, desde os técnicos da ponta até o presidente da empresa, estavam cientes do risco de rompimento da B1 – cujas evidências remontam a 2016, logo após o desastre de Mariana – e nada fizeram para impedir a ruptura da barragem”.
Com base na apuração dos fatos e nas provas colhidas, a CPI sugeriu o indiciamento de executivos da Vale e da empresa de consultoria alemã Tüv Süd (atestou a estabilidade da barragem que se rompeu) por “terem assumido o risco de causar as mortes e lesões decorrentes do rompimento da barragem, bem como por um conjunto de infrações previstas na Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais)”. Nas conclusões desse documento ainda se sustenta que: “houve um conluio entre a Tüv Süd e a Vale para “maquiar” a real situação da barragem B1 e, assim, obstaculizar a fiscalização dos órgãos públicos competentes. ”
No sentido de aprofundar a apuração das causas do rompimento da barragem B1 pela força-tarefa criminal, o Ministério Público Federal anunciou em novembro a contratação de serviços especializados de análise, modelagem e simulação computacional da Universitat Politécnica de Catalunya (UPC). Os custos dessa investigação serão arcados pela Vale mediante acordo firmado com o MPF.
Em retrospectiva sobre o rompimento da barragem, ((o))eco apresenta uma série de desdobramentos dessa primeira grande tragédia ambiental de 2019 envolvendo as investigações criminais, a apuração dos impactos ambientais que comprometeram fortemente o rio Paraopeba, a situação das famílias atingidas pela tragédia, entre outros aspectos.
Vale anuncia projeto de recuperação local
A reportagem de ((o))eco entrou em contato com a Vale para apurar informações mais recentes sobre desdobramentos do rompimento da barragem. Por intermédio da assessoria de imprensa foi informado que a empresa “segue apoiando as ações do Corpo dos Bombeiros e da Polícia Civil na busca pelas 11 vítimas não encontradas (sete empregados próprios, três empregados terceirizados e uma pessoa da comunidade)”. Como parte do processo de reparação na área mais afetada pela tragédia, a mineradora anunciou em seu website que investirá em um projeto de requalificação urbana em Córrego do Feijão denominado de território-parque.
Por meio desse projeto, a Vale informou que pretende promover melhorias na infraestrutura local, incluindo ruas e casas, além de incentivar a reativação da economia, inclusive por intermédio do turismo com enfoque nas características naturais e culturais da região. Segundo a empresa, a iniciativa atende a uma demanda da comunidade e a primeira etapa de obras deverá ser concluída em dezembro deste ano.
No balanço divulgado, a mineradora informou que já foram firmados mais de 4 mil acordos para indenizações individuais e trabalhistas totalizando cerca de R$ 2 bilhões. Foi destacado, também, que 650 pessoas já aderiram voluntariamente ao Programa de Assistência Integral aos Atingidos, envolvendo apoio para compra de imóveis; assistência técnica rural, empreendedorismo, acompanhamento social, entre outras ações.
A empresa anunciou, ainda, a prorrogação por dez meses do auxílio emergencial, recurso destinado mensalmente a 106 mil pessoas, incluindo 150 integrantes da comunidade indígena Pataxó, que vive às margens do rio Paraopeba. Esse importante manancial de água da região, fortemente impactado pelo rompimento da barragem, passa por um processo de monitoramento que está a cargo do Instituto Mineiro de Gestão de Águas (Igam). Os recursos necessários para essa atividade serão custeados pela Vale, conforme Termo de Compromisso (TC), firmado em dezembro, com o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG).
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