Reportagens

A Floresta vista da favela

Turismo de base comunitária nas favelas do Guararapes e Cerro-Corá, no Rio de Janeiro, mostra a relação direta dos moradores com a Floresta da Tijuca

Júlia Mendes · Daniella Mendes ·
22 de novembro de 2024

O Cristo Redentor com os “braços abertos sobre a Guanabara”. Essa talvez seja uma das primeiras imagens que vêm à mente quando pensamos no Rio de Janeiro. Aos pés  da estátua estão inúmeras outras atrações da Cidade Maravilhosa, algumas delas pouco conhecidas. As favelas do Guararapes e Cerro Corá estão localizadas na zona sul da cidade, próxima aos bairros de Cosme Velho e Laranjeiras, e fazem parte de um circuito turístico pouco explorado do Parque Nacional da Tijuca. 

Durante uma caminhada guiada pela Cooperativa Anfitriões do Parque – Criatour no território das duas comunidades, as subidas e descidas são premiadas pela vista da Baía de Guanabara e cada viela representa a chance de uma brecha para contemplação. A visita foi feita no início de novembro, numa quinta-feira (7). Os guias nos contam histórias a partir de suas próprias vivências e conhecimento local, já que são, antes de tudo, moradores dali. 

Wellington Luis, conhecido como “Guigui”, começou a trajetória como guia da região aos 11 anos, sem qualquer curso ou instrução. Ele conta que ajudava clientes do sacolão em frente à comunidade junto com outros meninos. Ali havia muitos turistas buscando guias para o Cristo Redentor. E assim, ele e outras crianças da comunidade passaram a ser considerados guias turísticos graças aos seus conhecimentos locais. Segundo ele, foi por conta desse trabalho que teve os primeiros contatos com o Parque Nacional da Tijuca, mas que, com a floresta, sempre teve. “A partir disso, começamos a entender na prática a importância de preservar o nosso local”, conta. 

Esse tipo de atividade, classificada como turismo de base comunitária, foi o tema das discussões do seminário Favela & Floresta Expo, realizado nos dias 6 e 7 de novembro, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O evento incluiu debates, rodas de conversas e a visita guiada às comunidades Guararapes e Cerro Corá, da qual participou a reportagem. Os principais agentes do turismo de base comunitária  são os próprios moradores locais, que podem apresentar a sua visão do território. Além disso, quem coordena o negócio também são os moradores, impulsionando a economia da comunidade e integrando outros elementos sociais na favela.

A Cooperativa Anfitriões do Parque foi criada em 2024 com o objetivo de, como o nome indica, colocar os moradores das comunidades de Guararapes e Cerro Corá como anfitriões no turismo local. Desde 2010, os guias do projeto de condução de turistas nas comunidades realizavam a rota de maneira informal, mas a realidade mudou com o apoio do Parque Nacional da Tijuca, através do Consórcio Paineiras Corcovado e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Com a formalização do trabalho da cooperativa, os guias são os protagonistas das rotas de turismo dentro da sua comunidade, assegurando que a perspectiva dos moradores dessas duas favelas seja protagonista na relação com a área protegida. 

Os guias credenciados da comunidade. Foto: Daniella Mendes

Uma rota desconhecida aos pés do Cristo Redentor

Famosos pelo turismo e pela boemia, os Arcos da Lapa são outro cartão-postal popular do Rio de Janeiro.  Nem todos sabem, entretanto, da história por detrás dessas estruturas de concreto pintado de branco e em formato de arcos  A construção dos arcos, que na verdade são um aqueduto, fazem parte de um projeto da época da colônia, para levar as águas da encosta do Corcovado para o chafariz do Largo da Carioca, que abastecia as casas da cidade. Antes de passar pelos Arcos da Lapa, a água do Rio Carioca é recolhida na Caixa da Mãe D’Água, reservatório tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC). 

Apesar de ser conhecido pelo seu papel no abastecimento da cidade, um lado bem menos conhecido dessa história são as consequências da adução do Rio Carioca para a favela dos Guararapes.  A partir de 1826, quando a Caixa da Mãe D’Água foi construída, a comunidade foi privada da sua relação íntima com o rio. Mas isso não os impediu de aproveitar o espaço. Os guias lembram a época de crianças, quando brincavam no local. O espaço é chamado por eles – e por todos os outros moradores da região – de “Banana”, como era conhecido o morador que era responsável pela limpeza do local. 

A comunidade Guararapes, que ocupa a encosta do Morro do Corcovado, com suas casas construídas nas margens do Rio Carioca, só voltou a ter mais acesso às águas do rio a partir do Programa Favela-Bairro, iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro para urbanização das favelas na cidade. O programa foi responsável por trazer de volta a água para o cotidiano da vida dos moradores de Guararapes e Cerra-Corá no início dos anos 90. 

Foto: Daniella Mendes

Após visitar a Caixa Mãe D’Água, nos encaminhamos para a “piscininha”, como chamam os moradores do entorno. O local é uma queda d’água que forma uma piscina natural, também estabelecida pelo projeto Favela-Bairro a pedido dos moradores e que hoje conta com  apoio da empresa Trem do Corcovado para a revitalização da área. Antes mesmo de ser um ponto turístico para os visitantes do morro, a piscininha já era uma área de lazer para as comunidades Guararapes e Cerro-Corá – como é até hoje. Sylvio Tadeu, presidente da Cooperativa, mora bem em frente à piscininha e conta que não tem um dia que o local fique completamente vazio. “Tem gente aqui todos os dias, mesmo chovendo. Até de noite o pessoal fica aqui”, diz. 

Andando mais um pouco pelas ruas de Guararapes, os guias chamam a nossa atenção para uma porta que leva a um terreiro de Umbanda e, logo em frente, uma igreja evangélica. Perguntamos se há algum conflito entre os locais. “Não, todo mundo convive bem aqui”, contou Denner Coelho, também guia e morador da comunidade. 

Ao subirmos as escadas do terreiro, encontramos a casa da mãe de Sylvio e, bem em frente à porta, um poço artesiano. Segundo os guias, o poço está ali há décadas e desde sempre foi uma fonte de água alternativa aos moradores da comunidade. “Quando falta água aqui na favela, a família do Sylvio abre o poço para que outros moradores possam ter água em casa”, explicou Kevin Max Dias, guia da cooperativa e morador de Cerro-Corá. Eles contam que a água vem direto da rocha e deságua no Rio Carioca. “Eu tenho 70 anos e quando eu nasci o poço já estava aí”, conta a mãe de Sylvio.  

Depois de mais alguns passos entre as vielas da comunidade, chegamos a uma quadra esportiva recém-revitalizada. Com muros grafitados e grades novinhas, o local fica em frente a um muro de contenção construído após um deslizamento de terra, que ocorreu em 2010. O desastre resultou na morte de duas irmãs e 120 desabrigados. Além da quadra, atualmente o espaço também abriga um pomar, sob os cuidados do Mauricio Roque, conhecido pelos outros moradores como Bolico. Morador da comunidade há 50 anos, Babu cultiva pés de laranja, mais de um tipo de banana, acerola, ameixa, maçã, graviola, boldo, goiaba, cana-de-açúcar, pêssego, manga, aipim e abacate. “Eu gosto muito de mexer com a terra e amo a natureza, por isso aprendi muita coisa e hoje consigo trazer isso para a minha comunidade”, conta Bolico. Ele não só traz, como também alimenta os moradores locais com a sua barraquinha das frutas que planta. 

Foto: Danilla Mendes

Atualmente, além da relevância para o abastecimento das casas e o lazer, o Rio Carioca marca uma fronteira invisível . Ao lado direito do rio, está a comunidade de Guararapes, com  suas escadarias, ladeiras e casas coladas umas nas outras. Já na margem  esquerda, estão  condomínios  de casas grandes e de alto valor aquisitivo.

Ao mesmo tempo que o rio divide esses dois territórios tão distintos, ele é um ponto de união para os moradores da margem direita. Em 2012, os moradores se juntaram para um  mutirão de limpeza do Rio Carioca.Na ocasião, o Parque Nacional da Tijuca também organizou atividades culturais para mobilizar a comunidade, como  exibição de filme sobre a história de Guararapes e um mutirão de grafite, que colore o concreto com mensagens de conscientização ambiental.

O Tigo Cnx foi um dos artistas grafiteiros que participou do mutirão e conduz as oficinas de desenhos na Biblioteca Cláudio de Moraes, espaço de lazer e aprendizado. Na visita, as crianças das comunidades compartilharam seus desenhos, que mostravam o topo do morro do Corcovado, e seus livros favoritos, histórias sobre a fauna brasileira. Para o público mais velho, a Associação dos Moradores de Guararapes dispõe de uma biblioteca comunitária com uma sessão exclusiva sobre meio ambiente, engajando a população local em todas as faixas etárias. E assim, desde a infância até a terceira idade, nas águas e nas histórias, as comunidades vizinhas do Parque Nacional da Tijuca  aprendem a importância do cuidado e da preservação da natureza.

  • Júlia Mendes

    Estudante de jornalismo da UFRJ, apaixonada pela área ambiental e tudo o que a envolve

  • Daniella Mendes

    Jornalista pela Unicarioca, estudante de Geografia na UERJ e apaixonada pelas geociências e pela biodiversidade brasileira.

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