Quantos filhotes uma onça-pintada (Panthera onca) pode ter durante a vida? Existe uma idade reprodutiva para a espécie? Qual o intervalo entre um parto e outro? E quais as estratégias de acasalamento? Essas são algumas das perguntas, até então existentes, que acabam de ser respondidas por pesquisadores brasileiros que estudaram por quase uma década uma grande população do felino no Pantanal.
Essas descobertas sobre a demografia e estratégias de acasalamento da espécie foram publicadas neste mês na revista científica Journal of Mammalogy, da Oxford University Press, e revelam entre outras coisas, que onças-pintadas podem ter em média oito filhotes durante a vida, com um intervalo médio entre partos de quase dois anos. O artigo também relata o uso do acasalamento sem fins reprodutivos como uma possível estratégia de proteção à prole contra a prática de infanticídio – morte de filhotes por machos adultos.
A pesquisa teve como pontapé a ausência de dados básicos sobre o parâmetro reprodutivo de onças-pintadas em vida livre, até então desconhecidos pela ciência. “A gente quis preencher essa brecha de conhecimento sobre a espécie”, conta a ((o))eco o biólogo Edu Fragoso, primeiro autor do estudo e coordenador científico do Onçafari, organização não governamental (ONG) que trabalha há mais de uma década com a promoção da conservação de onças-pintadas na área do estudo.
“Esse é o primeiro estudo que analisa aspectos biológicos ainda não conhecidos da onça-pintada na natureza”, destaca Ronaldo Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (CENAP/ICMBio).
Os dados sobre o tamanho médio das ninhadas, intervalos entre partos, entre outras informações reveladas pelo estudo, são inéditos, diz ele. “Estudos de longo prazo são extremamente difíceis de serem conduzidos, principalmente pelo custo elevado”, afirma Morato.
O autor da publicação conta que, até então, algumas das informações existentes sobre os parâmetros reprodutivos da espécie tinham como referencial animais de cativeiro. “Em um único volume, a gente conseguiu estabelecer vários parâmetros. Com um número de indivíduos muito grande a gente conseguiu ter estimativas mais precisas”, comenta Fragoso.
Ao todo, os pesquisadores registraram mais de 180 onças-pintadas entre 2011 e 2020 na Caiman Pantanal. Situada no Pantanal sul-mato-grossense, entre Miranda (MS) e Aquidauana (MS), a fazenda de aproximadamente 530 km² atua com a criação de gado há mais de seis décadas e, em 1987, adicionou o turismo selvagem como uma de suas atividades econômicas.
Para os registros dos felinos considerados pela pesquisa, foram utilizadas armadilhas fotográficas e observação direta, além de colares de monitoramento por GPS, que serviram como apoio para a localização dos indivíduos.
Tamanho médio da ninhada e pico de nascimento
No total, 56 ninhadas foram identificadas na área de estudo no Pantanal. Desse número, porém, foram consideradas apenas 38, que pertenciam a 21 fêmeas diferentes. Isso porque as demais ninhadas tiveram os filhotes vistos pela primeira vez quando estavam velhos demais, o que dificultaria a estimativa mais precisa de idade.
“A gente excluiu esses bichos e reduziu para um número mais confiável para chegar a estimativas mais confiáveis também”, conta o biólogo. O maior pico de nascimento foi constatado entre abril e maio, que corresponde ao final do período de cheia do Pantanal em anos típicos. Nesse período, nasceram 13 de todas as 38 ninhadas.
Já para o cálculo da média de filhotes, foram consideradas apenas 35 ninhadas porque em três as fêmeas que tinham sido visualmente identificadas como prenhas, perderam os filhotes antes da contagem. Entre essas ninhadas que tiveram filhotes registrados e contados, a maioria (23) era de filhotes únicos, seguida por ninhadas de gêmeos (9) e, por último, de trigêmeos (3). Ao todo foram contabilizados 50 filhotes entre as ninhadas. O tamanho médio de cada ninhada das onças foi de 1,43 filhotes.
De um parto a outro e o sucesso reprodutivo
O intervalo entre o nascimento de um filhote e outro também foi analisado na área de estudo no Pantanal. Em ninhadas bem-sucedidas, o intervalo foi de aproximadamente dois anos (21,8 meses). “Basicamente, a fêmea ou está cuidando de filhote ou já está prenha de novo. Quase que já emenda uma coisa na outra”, relata Fragoso.
Já entre ninhadas malsucedidas, o intervalo foi de aproximadamente dez meses (9,5 meses). As ninhadas onde a fêmea tem o filhote e consegue criá-lo até sua independência são tidas como bem-sucedidas. As malsucedidas são aquelas onde a onça perde o filhote durante esse período.
Entre as onças consideradas pelo estudo no Pantanal, a idade média durante o primeiro parto foi de pouco mais de dois anos e meio (31,8 meses). Apesar disso, o artigo aponta o registro de uma fêmea que teve o seu primeiro parto aos dois anos de idade (25 meses).
“Mas a gente já viu fêmeas mais jovens acasalando. Tinham fêmeas que estavam com a mãe ainda, na reta final quase desgarrando, e já estavam acasalando. Porém, elas não emprenhavam”, comenta o pesquisador, se referindo às fêmeas que foram registradas acasalando com um ano e três meses.
Entre os machos considerados pela análise, o mais novo a acasalar tinha um ano e sete meses. “As fêmeas atingem a maturidade sexual mais rápido do que os machos”, complementa.
Para o período reprodutivo de sucesso, ou seja, até que idade uma fêmea pode gerar um filhote, o cálculo teve como base a idade da fêmea mais velha a ter filhotes, sendo esta uma onça-pintada que foi monitorada de forma contínua pelos pesquisadores. “Ela morreu mais ou menos com 15 anos de idade e teve a última ninhada bem-sucedida com 13”, conta o pesquisador.
Ou seja, o período de sucesso reprodutivo no qual chega o estudo é a idade entre dois anos e meio e 13 anos. Considerando ainda que o intervalo entre partos é de quase dois anos e que cada ninhada tem, em média, 1,43 filhotes, os pesquisadores concluíram que na área de estudo no Pantanal as fêmeas podem ter, em média, 8,13 filhotes durante a vida.
Da independência ao dispersar
Conhecido como o momento em que um filhote se torna independente da mãe, o desgarre é a etapa que antecede a sua dispersão, quando ele decide ir além e abandona a sua área natal. No Pantanal, a idade média dos filhotes considerados pelo estudo durante o desgarre foi de um ano e meio, assim como ocorre para a maioria dos grandes felinos.
“Independentemente do tamanho da ninhada, se é macho ou fêmea, quando dá esse ano e meio eles desgarram. Lógico, eles podem encontrar a mãe no futuro, compartilhar carcaça, mas não dependem mais dela, ela começa a ser mais agressiva, a expulsar eles depois desse período”, comenta Fragoso.
Quanto à dispersão, esta ocorreu de forma diferente conforme o gênero. Todos os machos nascidos na área de estudo deixaram a área em que nasceram depois da independência. Entre as fêmeas, a maioria permaneceu na área adjacente à mãe. Esse tipo de comportamento é descrito como filopátrico pela ciência.
“Digamos que a filha compra um terreno no mesmo bairro da mãe, enquanto os machos mudam de cidade”, simplifica o autor do estudo, ao apontar que nisso reside uma estratégia importante para a saúde genética da população da espécie.
Ao abandonarem sua área natal, os machos evitam o risco da endogamia, que é o acasalamento entre indivíduos de uma mesma família ou geneticamente semelhantes. “Isso para genética da população é horrível. A gente acha que é um mecanismo evolutivo de evitar que aconteça essa consanguinidade”, acrescenta Fragoso.
Esse resultado confirma estudos de genética prévios, que sugerem os machos de onça-pintada como dispersores da espécie, mas ainda deixa remanescente uma pergunta importante. “Para onde esses machos vão? O quão longe eles vão? A gente ainda não sabe”, aponta o pesquisador.
Acasalamento e estratégia contra infanticídio
A ciência descreve a onça-pintada como uma espécie vulnerável ao infanticídio, prática que consiste na morte de filhotes por indivíduos adultos. Outros relatos sugerem os machos como praticantes desse comportamento entre a espécie.
Os motivos que ocasionam a prática na vida selvagem podem estar relacionados tanto à tentativa de um macho de colocar fim a linhagem de outro macho, à própria necessidade fisiológica de alimento ou, ainda, ao adiantamento do cio de uma fêmea. “Ele matando filhotes, a fêmea entra no cio em seguida. Isso aumenta as chances dele se acasalar com ela de novo e perpetuar a genética dele na população, matando filhote de outro macho”, explica o autor.
Na área de estudo no Pantanal, o artigo concluiu que o estímulo “auditivo, olfativo e/ou visual” de um macho que pode representar risco para filhotes, aparentemente, desencadeia um comportamento de cio nas fêmeas, mas sem ovulação. Ou seja, um comportamento de acasalamento sem fins reprodutivos.
De acordo com a publicação, os dados mostram que fêmeas com filhotes dependentes levaram machos a áreas distantes para copular. “A hipótese mais forte é a de que realmente isso sirva para evitar que o infanticídio aconteça”, argumenta Fragoso.
Outra possibilidade ainda é que as onças-pintadas estejam utilizando o acasalamento como uma estratégia para ser aceita na área de vida dos machos. “Uma questão mais de sociabilidade […]. Para mim são as duas hipóteses mais fortes”, comenta Edu, ao afirmar que os dados revelam que o acasalamento é algo muito importante dentro do mundo social do felino.
Importante passo rumo à conservação
Cerca de metade da população remanescente de onças-pintadas do mundo está no Brasil. Em território brasileiro, ela já foi extinta no Pampa e está quase ameaçada ou criticamente ameaçada nos outros biomas. Junto com a Amazônia, o Pantanal abriga a maior parte da população do felino no País.
Mas é também neste bioma que o animal enfrenta a ameaça constante da intensificação acelerada do uso do solo, perda de habitat, caça por retaliação pela predação de gado, aumento de atividades agrícolas e de infraestrutura.
Nesse cenário, os parâmetros reprodutivos da espécie que acabam de ser publicados, conforme aponta a própria publicação, devem servir para a proposição de planos de conservação para a espécie tanto no País quanto fora dele.
Para o autor da publicação, a previsão do funcionamento de reforços populacionais é um apenas um dos aspectos que pode contar com o apoio dos novos dados. “Por exemplo, se você reintroduz uma fêmea na natureza, quantos filhotes são esperados? Qual o aumento populacional naquela área que você está tentando restaurar? Esse estudo vem para tentar preencher essas lacunas”.
“Essas informações irão compor análises de viabilidade populacional, aumentando a precisão das análises. Com resultados mais precisos podemos ser mais assertivos nas estratégias de conservação da espécie”, conclui o coordenador do CENAP/ICMBio.
Leia também
A rainha do Pantanal em carne, osso e pintas
Acuada por séculos de perda de habitat e caça, a onça-pintada só se mostra sem inibição no Pantanal, onde Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e o Chaco se encontram →
Como os incêndios de 2020 afetaram onças-pintadas no Pantanal
Estudo revela que o maior felino das Américas teve quase metade da população afetada pelas chamas. Perda de habitat pode impor dificuldades reprodutivas e alimentares →
É longa a estrada da conservação da onça-pintada
No Dia Nacional da Onça-Pintada, relembramos os projetos e instituições que trabalham pela conservação do felino e os desafios dessa iniciativa →
Muito bom! Excelentes as informações. Parabéns aos autores do estudo!
Muito importante.. esse estudo científico..,que vai ser de suma importância..para a preservação…das onças pintadas do Brasil..,e países vizinhos….e do habitat.. desse majestoso felino….. Só gostaria de dar uma sujestão…que não vi no artigo…como os machos abandonaram…sua terra natal…na idade mencionada …. gostaria de saber se o estudo .detectou ..o tamanho da área (Território) necessário para um casal ,ou grupo sobreviverem ..,e criarem suas crias .. principalmente nos dias atuais..onde o desmatamento..e a invasão de garimpeiros…e a agropecuária..avançam sobre o habitat ..das onças pintadas..