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Alta mortalidade de muriquis-do-norte gera alerta sobre futuro da espécie

Com mais de 40 anos de pesquisa, análise pioneira revela aumento abrupto nas taxas de mortalidade da população de muriquis em Caratinga desde 2016

Duda Menegassi ·
15 de janeiro de 2025

Quem olhar um retrato atual da população de muriquis-do-norte em Caratinga, no leste de Minas Gerais, pode não ver nada de errado. O número de muriquis quadruplicou nas últimas quatro décadas e cerca de 200 animais vivem em uma área de floresta protegida por uma reserva particular. Existem processos, entretanto, que só são visíveis por meio de um olhar atento, contínuo e prolongado. Na ciência isso se traduz em pesquisas de longo prazo. Para sorte dos muriquis, esse é o trabalho que a primatóloga Karen Strier realiza na região desde 1983, quando começou a monitorar de perto cada um dos muriquis que vivem na reserva. E graças aos dados acumulados por sua pesquisa, foi possível entender que há sim algo de preocupante por trás desse retrato: desde 2016 morrem mais muriquis do que nascem.

O resultado dessa equação não exige grandes matemáticas. Uma mortalidade superior à taxa de nascimentos é igual a um declínio populacional, algo crítico quando se trata de uma espécie já Criticamente Em Perigo de extinção, como é o caso do muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus). 

O alerta foi dado a partir de uma análise pioneira e minuciosa, possível graças aos dados acumulados em mais de 40 anos de pesquisa. O que ainda não está claro nessa fórmula é qual o motivo – ou motivos, no plural – por trás dessa queda populacional.

“Mesmo com o nível intensivo de monitoramento individual que nós temos, nós não conseguimos determinar exatamente o que foi afetado e qual a causa dessa mortalidade. Isso gera um alarme, porque pode acontecer qualquer dia, com qualquer bicho”, alerta Karen Strier, professora da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos e coordenadora do projeto de pesquisa com o muriqui-do-norte em Caratinga.

Além da lista já conhecida de ameaças aos muriquis – desmatamento e fragmentação do habitat –, os pesquisadores se preocupam com ameaças emergentes e pouco estudadas, como os impactos das mudanças climáticas, gerando secas mais severas na região de Caratinga, e a circulação de doenças ainda desconhecidas. 

Quando a primatóloga deu início ao monitoramento dos muriquis, em 1983, a população estimada era de apenas 50 indivíduos. Esse número cresceu progressivamente ao longo das décadas seguintes, marcadas não apenas pela pesquisa, mas por ações voltadas para a conservação da espécie, como a transformação, em 2001, da Fazenda Montes Claros em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdalla, conferindo status de unidade de conservação ao lar dos muriquis estudados por Karen.

Esse crescimento culminou em 2015 com cerca de 350 indivíduos distribuídos nas florestas da RPPN. O ano seguinte, entretanto, trouxe uma queda abrupta na população, seguida por outra e outra, sucessivamente. E em 2022, a população estava reduzida a aproximadamente 200 muriquis, uma queda total de 42% em apenas oito anos.

O tamanho da população ao longo dos anos em Caratinga mostra a queda abrupta a partir de 2016. Gráfico adaptado para tradução em português retirado do artigo “Abrupt demographic change affects projected population size: Implications for an endangered species in a protected area”, Karen B. Strier , Anthony R. Ives (2024), Ecology – Ecological Society of America.

Para tentar entender melhor o que esses números populacionais representavam, Karen Strier se juntou ao professor de Ecologia e Evolução da Universidade Wisconsin-Madison, Anthony Ives, especialista em modelagens demográficas que assina com ela o artigo, publicado no final de 2024 no periódico Ecology – Ecological Society of America

Juntos, eles compilaram os dados coletados sistematicamente por Strier entre 1983 e 2022, de cada um dos muriquis de Caratinga, para estimar as taxas de fertilidade, mortalidade e proporção dos sexos de nascimento ano a ano, e tentar entender qual parte da equação era a responsável pelo declínio populacional. 

“Nas análises foi possível determinar que o fluxo anual de fertilidade continua normal. Ou seja, mesmo durante a seca, não encontramos um efeito na fertilidade das fêmeas, elas continuaram reproduzindo. O que foi marcante foi o aumento da mortalidade”, detalha a primatóloga.

Ou seja, se até 2015 os nascimentos eram suficientes para superar as mortes e garantir o crescimento da população, a partir de 2016 a taxa de mortalidade cresceu abruptamente e permaneceu acima da capacidade reprodutiva da espécie.

Foto: Duda Menegassi / O Eco

“Em 2014 e 2015 tivemos dois anos seguidos com uma das piores secas registradas nessa região. Durante esses anos, ironicamente, os muriquis pareceram não sofrer tanto, mas é possível que o estresse na vegetação ou o estresse causado na própria população tenha acarretado no aumento da mortalidade que vimos depois, como se tivesse algum delay [atraso] nessa resposta”, explica Strier.

Para piorar o cenário, no final de 2016 outro personagem entrou na história: a febre amarela. O surto, que começou em dezembro daquele ano, teve um efeito forte na população de saguis-da-serra (Callithrix flaviceps) da RPPN Feliciano Miguel Abdalla, mas não houve nenhum caso comprovado entre os muriquis.

“Não temos certeza se a espécie sofreu com a febre amarela, mas é possível que tenha sido um estresse em cima de estresse. E quando voltou a chover, a expectativa era de que a população se recuperaria, mas não se recuperou”, explica.

Levando em conta a nova tendência de declínio estabelecida a partir de 2016, a projeção da pesquisa é que o número de muriquis seja reduzido a apenas cerca de 180 indivíduos. Bem distante da projeção de quase 600 muriquis feita com base nos dados populacionais entre 1983 e 2015.

“Estou preocupada com a população em Caratinga”, desabafa Karen durante a conversa com ((o))eco, feita por telefone diretamente do aeroporto, na manhã de terça-feira (14), quando a pesquisadora se preparava para ir até Caratinga para vê-los. “Vi umas fotos deles e achei que estavam muito magros. Nada melhor do que vê-los pessoalmente”, completa a pesquisadora, que trabalha com a espécie desde seus 23 anos, em tom praticamente maternal.

Leia mais: Karen Strier, guardiã dos muriquis e matriarca de gerações de pesquisadores

Nos próximos meses, a primatóloga pretende fazer um levantamento intensivo em Caratinga para ter certeza de que não há nenhum grupo de muriquis fora do radar de monitoramento dos pesquisadores. E em paralelo, fazer análises ambientais e de saúde da população.

“Eu gostaria de entender se existe alguma questão relacionada à vegetação ou ao clima ou se tem alguma doença que ainda não descobrimos circulando na população”, explica a pesquisadora. “São coisas que precisam ser feitas rapidamente para não perdermos a janela de oportunidade de agir para resguardar a população”, completa.

O destino do maior primata das Américas

Entre tantas perguntas ainda sem resposta, uma coisa é certa, o destino dos muriquis-do-norte está intrinsecamente relacionado com a Mata Atlântica, único bioma em que o maior primata das Américas pode ser encontrado e, infelizmente, também o mais desmatado ao longo da história de ocupação e exploração do Brasil.

Hoje o que sobrou da Mata Atlântica – menos de um terço da cobertura original – está literalmente em pedaços, sejam eles maiores ou menores. A RPPN Feliciano Miguel Abdalla não é exceção, com 957 hectares de floresta isolados na paisagem do leste mineiro. 

No caminho para RPPN é possível ver a paisagem “típica” dde Caratinga, plantações de café, pastos e a cidade em expansão. Foto: Duda Menegassi / O Eco

Por ser um animal arborícola, ou seja, se locomover majoritariamente por meio das árvores, o muriqui-do-norte é duramente afetado pela fragmentação florestal, o que restringe, por exemplo, as possibilidades de migração das fêmeas entre os grupos, comportamento que ajuda a garantir a diversidade e saúde genética da população.

“Não podemos nunca relaxar com essas populações isoladas. Esse estudo mostra que a manutenção das áreas protegidas é fundamental, mas que elas por si só não são suficientes. As pessoas podem achar que, porque estão numa área protegida, essa população está segura, mas não é verdade”, ressalta Karen Strier.

É preciso investir em restauração e na conectividade entre os remanescentes de floresta. Já existem, inclusive, corredores ecológicos propostos para tirar a RPPN Feliciano Miguel Abdalla e outros fragmentos do isolamento, como o Corredor Ecológico Sossego-Caratinga, mas que, até o momento, é uma ideia que permanece no papel.

“Esse trabalho é essencial por vários motivos, um deles é mostrar a importância dos estudos de longo prazo continuados. Só com eles é possível entender melhor os processos de redução ou aumento populacional e com isso conseguimos ter pistas do que fazer para refinar as estratégias e incrementar a implementação de políticas públicas de conservação”, explica o coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB/ICMBio), Leandro Jerusalinsky.

Uma dessas políticas é o Plano de Ação Nacional (PAN) para conservação de espécies ameaçadas que, no caso dos primatas da Mata Atlântica, tem como um dos seus objetivos “restaurar, manter e aumentar o habitat e sua conectividade em áreas importantes para a conservação” das espécies-alvo.

“A conectividade dos habitats é uma peça-chave desse tabuleiro. Porque com essa estratégia a gente consegue recompor o que nós artificialmente removemos com o desmatamento, que é a capacidade deles se moverem na paisagem para locais que eles têm mais comida, melhores condições térmicas, para encontrar parceiros. E permitir que os grupos consigam achar lugares melhores para viver, face aos efeitos das mudanças climáticas”, acrescenta o coordenador do CPB/ICMBio.

Enquanto as populações seguem isoladas, outra possibilidade de manejo considerada pelos pesquisadores – ainda que seja vista como um último recurso – é o manejo populacional, com a translocação de indivíduos para movimentá-los de um grupo para outro. “É uma última opção porque envolve muitos riscos, muitos custos e presume que nós sabemos o que é melhor pros animais”, detalha Leandro.

“A translocação é uma coisa imediata, mas nesse caso eu não iria sugerir uma translocação agora, porque precisamos entender primeiro porque a população está caindo. Se é uma coisa no ambiente, uma doença, uma degradação que não está sustentando o grupo, você não estaria ajudando levando outros animais para lá”, completa Karen Strier.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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