Presente em praticamente todos os pontos do planeta, no solo, ar, geleiras, vulcões e até em nosso organismo, a grande família dos fungos é uma peça-chave do equilíbrio ecológico e climático planetário. Sem contar funções já reconhecidas, como fornecer alimentos e salvar vidas humanas.
Mais próximos dos animais em sua história biológica, os fungos foram catalogados por anos como espécies da Flora. Mas enquanto 90% dos tipos de plantas no mundo estão cientificamente listadas, apenas 150 mil (4%) das estimadas até 3,8 milhões de espécies de fungos foram cadastradas.
PLANTAE
FUNGI
EUBACTERIA
ANIMALIA
PROTISTA
ARCHAEBACTERIA
Os grandes Reinos dos seres vivos: Plantae (plantas); Fungi (fungos); Animalia (animais); Protista (protozoários); Eubacteria e Archaebacteria (bactérias sem e com paredes celulares)
No Brasil, já estão elencados quase 6,5 mil diferentes fungos. Novas espécies foram descobertas nos últimos anos em Goiás e no entorno do Parque Nacional de São Joaquim, em Santa Catarina. Muitas outras podem estar abrigadas na floresta amazônica e demais biomas.
Esforços científicos ampliam o conhecimento sobre a variedade e os usos do grupo Fungi. Suas espécies têm atraído mais atenção pela produção comercial crescente, que reduz os preços de venda, e até por séries de ficção onde fungos converteram pessoas em zumbis.
Dimensões singulares
Os cogumelos que comemos são fungos. O mofo (bolor), as orelhas-de-pau e outras espécies que encontramos nas matas também. Há fungos terrestres e aquáticos. Podem variar do cinza pálido ao colorido intenso. Doze espécies brasileiras brilham à noite, são bioluminescentes.
Uma espécie (Neonothopanus gardneri) do Cerrado é um dos maiores e mais potentes fungos emissores de luz do mundo. O brilho é gerado de forma semelhante ao de vagalumes e bactérias. A iluminação pode atrair insetos que dispersam esporos e ajudam os fungos a se reproduzir.
Muitos quebram a um simples toque. Outros são duros na queda. Espécies sobreviveram a viagens espaciais e à radiação do reator da usina de Chernobyl. Sua explosão em 1986 na cidade de Pripyat, hoje na Ucrânia, foi um dos maiores acidentes nucleares da história.
Estudos apontam que os filamentos de fungos se estendem por 450 quatrilhões de quilômetros numa camada de apenas 10 cm de solo no planeta. Isso cobriria cerca de metade da largura da nossa galáxia ou 3 trilhões de vezes a distância da Terra ao Sol.
Parte da medicina tradicional chinesa, fungos da família Cordyceps vivem em plantas. Os insetos que as atacam são contaminados por seus esporos e se tornam “zumbis” até a reprodução do fungo. O comportamento inspirou o videogame e a série pós-apocalíptica The Last of Us.
Crescendo entre lavouras de árvores exóticas nas regiões Sul e Sudeste, cogumelos e trufas se tornaram alvos de “caçadas” em fazendas. Os fungos são colhidos especialmente nas épocas mais frias do ano. Esses “safáris gastronômicos” têm agências especializadas e até cães farejadores.
Benefícios naturais
Fungos ajudam a fermentar do pãozinho do café da manhã a vinhos, cervejas e queijos. Geram fármacos também, como a penicilina, que aumentou a sobrevida humana em 23 anos desde a sua descoberta, em 1938. No Oriente, há registros milenares de fungos combatendo o câncer e disfunções sexuais.
Eles povoam nossa “flora intestinal” e garantem a digestão do que comemos. Em outros seres, vivem como parasitas, ajudam a absorver nutrientes e formam colossais redes de comunicação entre plantas. Árvores podem ter mais de 200 tipos de fungos em suas raízes, galhos e folhas.
Os fungos também fortalecem o solo e auxiliam a decomposição de corpos e partes de plantas, animais e outras espécies, mantendo a saúde das florestas. São indispensáveis igualmente ao ciclo natural do gás carbônico (CO2), contribuindo para equilibrar o clima global, bagunçado por ações humanas.
Uma pesquisa da Universidade de Sheffield (Inglaterra) revelou que os fungos capturam ⅓ das emissões anuais de CO2 pela queima de combustíveis fósseis, como derivados do petróleo e carvão mineral. Isso ocorre porque as redes de fungos transferem nutrientes e retiram o gás das plantas.
Os fungos movimentam quase US$ 55 trilhões na economia global, estimou um artigo científico publicado na revista Fungal Diversity. O balanço pesou sua contribuição para vários setores, em serviços ecológicos e ambientais aos seres humanos, benefícios à saúde e à nutrição.
Formigas cultivam “jardins” de fungos com pedaços de folhas levadas aos formigueiros. Assim, os fungos têm um local seguro para viver e degradam a celulose das plantas que os insetos não digerem. Depois, as formigas se alimentam dos fungos.
Certas espécies produzem uma gordura vital para o crescimento de larvas de abelhas sem ferrão da espécie Scaptotrigona depilis. Chamadas de Mandaguari ou Canudo, são reconhecidas em vários estados brasileiros pelos tubos que constroem na entrada das colmeias.
Fungos no cardápio
Especialistas prevêem que os fungos serão cada vez mais usados como insumos agrícolas e industriais, em processos biotecnológicos e principalmente na alimentação humana, como fonte sustentável de proteína não animal.
As 45 espécies de cogumelos comestíveis catalogadas na segunda edição do guia Fungos Alimentícios Não Convencionais de Angatuba (SP) podem ser encontradas em outros pontos do Brasil. A maioria das espécies depende de, no mínimo, uma fervura antes do consumo.
Descrição, fotos e linguagem simples auxiliam na identificação dos cogumelos da publicação, voltada a curiosos, estudantes, professores, chefs de cozinha, pesquisadores, amantes da natureza e, claro, pessoas interessadas em fontes alternativas de alimentação.
Riscos às pessoas
Certos fungos podem causar micoses na pele e unhas das pessoas, intoxicações e infecções em órgãos internos, sobretudo em pacientes com baixa imunidade. Pesquisas mostram que fungos aumentaram as taxas de mortalidade de pacientes hospitalizados com COVID-19.
Repassado sobretudo por gatos abandonados, o fungo Sporothrix brasiliensis pode causar feridas na pele, afetar os olhos, o nariz e até os pulmões. A espécie foi ignorada até meados dos anos 1990. Há casos no Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Panamá, Inglaterra e Estados Unidos.
Cientistas elencaram os 10 fungos que seriam mais perigosos à humanidade. A lista tem espécies que “comem cérebros”, causam infecções mortais, destroem lavouras inteiras e estruturas de madeira, provocam hemorragias pulmonares e podem até extinguir sapos.
Ameaças aos fungos
Ecossistemas inteiros podem falir sem os serviços dos fungos, mas eles são globalmente ameaçados pelo avanço da agropecuária e da urbanização, crise climática, espécies invasoras de ambientes naturais, poluição e, sobretudo no Brasil, pela eliminação da vegetação nativa.
Mesmo assim, não estão em listas brasileiras de espécies ameaçadas, nem em políticas e ações federais e estaduais para conservação da biodiversidade. Os primeiros fungos em risco foram reconhecidos pela União Internacional para Conservação da Natureza (UICN) em 2003.
A entidade aponta que quase metade (48%) de 597 espécies de fungos analisadas pode desaparecer. Destas, 5% estão criticamente em perigo, 17% em perigo, 25% vulneráveis, 10% quase em perigo e 34% aparentemente sem risco de extinção. Faltaram dados para classificar os 9% restantes.
Enquanto isso, países como Austrália, Estados Unidos e Reino Unido já avaliam a situação de seus fungos. Na Europa, um conselho amplia debates sobre conservação e lista de espécies no continente, onde vários países têm leis que protegem a biodiversidade, inclusive de fungos.
China, Japão e Coreias são exemplos de grandes consumidores de fungos. O México também, pela forte preservação de conhecimentos tradicionais. Na América do Sul, ao menos Chile já possui uma legislação federal protegendo fungos. O Brasil, ainda não.
Ciência política
Espécies de animais e de plantas ameaçadas de extinção no Brasil são elencadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ). Os fungos estão a ver navios, não têm uma lista vermelha nacional.
Mas espécies nacionais não estão livres de perigo. Reuniões científicas em 2020 e 2021 contaram 32 fungos brasileiros ameaçados de extinção. Uma lista não oficial de suas espécies em risco no país é mantida pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
A UICN reconheceu em janeiro o primeiro grupo de especialistas em conservação de fungos no Brasil. O time quer aquecer a agenda com mais estudos sobre variedade e ameaças às espécies, treinamento de profissionais, educação, comunicação e engajamento político.
Outras fontes e estudos consultados
Elisandro Dechsler Santos – pós-doutor pelas universidades Nacional de Córdoba (Argentina) e Federal de Santa Catarina (UFSC). Parte de grupos internacionais e nacionais voltados à pesquisa e à conservação de fungos, como o MIND.Funga.
Leonor Costa Maia – PhD em Ecologia de Plantas pela Universidade da Flórida (Estados Unidos) e professora em Biologia de Fungos na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidiu a Sociedade Botânica do Brasil.
Larissa Trierveiler Pereira – pós-doutora em Biociências e Fisiopatologia pela Universidade Estadual de Maringá (PR) e pelo Instituto de Botânica de São Paulo (SP). Professora e pesquisadora do Laboratório de Estudos Micológicos da Universidade Federal de São Carlos (SP).
- https://www.mdpi.com/1424-2818/14/9/736
- https://mindfunga.ufsc.br/o-que-significa-funga
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3708484/
- https://link.springer.com/article/10.1007/s13225-018-0413-9
- https://www.cell.com/current-biology/pdf/S0960-9822(23)00167-7.pdf
- https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S175450482030101X
- https://efi.int/news/open-letter-crucial-role-fungi-preserving-and-enhancing-biodiversity-2022-12-14
- https://phys-org.cdn.ampproject.org/c/s/phys.org/news/2023-06-hidden-carbon-fungi-necromass-absorb.amp
- https://www.psychologytoday.com/us/blog/the-gut-brain-axis/202210/new-microbiome-research-misses-critical-component-fungi
- https://link.springer.com/article/10.1007/s13225-023-00520-9#:~:text=Fermented%20food%20and%20beverage%20products,of%20carbon%20in%20the%20soil
- https://fungalbiolbiotech.biomedcentral.com/articles/10.1186/s40694-020-00095-z
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Muito interessante o conteúdo abordado de forma bem didática e belissímas ilustrações. Parabéns pelo trabalho, ficou incrivel!