Reportagens

A volta do dançarino dos desertos

Iniciativa de reintrodução em área protegida no norte do Chade, na África, traz de volta o avestruz-norte-africano ao Deserto do Saara

Duda Menegassi ·
11 de setembro de 2023 · 1 anos atrás

Com suas pernas longas e seu corpanzil desajeitado, o avestruz dança, movendo suas penas pretas e brancas junto ao seu pescoço rosáceo. A cada passo, suas patas levantam uma cortina de areia que se integra à performance. Eis o dançarino do deserto em seu esplendor. Um show que, por cerca de três décadas, desapareceu no norte do Chade e, graças à iniciativa de reintrodução do avestruz-norte-africano, volta a acontecer nas paisagens desérticas do país africano.

O Chade é um país localizado no centro-norte da África. Seu território se estende por pouco mais de 1,2 milhão de km² – o equivalente a cerca de duas vezes o estado de Minas Gerais – e aproximadamente um terço dele é coberto pelas areias do Deserto do Saara. É neste contexto desértico que está localizada a Reserva Natural e Cultural Ennedi, o palco da reintrodução do avestruz, com mais de 50 mil km² de extensão.

O avestruz-norte-africano (Struthio camelus camelus) é uma subespécie do avestruz comum. Sua distribuição original se estendia pela região conhecida como Sahel, faixa semiárida no norte do continente africano que marca o encontro entre o deserto, ao norte, e as savanas tropicais, ao sul. A espécie, porém, foi dizimada regionalmente em diferentes locais devido à caça, conflitos armados e abate para obter suas penas.

“A espécie sobrevive até hoje, mas em pequenos fragmentos. E quando você encontra eles, são poucos indivíduos cuja sobrevivência no longo prazo é incerta. Tanto por causa do baixo número de indivíduos, quanto porque não estão em áreas protegidas. O maior santuário dessa subespécie hoje é o Parque Nacional Zakouma, no sul do Chade”, conta a gerente regional de conservação da African Parks, Elsa Bussiere. Em parceria com os governos locais, a organização faz a gestão de mais de 20 áreas protegidas no continente.

Quando as portas do recinto se abriram, as aves dançaram como se celebrassem sua volta à natureza. Foto: Elsa Bussere

O desaparecimento dos avestruzes

O principal motivo que levou o avestruz à extinção no norte do Chade foi a caça. Fosse pela carne, em si, ou pelas suas penas. Com a chegada das armas de fogo e dos veículos motorizados, as aves, apesar de velozes, tornaram-se alvos fáceis. 

A situação piorou durante a guerra com a Líbia – país vizinho situado ao norte do Chade – que se estendeu por quase 10 anos, entre 1978 e 1987. Durante este conflito, a maior parte dos grandes e carismáticos animais da região desapareceram ou foram reduzidos a poucos indivíduos.

De acordo com relatos dos moradores da região, estima-se que os últimos avestruzes no norte do Chade desapareceram no começo da década de 90. 

No Chade, a African Parks cuida tanto do Parque Nacional Zakouma e da Reserva de Vida Selvagem Siniaka Minia, ambas no sul do Chade, quanto da Reserva Natural e Cultural Ennedi, ao norte.

Ennedi é uma das seis cadeias montanhosas do Saara. A paisagem é transformada em campos verdes depois das poucas chuvas de agosto, fornecendo alimento para os animais. Foto: Elsa Bussiere

E foi em Zakouma que o projeto foi buscar os animais para reintrodução. “É muito importante ter uma segunda população dos avestruzes na porção norte do país”, destaca a ecóloga.

O trabalho concentrou-se nos filhotes, por serem mais fáceis de manejar. Para isso, fizeram duas incursões de captura, uma em 2019 e outra em 2020. 

“Com um avião nós sobrevoamos a área durante a época reprodutiva, no inverno, entre janeiro e fevereiro. Do avião, nós procuramos pais com filhos de um a dois meses de idade, não podiam ser recém-nascidos. Uma vez identificados, marcamos as coordenadas de GPS e enviamos via satélite para uma equipe que já estava em campo, pronta para agir, e ia de carro até o ponto”, descreve a gerente regional da African Parks. 

Quando a equipe de campo encontra as aves, começa a perseguição. Muito mais rápidos que os filhotes, os pais se afastam e deixam suas crias para trás. É nesse momento que é feita a captura. “Não deixamos nenhum filhote de fora porque, apesar de ser um pouco dura a ideia de tirar todos os filhos dos seus pais, as chances de um ou dois filhotes sobreviverem são muito baixas. Eles sobrevivem bem quando são parte de um grupo grande. Então não é uma boa estratégia [de conservação] pegar apenas alguns e deixar outros”, explica.

Apesar de serem oriundos do mesmo ninho, uma peculiaridade comportamental dos avestruzes garante a diversidade genética dos filhotes capturados. Num mesmo ninho – uma pequena depressão escavada na areia – há filhos de diferentes pais e mães. Nessa gestão colaborativa, uma fêmea toma conta do ninho, mas permite que outras fêmeas deixem seus ovos lá também e, ao mesmo tempo, acasala com outros machos. Com seu corpanzil, um avestruz é capaz de incubar cerca de 20 ovos ao mesmo tempo, apesar dos ninhos poderem ter mais ovos do que isso. 

Moussa Sougui ergue gentilmente um jovem avestruz para colocá-lo dentro do avião que transportou as aves até o norte do Chade. Foto: Elsa Bussiere

Ao todo, 63 filhotes foram capturados em dois anos. “Metade veio para ser reintroduzida no Ennedi e a outra metade foi para nosso parceiro, Sahara Conservation Fund, que atua na região central do Chade, para reintroduzí-los lá também”, conta Elsa.

Ao todo, 32 filhotes partiram rumo ao norte, numa viagem de duas horas de avião até a pequena cidade de Fada, no departamento de Ennedi, onde fica a sede regional do African Parks. Lá foi erguida uma estrutura para receber os avestruzes, com direito a um abrigo aquecido para as noites frias de inverno no deserto, que poderiam ser letais para os filhotes sem os pais para esquentá-los.

Após quatro meses de cuidados intensivos nesta instalação, as aves – nessa altura com cerca de seis meses de idade e já do tamanho de um ser humano adulto – foram levadas para um recinto de aclimatação, no interior da Reserva Natural de Ennedi, a cerca de 130 km de Fada. Dessa vez, a viagem foi feita por terra e de noite, para driblar o calor do verão.

Os avestruzes ficaram aproximadamente um ano no recinto de aclimatação, onde puderam se adaptar ao seu habitat natural e continuar seu desenvolvimento. Com mais de dois metros de altura e suas penas definitivas, chega a hora da soltura. O primeiro grupo foi solto em 2020 e o segundo no ano seguinte, sempre na época chuvosa, quando há mais vegetação – e alimento – disponível.

Ao todo, foram reintroduzidos 18 avestruzes na Reserva de Ennedi. Dos 63 filhotes capturados para as duas instituições, 51 sobreviveram.

Ninhadas inesperadas

De acordo com o que se sabia sobre os avestruzes-norte-africanos, a expectativa era de que as aves não começassem a reproduzir antes dos quatro anos de idade. Por isso, a equipe do projeto não esperava ver nenhuma ninhada tão cedo. Os avestruzes, entretanto, resolveram surpreender logo três meses após a soltura.

“Assim que eles foram soltos, eles começaram a explorar e nós vimos todos os comportamentos que queríamos ver. Banho de areia, dança, catação… E então nós vimos dois casais se formando”, lembra a gerente regional Elsa Bussiere. 

Completamente surpresa, a equipe testemunhou os casais acasalarem, construírem seus ninhos e, por fim, botarem seus ovos. “Todos estavam muito animados, mas eu lembro de falar que havia muita chance desses ovos serem inférteis porque estava muito cedo para eles reproduzirem. É um processo longo de 42 dias de incubação dos ovos, a fêmea durante o dia e o macho durante a noite, e eles fizeram um trabalho perfeito, conforme o manual”, recorda. 

Quando chegou a hora, os ovos eclodiram nos dois ninhos dos casais “precoces”, marcando o nascimento dos primeiros avestruzes em vida livre da Reserva Natural de Ennedi.

“Foi uma loucura para nós, um milagre. Era impossível a gente imaginar que eles iriam reproduzir com dois anos de idade. Foi um sucesso gigantesco”, comemora Elsa.

Depois de apenas cinco meses em liberdade, com dois anos, este casal já cuida de oito filhotes recém-nascidos. Foto: Elsa Bussiere

Destas duas ninhadas inesperadas, sobreviveram sete pequenos avestruzes. No ano seguinte, de um novo ninho bem-sucedido nasceram 10 filhotes.

Atualmente, a população de avestruzes na reserva é de 33 indivíduos, entre adultos e filhotes. “Nós perdemos algumas aves, uma morreu por doença, outra foi vítima de um conflito com a comunidade e acabou morta”, lamenta a gerente.

Um olhar zeloso

Os avestruzes são aves que se movem muito. Uma equipe de dois funcionários da reserva cobre grandes áreas diariamente no campo para monitorá-las, com foco especial quando há pares com filhotes, principalmente nos primeiros dias. “Se nós avistamos um predador – tem muitos poucos nessa paisagem – como o chacal-dourado (Canis aureus) indo para os filhotes, nós vamos intervir. Óbvio que se houvesse 300 avestruzes, nós não iríamos intervir porque seria a natureza seguindo seu curso, mas nós só temos algumas aves então sim, nós as protegemos”, reforça Elsa.

Uma vez soltos, os avestruzes passam a ser monitorados diariamente por guarda-parques e monitores para garantir a sua saúde e sua relação harmoniosa com a comunidade. Foto: Elsa Bussiere

Para ajudar neste monitoramento, os pesquisadores contam com um equipamento desenvolvido especificamente para os pescoços dos avestruzes – que possuem uma pele elástica que se expande e encolhe enquanto comem ou vocalizam, por exemplo. O aparelho feito sob medida, é fixado no pescoço e não incomoda ou atrapalha o animal, que é capaz de engolir um melão inteiro goela abaixo. A solução, entretanto, ainda não é a ideal para o monitoramento de longo prazo, admite Elsa, porque depois de um tempo o equipamento cai.

Os animais contam também com uma anilha com sua numeração individual e microchips para garantir sua identificação.

Para acelerar a recuperação das aves na reserva, o projeto conta com um centro de reprodução, onde foram mantidos alguns dos animais inicialmente capturados em Zakouma. “A ideia é ter a reprodução dos avestruzes em Fada para continuar reforçando a população [na natureza] com novas solturas”, explica Elsa.

O avestruz não é o único animal que está diante de uma segunda chance na natureza nas paisagens de Ennedi. Outros projetos em andamento visam reintroduzir por lá duas espécies de antílope, o adax (Addax nasomaculatus) e o órix-de-cimitarra (Oryx dammah), a partir de animais oriundos do cativeiro. “O Chade está protagonizando esforços enormes para trazer de volta espécies e refaunar suas paisagens”, destaca a gerente regional da African Parks na África Central.

Relação com a comunidade

Para garantir o sucesso no longo prazo da reintrodução, uma etapa fundamental foi buscar o envolvimento e a sensibilização da comunidade. Dentro da Reserva Natural e Cultural Ennedi vivem cerca de 3 mil pessoas. 

“Quando nós identificamos o local em que faríamos a soltura dos avestruzes, nós fomos literalmente de casa em casa, mostrando desenhos do avestruz e contando o que nós queríamos fazer”, conta Elsa, que atua em Ennedi desde o começo do projeto para criação da reserva, oficializada pelo governo em fevereiro de 2019. 

Uma pesquisa realizada com a população mostrou que 95% dos moradores apoiavam o retorno do avestruz à região. O principal motivo era a crença popular de que onde há vida selvagem, há chuva. E, se chove, o pasto cresce e favorece o rebanho. Houve ainda quem respondesse que gostaria de ter os avestruzes de volta para poder caçá-los e comê-los. “Foram poucos, mas ainda estão lá”.

“Nós não achamos que teria muita resistência da comunidade, principalmente por ser um herbívoro, mas nós queremos garantir que ele sobreviva e que a população cresça, e que não seja caçado”, completa.

Além da caça, há a preocupação de conflitos dos moradores com a ave – que além de ser de grande porte, pode exibir um comportamento mais agressivo quando perturbada. Um dos avestruzes reintroduzidos foi morto a tiros por pessoas de uma comunidade após um episódio conflituoso. Até o momento, entretanto, foi um caso isolado. 

Uma forma de aumentar a sensibilização dos moradores locais sobre a ave foi trazê-los para trabalhar no projeto e na reserva. Atualmente, há cerca de 70 pessoas que atuam para African Parks na Reserva Ennedi, sendo a maioria moradores da região, entre eles o atual chefe da área protegida.

Guarda-parque segura um filhote de avestruz recém-capturado no Parque Nacional Zakouma, no sul do Chade. Foto: Elsa Bussiere

A Reserva Natural e Cultural Ennedi está aberta à visitação e o destino já é operado por algumas agências de turismo. Ainda assim, devido ao contexto instável do país, que vive um conflito civil, a demanda turística no país ainda é baixa, especialmente no norte, onde a logística de deslocamento é mais cara e complexa. 

“Claro que trazer animais de volta para o parque é algo que pode atrair mais turistas, mas é necessário ter em mente que os avestruzes podem ser vistos em outros locais na África, de mais fácil acesso. O motivo principal pelo qual as pessoas visitam a reserva é a paisagem, que é extraordinária. Muitas pessoas vão para o Parque Nacional Zakouma, no sul, onde há muita vida selvagem e depois vêm para o norte para ver a paisagem. Mas eu acho que se você entende o contexto, os desafios e o esforço para trazer os avestruzes de volta para este lugar, você pode apreciar de outra forma a observação destes animais na reserva”, resume a gerente regional da African Parks.

Esta reportagem foi feita com apoio da Earth Journalism Network, através da oportunidade “Scholarships for Journalists to Cover Biodiversity Conferences”. A bolsa financiou a cobertura do International Congress for Conservation Biology (ICCB) 2023.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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